Balé Habeas Corpus
 
Dançar é um ato rebelde
Aldísio Filgueiras


Ao adotar uma expressão jurídica para apresentar-se à sociedade amazonense, o Balé Habeas Corpus deixa bem claro a que veio: romper com o arbítrio da mesmice, doença infantil que acomete a maioria dos grupos amadores de dança, artes plásticas, teatro, música, literatura e... manhas, também.
A mesmice ou reprodução do óbvio mantém a inteligentsia em plantão permanente de UTI. Contra a arbitrariedade o Habeas Corpus. A dança é um ato de rebeldia. Se não, "dança". Ao se propor assim, o Habeas Corpus assume-se diferente e aceita a proposta (quem o disse mesmo? Cartas para o Arte Final) de desafinar o coro dos contentes. Mas quem é o Habeas Corpus, tão insolente e descontente?!
Primeiro e segundo: não é. Está sendo. E para variar, a duras penas. E penas é o que não faltam no espetáculo "Vozes de Soror Saudade", uma homenagem à poeta portuguesa Florbela Espanca, que morreu aos 36 anos com uma sobredose de tristeza (diagnóstico de um possível suicídio).
O Habeas Corpus está ensaiando sua proposta de se constituir uma companhia de repertório. São jovens que estão cansados da "tradição" dos grupos que estreiam um espetáculo novo de seis em seis meses, sem fixar-se numa linha temática e/ou de tendência e/ou de criação de platéia e/ou de proposta de linguagem que justifique a presença desses grupos em cena.
É audacioso o Habeas Corpus. Principalmente, numa sociedade que ainda não aprendeu que esse é um recurso jurídico à disposição de qualquer cidadão ameaçado em sua liberdade individual e de expressão. A arte tem essa intimidade umbilical com a cidadania. Não é preciso advogado. É preciso cidadania. Cidadania é um ato político. A arte tem uma intimidade visceral com a política.
O Habeas Corpus tem uma proposta audaciosa. Tem também três instrutores de dança. O clássico e o moderno transformam-se no pós-moderno, sem deixar de beber no popular (que é pré-clássico e será pós-erudito).
A poesia angustiada de Florbela Espanca vai compor a cena com a música da Madredeus, um grupo português de música (uma reviravolta no repertório e na interpretação de nossos irmãos d'além-mar) que os brasileiros apenas começaram a ouvir com atenção.
Teatro, voz, música, dança, luz, interação com a platéia. Estes são alguns elementos do espetáculo "Vozes de Soror Saudade", um cardápio que pode alterar a cena da dança praticada no Amazonas. O grupo nasceu em 1987 (arte se faz com paciência) no curso de Educação Física, da Universidade do Amazonas. Era Grupo Experimental de Dança da Educação Física, um jeitinho pedagógico de quebrar a preguiça dos estudantes do curso.
Agora, os menos preguiçosos resolveram saltar o muro da Universidade e constituir o Habeas Corpus, contra a preguiça física e mental, contra a burocracia da arte. Está aberta a bolsa de apostas!

Aldísio Filgueiras é jornalista, escritor, poeta, editor do caderno Arte Final do jornal Amazonas em Tempo e membro do Conselho Estadual de Cultura.
 
 
 

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