Vladimir Safatle
Especial para o Correio
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"Eu tenho vergonha de ser francês." Esta foi uma das frases mais ouvidas nas ruas de Paris depois do anúncio do resultado do primeiro turno das eleições presidenciais francesas. Jean-Marie Le Pen, chefe do maior partido de extrema-direita e mundialmente famoso pelo seu discurso xenófobo, racista e anti-semita, alcançava 16,9% dos votos, indo disputar o segundo turno com Jacques Chirac: um político tão corrupto quanto Berlusconi ou o nosso Maluf. A esquerda tinha desaparecido nas sombras. Tratava-se da maior votação de um partido de extrema-direita em uma eleição presidencial européia desde a Segunda Guerra. "Uma França amedrontada triunfa", afirmou o editorialista do Libération, no dia seguinte. E talvez o mundo tenha de encará-la por um bom tempo. Ao contrário do que a mídia francesa procura veicular, o voto em Le Pen não é um voto de protesto, nem um simples sinal de descontentamento com a classe política. Como dizia Adorno, uma das lições que o nazismo deixou é a de que, às vezes, é estúpido ser inteligente. Pois os inteligentes sempre procuram argumentos finos para não verem aquilo que é evidente. Basta lembrar dos 15,3% que esta mesma extrema-direita francesa alcançou na corrida presidencial de 1995 e dos 14,4% na seguinte, de 1988. Isso demonstra como há um eleitorado fiel da extrema-direita que não apareceu ontem. Ou seja, este voto é ideológico e reflete uma mentalidade social arraigada. Ela pode ser encontrada, por exemplo, em Guebwiller: pequena e aprazível cidade de 11 mil habitantes do interior da Alsácia, cercada de vinhedos e vales cobertos de flores. Guebwiller não tem problemas de desemprego e não conhece algo como um "fluxo de imigração". O último árabe que passou por lá foi expulso por Carlos Magno na batalha contra os mouros, em 800 d.C. Ninguém dirá a você que é racista ou vai desfilar nas ruas com uniformes paramilitares e braço direito estendido. No entanto, a maioria de seus habitantes acredita que existem imigrantes demais, que a insegurança nas ruas é insuportável e que não há como aceitar o multiculturalismo da "Europa", que irá acabar com a exceção cultural francesa. Eles votaram em Le Pen, e vão continuar assim por um bom tempo. Isso nos lembra como o verdadeiro fascista não é o militante violento com pôsteres de Hitler no quarto. A base do fascismo sempre foi composta de cidadãos pacatos, que se sentem de repente ameaçados pela "insegurança" vinda das mudanças iminentes no meio ambiente em que vivem. E é graças a eles que descobrimos uma França fechada em si mesma, amedrontada pelo outro, pela diferença, pelo futuro. Apesar da extrema-direita estar em alta em vários países da Europa (Áustria, Itália, Suíça, Dinamarca, Noruega, Países Baixos e Bélgica), isto não exime a França de fazer algo de que ela sempre se esquivou: uma autocrítica severa a respeito das deformações de parcelas de sua sociedade em relação aos ideais democráticos. Outra autocrítica deve ser feita pela esquerda francesa. É verdade que Lionel Jospin conseguiu fazer uma das piores campanhas da história. Vazia, com vergonha de se assumir como esquerda, incapaz de colocar novas pautas no cenário político e totalmente prisioneira do debate direitista sobre segurança. Quando ele decidiu operar uma guinada à esquerda, já era tarde. Mas é imperdoável que grandes setores do eleitorado tenham deixado de votar por acreditar que, no final das contas, Jospin e Chirac eram a mesma coisa. Alguns chegaram a cobrir Paris com declarações de Pierre Bourdieu sobre a necessidade de "dar uma lição" na "falsa esquerda". Prova de que os intelectuais são às vezes os últimos a identificar os reais perigos nas sociedades em que vivem. Adorno again: às vezes é estúpido ser inteligente. O pior erro em política é não saber identificar as diferenças. Jospin fez o governo com maior número de reformas sociais da Europa (35 horas de trabalho por semana, seguro-saúde universal, casamento para homossexuais, lei de paridade, empregos-jovens etc.). Sua honestidade era absoluta. A capacidade de ouvir setores organizados da sociedade civil era real. Mas sequer os outros partidos integrantes da sua base de sustentação (verdes e comunistas) foram capazes de defender os resultados de seu governo. Totalmente dividido, 10% do eleitorado de esquerda preferiu votar em uma extrema esquerda cujo simplismo de visão política deixaria até o brasileiro PSTU envergonhado. É verdade que Jospin estava longe de ser o candidato dos sonhos de um eleitorado que clama por alguém mais combativo e disposto a procurar outros modos de relação com o capital. Mas, na nossa época, a primeira função da política é evitar catástrofes. E, por não compreender isso, a França será obrigada a escolher seu presidente entre um escroque e um fascista. |