Vladimir Safatle
Especial para o Correio
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A história do techno como movimento de cultura de massa ainda está para ser escrita. Mas é bem provável que seus últimos capítulos estejam sendo produzidos agora. Dificilmente podemos esperar alguma nova explosão criativa como aquela que animou os primeiros anos da década de 90 e consolidou-se por meio de selos como Mego, Warp, Rephlex e Mille Plateaux. Por outro lado, de uma forma silenciosa, alguns dos melhores músicos que apareceram nesta leva mostram um desejo real de abandonar o ditame das BPMs e partir para outro caminho. O que nos leva a perguntar quais as razões para o esgotamento do techno enquanto música e atitude. Sempre é bom lembrar que há um amálgama um pouco apressado fundado na confusão entre música eletrônica e techno. A música eletrônica é uma nebulosa indefinida que abriga tendências muito díspares para formar um todo. Ela sempre foi posto avançado da criatividade na produção cultural atual, pois trata-se de um dos poucos espaços em que músicos influenciados pelo universo pop podem olhar para outras direções musicais sem serem atropelados. Nomes como Autechre, Console, Oval, Aphex Twin são as melhores provas disso. Já o techno é um movimento de cultura de massa, no qual moda, atitude, design e música se misturam. Ele nasce em meados dos anos 80 simultaneamente de Detroit, Berlim e Londres, monopoliza a cena pop durante mais de uma década, vira assunto de coluna social, mostra um potencial mercadológico invejável e institucionaliza-se como forma. E talvez seja a hora de perguntar como esta institucionalização aconteceu. De todos os grandes movimentos da cultura de massa, o techno foi certamente o mais atípico. Enquanto todos os outros (punk, rap, psicodelismo, gótico etc.) operavam claramente com uma noção de "margem", estabelecendo diferenças claras entre seus modos de produção e aqueles próprios às formas institucionalizadas da cultura, o techno veio nos mostrar como a indústria cultural não conhecia mais margem alguma. Entre os anos 70 e os anos 90, ela aprendeu a ser rápida na absorção e exploração industrial de acontecimentos culturais promissores. Por exemplo, foi preciso esperar quase dez anos para que uma faixa do The Clash virasse trilha sonora de comercial de jeans. Com o techno, este tempo de espera caiu para algo em torno de dez meses. "Este é o sinal de que a indústria cultural e o mundo publicitário estão mais flexíveis e abertos", dirão Moby (foto) e seus seguidores. Mas, antes de fazer qualquer julgamento de valor, vale a pena acrescentar mais algumas peças ao dossiê. É interessante lembrar, por exemplo, como todos os outros movimentos da cultura de massa tinham uma certa orientação política funcionando como elemento determinante de suas atitudes. É claro que o anarquismo dos filhos punks de operários ingleses não durou mais do que um verão (de qualquer forma, pensem em quão improvável é hoje algum grupo de rock estragar a festa dos 50 anos do reinado da rainha-mãe). É claro também que a denúncia social que animava as letras de rap acabou se transformando em um grande desejo de inserção no mundo do consumo em sua pior versão (e não é por acaso que a grande maioria dos clipes de rap dos anos 80 seguiam o script "negros em casa de Beverly Hills com loiras peitudas e conversível na garagem"). Mas tais vernizes políticos indicavam ao menos um desconforto em relação ao presente das situações socioculturais. Com o techno, os parâmetros se inverteram. Seu apolitismo era, no fundo, uma forma de manifestar a confiança nos anos da onda rosa que dominou o mundo nos anos 90 com o fim das grandes polarizações mundiais. Neste sentido, nada mais emblemático do que a Love Parade, que nasceu para comemorar a queda do muro de Berlim e o advento de um mundo reconciliado. Uma promessa que vendeu bem. Seria engraçado fazer uma compilação com os milhares de editoriais de revistas ligadas à cena techno falando da iminência do advento de um mundo pós-ideológico, sem fonteiras e pronto a aceitar todas as formas de sexualidade. Como se todos os devotos de Anthony Giddens e Francis Fukuyama tivessem parado na secretaria da redação do Dazed and Confused. Isso demonstra quão ideológico era, no fundo, o apolitismo techno. Para seus defensores, o techno era a música que, com seus processos de sampleagem, permitiria todos os cruzamentos culturais possíveis. O primeiro hit techno, Pump of the Volume, vinha com samplers de Ofra Haza. Talvin Singh ficou famoso colocando um toque hindu na arquitetura de suas músicas. Moby viu Deus ao colocar spirituals em 140 BPMs. Mas notemos como todos estes cruzamentos seguem uma lógica extremamente particular. Eles não são contatos entre estruturas musicais diferentes, o que imporia mudanças radicais nos sistemas melódicos, rítmicos e harmônicos do techno. Colocar realmente em contato música árabe e techno imporia, por exemplo, uma mudança na idéia de desenvolvimento tonal que normalmente aceitamos. O fato é que o techno – na sua versão mais mainstream – sempre foi uma música que se nutriu da reciclagem de clichês musicais. O principal alvo dos samplers continua sendo estas músicas reduzidas a imagens: trilha sonora de filmes e seriados de ação, velhos sucessos, música ambiente misturada com pitadas impressionistas (lembrem, por exemplo, do 808 State) etc. Neste sentido, o techno é, por excelência, uma música visual, feita através de imagens musicais fetichizadas. Talvez a melhor definição deste processo de construção musical por imagens tenha vindo de Transglobal Underground (o nome já diz tudo) com sua cantora Natascha Atlas, especialista em empunhar a bandeira da música sem-fronteiras: "Nós não precisamos ir a outros países para descobrirmos novas músicas", dizia ela, "tudo já está à disposição no supermercado". Tal trabalho com material musical fetichizado e com clichês é extremamente interessante (vide por exemplo Miss Kitten), mas isso quando ele não vem acompanhado de tanto discurso ideologicamente comprometido prometendo a reconciliação com o gozo em uma festa de Goa trance.
DA DESPERSONALIZAÇÃO AO DJ STAR
MUITO ALÉM DO TECHNO |