Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, domingo, 15 de julho de 2001 • Página Inicial

Segunda Prateleira à Direita

Música brasileira e imagens da nacionalidade em tempos de indústria cultural mundializada

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Música Brasileira

Você já ouviu falar em DJ Gringo da Parada? Ou talvez em Teresinha, la Baianaise? Ou, quem sabe, em Zuco 103, trio composto por dois DJs europeus e uma cantora brasileira? Estes são apenas alguns dos nomes que circulam nos flyers da cena eletrônica parisiense. Inundado por músicos que lutam por introduzir um toque Brazilian beats na próxima música e garantir assim um sucesso fácil, o mundo tecno versão 2001 transformou a bossa e o samba em um dos seus principais ingredientes. Não há uma grande casa européia que escape à regra: "Ajoelharás em direção aos Brazilian beats ao menos uma vez por semana." O exemplo mais recente desta tendência foi a última edição do Sonar: o festival mais importante de novas descobertas na música eletrônica. Pela primeira vez havia um dia exclusivo para a música brasileira, pilotada pelo drum and bass da Sambaloco (O Discurso, XRL lands, DJ Patife etc.), que colocou o público para aplaudir de pé.

Mas a inserção da música brasileira no cenário internacional não parece se esgotar nos cruzamentos possíveis do universo eletrônico. Depois que o pós-rock do Tortoise abriu as portas para Tom Zé e que Beck, o "criativo" mais darling da MTV, prometeu que ia aprender português para cantar os sucessos da tropicália, a música brasileira entrou em alta no cenário "alternativo" norte-americano. Se ela vai continuar, só Deus sabe, mas uma coisa é certa: o Brasil tem lugar garantido nas prateleiras de qualquer grande supermercado cultural dos centros mundiais.

Os ufanistas certamente vão aproveitar o momento para vestir a camisa empoeirada da seleção e cantar as glórias de uma cultura forte que conquista seu lugar com sensualidade, ginga, suor e ouriço. Apesar dos desastres políticos e econômicos, lá está o Brasil brilhando no cenário cultural sem fazer força, inserido nas esferas de alta-conectividade da cultura. Depois da música, será a moda e, quem sabe, a literatura de exportação: nosso produto mais querido. Sem fracassomania e com garra conseguiremos enfim realizar o sonho que sempre animou a elite nacional: sair da situação periférica para inserir-se na estrutura de produção mundial como parceiro ativo. Aquilo que não conseguimos na economia vamos fazer na cultura. Como se uma modernização cultural nos esperasse guiada pelos beats das TR-808 e pelos timbres analógicos dos Vintages.

JOGOS DE ESPELHOS
Tudo isso seria perfeito se não fosse uma estranha sensação de "mímesis invertida" que afeta boa parte de toda esta produção musical. O caso da música eletrônica brasileira é talvez o mais claro. Normalmente, ela sofria dos paradoxos de uma cultura reflexa, que procurava no centro europeu e norte-americano o padrão correto de criação. Uma estratégia que levava "pioneiros" do pop eletrônico como Harry, uma banda de Santos dos anos 80 que ninguém mais deve lembrar, a afirmar: "Tudo o que é feito lá fora é melhor. Logo, o negócio é copiar." O problema é que ninguém explicou por que gastaríamos nosso dinheiro comprando cópias se os originais estavam na prateleira do lado. Assim os pioneiros naufragaram.

Depois deles, ficamos esperando que algum dia acontecesse um "desrecalque localista", no melhor estilo Antonio Candido, e que a astúcia da razão transformasse nossa condição periférica em virtude. Transformação que passava necessariamente pela possibilidade de criar articulações inusitadas, misturas diferentes entre pretensos materiais sonoros locais (bossa, samba) e formas musicais globais. Fazer assim um jeito brasileiro de criar música eletrônica.

Mas a ironia suprema aconteceu no início dos anos 90. Contrariando todas as leis clássicas da geografia, os primeiros cruzamentos entre eletrônica e música brasileira ocorreram "lá fora". Discos como a coletânea Red, Hot and Rio, a virada eletrônica da new bossa do Everything but te girl, a virada bossa nova do trip hop e os primeiros hits de samba house ditaram a linha que se seguiria.

A fórmula não guardava muitos mistérios: o tecno - na sua versão mais mainstream - sempre foi uma música que se nutriu da reciclagem de clichês musicais. O principal alvo dos samplers continua sendo estas músicas reduzidas a imagens: trilha sonora de filmes e seriados de ação, velhos sucessos disco, música ambiente misturada com pitadas impressionistas (lembrem, por exemplo, do 808 State) etc. Neste sentido, o tecno é, por excelência, uma música visual, feita por meio de imagens musicais. E não é por acaso que ela foi tão facilmente absorvida pela publicidade.

A apropriação de materiais da música brasileira seguia essa lógica. O Brasil é um depositário inesgotável de clichês e todos estão presentes na sua música. Desde o paleolítico carregamos os mitos fundadores de um certo exotismo tropical, uma forma de gozo solar, uma sensualidade sem conflitos, um lugar onde todas as contradições se dissolvem no ritmo manhoso do batuque blablablá. Não é difícil encontrar estes motivos na antecâmara ideológica da música brasileira atual. Mesmo porque, a ausência de rupturas radicais, assim como a consolidação de um conjunto de standards e tiques formais no período pós-tropicália facilitou a transformação da música popular em veículo privilegiado de exposição de um certo conjunto de imagens fundadoras da nossa fantasmagoria social.

Era este imaginário que os DJs procuravam para alimentar um processo de consumo cultural que precisa continuamente de novas imagens fetichizadas. E foi fácil encontrá-las na música brasileira. Assim, a tecno bossa achou seu lugar na prateleira da indústria cultural mundializada. Uma prateleira na gôndola Latin Techno e ao lado das coletâneas Café del Mar, vindas diretamente do verão de Ibiza

Mas o movimento não estava completo. Como dizia Newton, tudo o que vai, volta e um dia acordamos com os DJs brasileiros mixando em cima dos discos de música brasileira. O esquema de construção, na maior parte dos casos, seguia o processo que já tinha sido testado com sucesso pelos DJs europeus. Daí a idéia de uma estranha mímesis invertida onde copiamos nossa própria imagem, vista pelo olhar do outro.

Não que isso seja necessariamente ruim. Na verdade, seria muito bom se toda esta produção não tentasse se vender sob o selo de garantia Made in Brazil. Um selo que sela o destino de sermos prisioneiros da nossa própria imagem. Talvez fosse mais interessante nos lembrarmos da lição de Paulo Emílio Salles Gomes sobre o Brasil: "Tudo nos é estrangeiro porque nada não o é." Ou seja, nenhuma imagem, nenhum conteúdo cultural é verdadeiramente brasileiro, porque o Brasil é apenas uma forma de desarticular conteúdos vindos de fora. Ao invés de tentarmos modernizar nossos clichês culturais, seria mais interessante nos livrarmos logo deles e passarmos a outra coisa.

Mas, pelo andar da carruagem, é bem possível que a divisão internacional do trabalho acabe transformando a música brasileira em especialista no processamento da sua própria imagem alienada. Como se estivéssemos em um casa de espelhos que não acaba nunca.

Vladimir Safatle é mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo.
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