Syrinx

Claude DEBUSSY

1862 / 1918

Por Raul Costa d'AVILA *

 

1. Introdução

Segundo a lenda da mitologia grega, Syrinx era uma bela e gentil ninfa, que dançava com suas amigas às margens do rio Ládon, na Arcádia. Certa vez, Syrinx foi perseguida por Pã, o satírico e cabeludo deus dos rebanhos e dos pastores, que tinha pés e cornos de bode além de uma grande paixão pela ninfa. Quando quis dominá-la esta suplicou aos deuses, com sua doce e suave voz, para salvá-la e assim sendo foi transformada em caniço, uma planta delgada, lisa e flexível.

O caniço cresceu e espalhou-se por toda região e quando o vento soprava sobre uma haste de caniço quebrada a voz da ninfa era ouvida. Criativamente, o deus juntou pequenos pedaços de caniços formando uma flauta de sete sons, à qual deu o nome da bela ninfa e imitando a brisa do vento, evocava sempre o seu desejo e saudade da sua doce e suave voz. Mais tarde, o deus presenteou a sua flauta aos pastores e, assim, ela chegou aos homens.

2. Histórico da Peça

Originalmente foi composta como música incidental, cuja inspiração se deu através de uma estátua "Dernier Soupier de Pan" (O Último Suspiro de Pã), para ilustrar a peça teatral "Psyqué", de Gabriel Mourey. Segundo Pierre-Yves Artaud, toda música composta para esta peça desapareceu, restando apenas a parte para flauta solo, intitulada como "Flauta de Pã". O nome "Syrinx" surgiu mais tarde dado pelos próprios editores, Société des Editions JOBERT, Paris. Numa entrevista de Jean-Pierre Rampal à revista americana Flute Talk, Março 91, Rampal revela, entre outras importantes coisas, que este manuscrito original ficou guardado com o flautista Louis Fleury, a quem foi dedicada, por muitos anos antes da publicação póstuma em 1927.

Além de flautista Fleury foi um conhecido compositor que também encorajou muito novas composições para flauta solo. Ele era consciente da falta de novas composições escritas para flauta onde a intenção do compositor fosse explorar mais os recursos sonoros e timbristicos do instrumento do que meramente o aspecto virtuosístico.

Com o solo de flauta no seu Prelúdio L'Après Midi d'un Faune (1894) Debussy abre um novo horizonte na composição e o tema utilizado é decididamente escrito para flauta. Em Syrinx (1913), a essência da lenda não é mais alcançada pelas palavras, e sim por uma sonoridade mágica. A peça é executada pela primeira vez, também por Fleury, que mantinha-se atrás da cortina tocando durante os momentos de resignação e cólera do deus Pã junto às ninfas, culminando em sua agonia e morte.

Sem dúvida a peça promove uma nova visão sobre a composição escrita para flauta solo no século XX. Elementos como o timbre, nuanças, o caráter misterioso e nebuloso da flauta são utilizados com muito requinte uma vez que a flauta moderna, desenvolvida por Boehm, permitiu que estes novos elementos fossem explorados. Sendo assim, a poesia desta inigualável peça não é literária nem narrativa, mas está na criatividade musical de cada intérprete.

A poesia atua ainda como a encarnação sonora da idéia de Debussy de "uma misteriosa correspondência da natureza e da imaginação", onde o intérprete deverá explorar ao máximo as ricas possibilidades de sonoridade que darão vida e beleza à peça.

Pode-se perceber que Debussy abandona o modo narrativo e com ele o encadeamento coerente projetado pela consciência; suas imagens evocativas e seus movimentos elípticos sugerem mais a atmosfera da imaginação livre e do sonho. Debussy também soube expressar-se muito bem sobre suas idéias para com a música através de suas palavras : " Eu desejaria para a música uma liberdade que lhe é talvez mais inerente que a qualquer outra arte, não se limitando a uma reprodução mais ou menos exata da natureza, mas às misteriosas correspondências entre a natureza e a imaginação."

Em Syrinx, o timbre é tão importante quanto a melodia, jamais podendo ser dissociado da estrutura musical , ou seja, da composição como um todo.

Numa entrevista Debussy disse: "Eu amo a música apaixonadamente e porque eu a amo tento libertá-la de todas as barreiras que a prendem. É uma arte livre, sem fronteiras como o ar, o vento, o céu , o mar e que nunca deve ser trancada e tornada acadêmica." Tudo isto pode ser muito bem observado em Syrinx pois esta preciosa obra tem uma estrutura musical linear, devido ao entrelaçamento de dois hexacordes no primeiro compasso, que é constituído de simplicidade nas suas notas e no material temático.

2. ANÁLISE

* Para melhor aproveitamento, recomendo seguir esta análise com a partitura.

2.1 Quanto a Estrutura da Peça.

Podemos dividi-la em 3 partes, mais uma pequena conclusão que pode ser denominada de coda.

I PARTE: Très modéré

Do começo ao compasso 8, onde é apresentado o primeiro desenvolvimento que equivale a uma exposição

II PARTE: Un peu muvementé (mais très peu)

Do compasso 9 ao 25 (2º tempo) parte central da peça que pode ser equivalente ao desenvolvimento.

III PARTE: au Mouvt (très modéré)

Do compasso 25 (3º tempo) ao 31 (1º tempo) onde temos a reexposição do tema.

CONCLUSÃO FINAL: En retenant jusqu’á la fin

Coda, do compasso 31 (2º Tempo) ao 35.

2.2) QUANTO AO

CONTEÚDO DAS PARTES

2.2.1) I PARTE :

Très modéré ( Muito moderado)

Embora a armadura da clave apresente a tonalidade de Ré b Maior, Debussy deixa pairar uma dúvida, como certeza de maneira proposital, sobre seu aspecto tonal. Segundo Gustav Scheck, o cromatismo apresentado no primeiro compasso surge como elemento estrutural da peça. Além disso Scheck diz que Syrinx apresenta uma estrutura linear que é devida ao entrelaçamento de dois hexacordes no primeiro compasso, os quais apresentam três notas em comun: fá, mi natural e ré b.

1º Hexacorde:

2º Hexacorde:

Fusão :

Em ambos aspectos apresentados (cromatismo ou entrelaçamento de hexacordes) o si b assume uma função de nota pivô, fazendo com que a tonalidade de si b menor se mostre muito transparente nesta primeira parte.

Após a fermata utilizada no 2º compasso, provocando silêncio e suspense, Debussy utiliza-se de uma respiração, aliás muitíssimo bem colocada, funcionando como suspiro e dando alívio à suspense criada pelo si b.

O 3º compasso é o retorno ao tema onde o sib continua sendo a nota de atração mas momentâneamente o cromatismo conduz ao si natural que surge no 2º tempo do compasso 4 sugerindo um clima de confronto, instabilidade. Sua duração é maior do que a normalmente vinha ocorrendo já que ocorre uma transformação rítmica como requinte de composição:

Este clima de instabilidade provoca uma curtíssima suspensão apresentada pela respiração no 2º tempo do compasso 4, que é exatamente depois do si natural piano (súbito) onde a idéia musical é brevemente secionada para a partir de uma mudança rítmica, tercinas feitas com cromatismos e intervalos de 4º e 5º justas, retornar ao sib e novamente encontrar, cromaticamente, o si natural. Cabe aqui comentar ainda que Debussy utiliza-se de uma apogiatura (fá natural) sobre o mi natural, fazendo-o realçar. Esta apogiatura faz parte dos elementos temáticos encontrados na I parte e será utilizada também na II e III partes da peça. É interessante observar como que pouco a pouco o si natural vem assumindo uma duração cada vez maior ritmicamente, provocando sempre uma certa instabilidade.

No compasso 5 ele vale uma semínima; no compasso 6 e 7 toma a função de um dób em mínimas.

No compasso 8, onde ocorre a resolução em sib, existe um sinal de respiração e uma barra dupla. O sinal de respiração pode ser visto como uma nova suspensão, e também uma preparação para a II parte da peça; a barra dupla indica o fim de uma parte.

Dois elementos importantes contribuem para mostrar a magia e a força evocativa da melodia criada por Debussy nesta primeira parte e que estará presente durante toda a peça:

o cromatismo e a célula rítmica

Além disso as dinâmicas mf e p aliadas aos decrescendos e crescendos também contribuem para isto indiretamente.

2.2.2) II PARTE - Un peu mouvementé (mais très peu)

Inicia-se no compasso 9 e vai até 25 (2º tempo). É a parte central da peça onde ocorre o desenvolvimento propriamente dito. O compasso 9 nada mais é do que a repetição do 1º compasso numa oitava mais grave, com a indicação de andamento Un peu mouvementé (mais très peu). A mudança de região da flauta, da média para a mais grave, que tem um caráter tímbrico mais escuro e misterioso, sugere drama e dor do deus dos pastores.

No compasso 10, que é a nova repetição do 1º compasso também, temos a novidade no 3º tempo onde o movimento a partir do solb passa a ser ascendente e não descendente como vinha antes, formando assim uma pentatônica a partir de solb (solb, láb, sib, réb e mib). Esta escala pentatônica atinge sua oitava (solb), como apogiatura do fá, fazendo o movimento descendente, semelhante ao 3º tempo do 3º compasso porém com o míb e não natural, chegando à nota pivô, o sib, onde tem um ponto para respiração. Neste ponto Debussy utiliza um artifício de composição muito curioso: usando as notas láb, réb e míb, que são notas da pentatônica de réb, ele cria uma espécie de ponte onde reconduz à escala pentatônica de solb em movimento ascendente e descendente num só tempo, ou seja, de colcheias ele passa usar fusas. Sendo assim, ao mesmo tempo em que a referência passa ser sobre o réb ele reapresenta a escala pentatônica de solb (ascendente e descendente), numa sutil alteração rítmica atingindo novamente o sib, num ritmo mais prolongado, e logo após indica um novo sinal para respiração.

Uma nova ponte, 2ª metade do 3º tempo do 12º compasso, feita sobre uma tercina originada da escala de réb, é criada para fazer a transição à grande dramaticidade da peça. A ponte conduz a um lá natural, compasso 13 (que faz parte do tetracorde do 2º hexacorde)

promovendo um movimento cromático descendente até atingir o míb (colcheia), que é feito num habilidoso movimento cromático e rítmico: 3 tempos em grupos de colcheias ligadas a 4 fusas.

Como se quisesse demonstrar talvez o soluço do Pã, Debussy utiliza-se de uma apogiatura sobre a 2ª nota da tercina do compasso 14 e depois cromaticamente atinge o míb numa semínima, no 2º tempo. A partir daí, 3º tempo do compasso 14, o cromatismo é cada vez mais explorado em tercinas de colcheias, até o compasso 19 no 1º tempo, com decrescendos e pianos, sempre com as apogiaturas.

Pela primeira vez Debussy usa de indicações de expressão para promover flexibilidade rítmica: é do compasso 15 para o 16 onde temos um Cédez e depois um Rubato.

No compasso 17 temos um belíssimo efeito quando o réb em semínima é reprisado uma oitava acima, também em semínima, numa dinâmica de decrescendo. É como se momentaneamente tudo estivesse resolvido, já que a sensação de diluição provocada pelo réb, que sugere ser a tônica, causa a impressão do repouso. Do compasso 15 ao 22 temos a presença constante de tercinas ora em colcheias ora em semicolcheias. Estas tercinas dão um clima de uma gradativa intensidade dramática cujo ponto culminante vem se aproximando. No compasso 21 (2º para 3º tempo) temos o retorno a nota pivô sib que é como uma preparação à chegada da 3ª parte da peça. Esta vem anunciada pelo cromatismo das tercinas, 2 grupos de semifusas, o síb (nota pivô) e mais dois trilos que buscam sempre o síb como nota referencial. Este síb em semínima é oitavado, também por uma semínima, (com uma fermata) ligada a uma mínima (1º e 2º tempos do compasso 25). É interessante notar que esta oitava é precedida por um grupo de pequenas 3 notas (fá, solb,láb) que tem a função de realçar esta nota pivô. Este realce é reforçado por uma progressão gradativa que começa no 1º trêmolo, mib com réb, (2º tempo do compasso 23) depois solb com fá (1º tempo do compasso 24) ambos resolvendo, como já foi falado, no síb e as 3 pequenas notas retomam à idéia temática contida no hexacorde do primeiro compasso, porém com o mib.

Quanto aos pontos para respiração desta parte, são muitíssimos bem colocados. São em número de 9 e sempre delimitam idéias claras que ao mesmo tempo faz a interligação entre elas de maneira mais natural possível, deixando assim o intérprete vivenciar-se de Pã numa atmosfera de grande dramaticidade.

A conclusão desta II parte é exatamente no 2º tempo do compasso 25, onde a fermata recai sobre o sib prolongando-o e ao mesmo tempo deixando um ar de suspense, caracterizando assim a Dominante.

2.2.3) III PARTE : au Mouvt (très modéré)

Iniciando, por antecipação, no 3º tempo do compasso 25 temos agora a reexposiçao do tema. Pela segunda e última vez aparece na peça a indicação mf (meio forte) pois pelo que se pode perceber Debussy não desejou ultrapassar o limite natural da sonoridade da flauta. Nesta 2ª vez a indicação mf é acrescida do sinal de crescendo que conduz a idéia musical até o compasso culminante da peça, o 27, que é o ponto onde ocorre a nota mais aguda, onde temos maior intensidade de dinâmica e a maior dramaticidade.

O compasso 28 é a última vez em que o tema é apresentado idêntico ao 1º compasso pois a idéia remete ao último lamento de Pã, que logo depois começa a entrar em agonia. Nos compassos 29 e 30 ocorre uma mudança de tempo, ou seja, do compasso ternário para o binário, mudança esta que se deve a um processo de diluição rítmica apresentado com tema, que se reprisa duas vezes (em 2 tercinas de semicolcheias e depois 1 grupo de 4 semicolcheias) até atingir o réb semínima, (compasso de 3 tempos novamente) dando idéia de conclusão.

2.2.4) CONCLUSÃO FINAL : CODA (En retenant jusqu'á la fin)

Do compasso 31 (2º tempo) até o final ( compasso 35).

Tudo aqui gira em torno do réb, onde tercinas de colcheias são apresentadas cromaticamente (semelhante à 2ª parte) que na verdade nada mais é do que um trabalho em cima do 2º hexacorde de onde origina o tema.

O si natural é atingido, em piano, e mais uma vez causa a instabilidade. Aqui ele vem ligado a uma semínima que tem a indicação marqué , que indica o último suspiro de Pã, e logo depois sua queda através de uma sequência baseada no hexacorde sem alteração que leva a indicação perdendosi para atingir, finalmente, o réb com uma fermata, precedido de um mib e uma apogiatura também de míb sobre o réb. É o repouso final sobre a nota tonal da armadura de clave, ou seja, é a morte de Pã !

3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A INTERPRETAÇÃO

- Conhecer a forma da peça é muito importante, pois com toda certeza nos conduz a uma compreensão melhor do todo.

- Os pontos indicados para as respirações são muitíssimo bem colocados. Respeite-os, uma vez que eles também pertecem ao contexto musical.

- No réb 4 do compasso 17, é interessante que se pense em executá-lo em som harmônico, pois desta forma timbricamente resultará numa sonoridade mais coerente com o todo do contexto musical e também ficará muito mais fácil para o intérprete.

- Procure não ultrapassar o limite de intensidade meio forte. Debussy explora, com todo requinte, a região que é natural da flauta; sendo assim, caso sinta necessidade de dar uma maior intensidade em algum ponto o compasso 27 é mais aconselhável, pois é onde temos o ponto culminante da peça e o crescendo que vem no compasso 26 nos conduz até o 27.

- As possibilidades tímbricas nos compassos 29 e 30 são enormes, uma vez que são duas estruturas iguais mas intenções diferentes: 1ª ve com mais energia e a 2ª com menor energia pois Pã está prestes a entrar em agonia.

- Ouvir gravações de intérpretes reconhecidos é sempre muito válido. Além de adquirirmos referências, as gravações nos instigam a pesquisar e estudar novas possibilidades para interpretação.

- Syrinx exige uma certa maturidade por parte do flautista para ser bem executada. Esta maturidade se reflete no encontro da verdadeira poesia sonora, uma vez que esta poesia não se limita apenas ao ritmo e as notas, mas numa compreensão do todo que inclui: sonoridade expressiva, timbres variados, crescendos e decrescendos bem executados, sendo tudo isto aliado a um íntegro espírito de comunhão com a idéia de concepção da peça.

4. BIBLIOGRAFIA

GRIFFITHS, Paul. A Música Moderna. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1987.

MARNAT, Marcel. Encarte do CD: DEBUSSY 3 Sonatas.Syrinx. Philips Classics Productions, New York 1989.

RAMPAL, Jean-Peirre. Jean-Pierre Rampal on Syrinx: Another Point of View. Flute Talk, p. 12 e 13, March,1991.

SCHECK, Gustav. Die Flote Und Ihre Musik. Mainz, B.Schott's Sohne,1975.

** Sobre o Autor do Texto:

* Professor no Departamento de Canto e Instrumento do Conservatório de Música da UFPel.

* Mestrando em Flauta Transversa pela Faculdade de Música Carlos Gomes / SP, na classe do Prof. Marcos Kiehl.

* Bacharel em Música pela Escola de Música da UFMG , na classe do Professor Expedito Vianna.

* Idealizador do projeto de traduçao do "Flauta Tansversa - Método Elementar" de Pierre-Yves Artaud, editado pela EdUnB.

 

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