Lenda de Nambuagongo

 

Ao norte de Angola
há altas montanhas
que guardam tesouros
nas suas entranhas

Ao norte de Angola
rajadas de vento
tingiram o céu
de sangue cinzento

Ao norte de Angola
as altas montanhas
gritaram ao vento:
fendei-me as entranhas

Fendei-me as entranhas
p'ra ver o meu tesouro
que não é petróleo
nem pepitas de ouro

E o vento rugindo
com fúria tamanha
que ao longe se ouvia
fendeu a montanha

De dentro saíram
na raça irmanados
indígenas brancos
e negros soldados

e assim nasceu a lenda de Nambuangongo…


Nambuangongo - Povoação do norte de Angola, na província do Bengo, ocupada pelos rebeldes no início da guerra pela independência, em 1961. Ocupada em Março e denominada sede do "governo provisório" da UPA ("União das Populações de Angola"), só veio a ser retomada pelo exército português em Agosto desse ano. A reconquista de Nambuangongo foi anunciada como o regresso à normalidade económica e social e ficou como símbolo do volte-face português. A guerra, porém, haveria de durar mais 13 anos. Numerosos portugueses ali estiveram como soldados, incluindo os escritores Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco e José Cardoso Pires.

O poema "Nambuangongo, meu amor" (abaixo reproduzido) de Manuel Alegre recolocou aquela povoação no imaginário da resistência portuguesa à ditadura e à guerra, mas desta vez como símbolo da libertação dos povos colonizados por Portugal.

"Nambuangongo povoa os títulos, os poemas e as narrativas desta guerra tanto do lado português como do lado angolano. Veja-se só a título de exemplo o recente livro do escritor angolano João Bernardo de Miranda, Nambuangongo, Lisboa, Dom Quixote, 1998." (M.C.Ribeiro - nota 37).

Nambuangongo sofreu igualmente com a guerra civil angolana. Depois desta ter terminado seguiu-se o retorno de milhares de refugiados, de difícil enquadramento devido à minagem dos terrenos agrícolas. O WFP (Programa Alimentar Mundial) num relatório de Setembro de 2003, afirma que se trata de uma "área suspeita de insegurança alimentar que continua inacessível aos organismos de ajuda humanitária devido a deficientes condições rodoviárias". O ReliefWeb, na mesma data, alerta para a necessidade de ser estabelecido o acesso ao município de Nambuangongo antes do início da estação das chuvas, pois os refugiados que ali chegaram há mais de um ano não receberam ajuda humanitária.

Sobre Nambuangongo veja-se este texto sobre a memória da guerra colonial na poesia de Fernando Assis Pacheco e esta página sobre as operações da 4.ª Companhia de Caçadores Especiais. Um relato de Carlos Silva apresenta uma famosa (e horrível) fotografia de um decapitado nos "massacres de Nambuangongo" (e de facto, às chacinas perpetradas pela UPA, seguiram-se violências equivalentes por parte dos colonos, secundados pelo exército português).


Nambuangongo, meu amor

Em Nambuangongo tu não viste nada
não viste nada nesse dia longo longo
a cabeça cortada
e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo

Falavas de Hiroxima tu que nunca viste
em cada homem um morto que não morre.
Sim nós sabemos Hiroxima é triste
mas ouve em Nambuangongo existe
em cada homem um rio que não corre.

Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto
em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece
em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu. Tu
não sabes mas eu digo-te: dói muito.
Em Nambuangongo há gente que apodrece.

Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.

É justo que me fales de Hiroxima.
Porém tu nada sabes deste tempo longo longo
tempo exactamente em cima
do nosso tempo. Ai tempo onde a palavra vida rima
com a palavra morte em Nambuangongo.

Manuel Alegre


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