Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, domingo, 23 de junho de 2002 • Página Inicial

Tendência Suicida

Impasses ideológicos do techno esgotaram potencial criativo do movimento

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Moby

A história do techno como movimento de cultura de massa ainda está para ser escrita. Mas é bem provável que seus últimos capítulos estejam sendo produzidos agora. Dificilmente podemos esperar alguma nova explosão criativa como aquela que animou os primeiros anos da década de 90 e consolidou-se por meio de selos como Mego, Warp, Rephlex e Mille Plateaux. Por outro lado, de uma forma silenciosa, alguns dos melhores músicos que apareceram nesta leva mostram um desejo real de abandonar o ditame das BPMs e partir para outro caminho. O que nos leva a perguntar quais as razões para o esgotamento do techno enquanto música e atitude. Sempre é bom lembrar que há um amálgama um pouco apressado fundado na confusão entre música eletrônica e techno. A música eletrônica é uma nebulosa indefinida que abriga tendências muito díspares para formar um todo. Ela sempre foi posto avançado da criatividade na produção cultural atual, pois trata-se de um dos poucos espaços em que músicos influenciados pelo universo pop podem olhar para outras direções musicais sem serem atropelados. Nomes como Autechre, Console, Oval, Aphex Twin são as melhores provas disso. Já o techno é um movimento de cultura de massa, no qual moda, atitude, design e música se misturam. Ele nasce em meados dos anos 80 simultaneamente de Detroit, Berlim e Londres, monopoliza a cena pop durante mais de uma década, vira assunto de coluna social, mostra um potencial mercadológico invejável e institucionaliza-se como forma. E talvez seja a hora de perguntar como esta institucionalização aconteceu. De todos os grandes movimentos da cultura de massa, o techno foi certamente o mais atípico. Enquanto todos os outros (punk, rap, psicodelismo, gótico etc.) operavam claramente com uma noção de "margem", estabelecendo diferenças claras entre seus modos de produção e aqueles próprios às formas institucionalizadas da cultura, o techno veio nos mostrar como a indústria cultural não conhecia mais margem alguma. Entre os anos 70 e os anos 90, ela aprendeu a ser rápida na absorção e exploração industrial de acontecimentos culturais promissores. Por exemplo, foi preciso esperar quase dez anos para que uma faixa do The Clash virasse trilha sonora de comercial de jeans. Com o techno, este tempo de espera caiu para algo em torno de dez meses.

"Este é o sinal de que a indústria cultural e o mundo publicitário estão mais flexíveis e abertos", dirão Moby (foto) e seus seguidores. Mas, antes de fazer qualquer julgamento de valor, vale a pena acrescentar mais algumas peças ao dossiê. É interessante lembrar, por exemplo, como todos os outros movimentos da cultura de massa tinham uma certa orientação política funcionando como elemento determinante de suas atitudes. É claro que o anarquismo dos filhos punks de operários ingleses não durou mais do que um verão (de qualquer forma, pensem em quão improvável é hoje algum grupo de rock estragar a festa dos 50 anos do reinado da rainha-mãe). É claro também que a denúncia social que animava as letras de rap acabou se transformando em um grande desejo de inserção no mundo do consumo em sua pior versão (e não é por acaso que a grande maioria dos clipes de rap dos anos 80 seguiam o script "negros em casa de Beverly Hills com loiras peitudas e conversível na garagem"). Mas tais vernizes políticos indicavam ao menos um desconforto em relação ao presente das situações socioculturais.

Com o techno, os parâmetros se inverteram. Seu apolitismo era, no fundo, uma forma de manifestar a confiança nos anos da onda rosa que dominou o mundo nos anos 90 com o fim das grandes polarizações mundiais. Neste sentido, nada mais emblemático do que a Love Parade, que nasceu para comemorar a queda do muro de Berlim e o advento de um mundo reconciliado. Uma promessa que vendeu bem. Seria engraçado fazer uma compilação com os milhares de editoriais de revistas ligadas à cena techno falando da iminência do advento de um mundo pós-ideológico, sem fonteiras e pronto a aceitar todas as formas de sexualidade. Como se todos os devotos de Anthony Giddens e Francis Fukuyama tivessem parado na secretaria da redação do Dazed and Confused. Isso demonstra quão ideológico era, no fundo, o apolitismo techno.

Para seus defensores, o techno era a música que, com seus processos de sampleagem, permitiria todos os cruzamentos culturais possíveis. O primeiro hit techno, Pump of the Volume, vinha com samplers de Ofra Haza. Talvin Singh ficou famoso colocando um toque hindu na arquitetura de suas músicas. Moby viu Deus ao colocar spirituals em 140 BPMs.

Mas notemos como todos estes cruzamentos seguem uma lógica extremamente particular. Eles não são contatos entre estruturas musicais diferentes, o que imporia mudanças radicais nos sistemas melódicos, rítmicos e harmônicos do techno. Colocar realmente em contato música árabe e techno imporia, por exemplo, uma mudança na idéia de desenvolvimento tonal que normalmente aceitamos. O fato é que o techno – na sua versão mais mainstream – sempre foi uma música que se nutriu da reciclagem de clichês musicais. O principal alvo dos samplers continua sendo estas músicas reduzidas a imagens: trilha sonora de filmes e seriados de ação, velhos sucessos, música ambiente misturada com pitadas impressionistas (lembrem, por exemplo, do 808 State) etc. Neste sentido, o techno é, por excelência, uma música visual, feita através de imagens musicais fetichizadas. Talvez a melhor definição deste processo de construção musical por imagens tenha vindo de Transglobal Underground (o nome já diz tudo) com sua cantora Natascha Atlas, especialista em empunhar a bandeira da música sem-fronteiras: "Nós não precisamos ir a outros países para descobrirmos novas músicas", dizia ela, "tudo já está à disposição no supermercado". Tal trabalho com material musical fetichizado e com clichês é extremamente interessante (vide por exemplo Miss Kitten), mas isso quando ele não vem acompanhado de tanto discurso ideologicamente comprometido prometendo a reconciliação com o gozo em uma festa de Goa trance.

DA DESPERSONALIZAÇÃO AO DJ STAR
Um outro fator interessante na história do techno foi uma certa inversão de discurso. Quando as primeiras composições de DJs apareceram, elam foram saudadas como uma certa reatualização do espírito punk. Pessoas com um conhecimento técnico mínimo de música podiam novamente compor. Isso acabaria de vez com a figura mistificada do músico genial que no rock alcançou seu auge na forma de guitar hero. Tanto era assim que boa parte desta primeira geração de produção musical não era assinada, não havia nada no label do vinil que indicasse o produtor. Quando eles eram assinados, os nomes eram fictícios e mudavam a todo momento. Mas esta ode ao anonimato, que em seus melhores momentos era uma boa crítica à autoria e à noção de valor em um mundo onde a produção cultural é uma questão mercantil, logo deu lugar à entificação dos DJs. Hoje, dificilmente há alguém que não conheça nomes como Carl Cox, Jeff Mills, Laurent Garnier etc. etc. etc. Afinal, seria impossível vender e fazer promoção de um trabalho sem rosto e sem nome. Este "desaparecimento do sujeito" no techno tinha, de uma certa maneira, alcançado a forma estrutural da música. Pela primeira vez na história, a música pop conseguiu se livrar do formato-canção e abrir espaço para músicas nas quais a repetição não tinha a mera função de fazer o ouvinte memorizar o refrão. Pois, em seus melhores momentos, a repetição no techno tem o papel de produzir esquecimento, e não de operar processos de rememoração. Vale para o techno o que Andy Wahrol dizia: "Gosto das coisas que são sempre exatamente iguais. Pois quanto mais você vê exatamente a mesma coisa, mais o sentido escapa e mais esvaziado você se sente". Esta maneira de trabalhar a repetição como esquecimento de si foi, sem dúvida, um dos grande trunfos do techno e o colocava na linha direta do minimalismo de Steve Reich e John Adams. Ou seja, o ponto mais criticado do techno pelos seus detratores era, talvez, o que ele tinha de mais interessante.

MUITO ALÉM DO TECHNO
Hoje, quinze anos depois da primeira onda techno, vale a pena perguntar o que podemos esperar de um estilo cada vez mais institucionalizado. Um disco que saiu há pouco tempo pode nos dar alguma indicação: Drukqs, de Aphex Twin. Richard D. James apareceu sob esta alcunha no início dos anos 90 como um dos músicos mais promissores da Warp. Seu estilo, em que batidas desconstruídas e hiperaceleradas misturavam-se a melodias anos 80, fez escola. Hoje, ele retorna em álbum duplo marcado por músicas sem batidas, pianos distorcidos e pesquisas bem-estruturadas de timbres. O que há de interessante no trabalho de James é sua maneira de operar com os materiais musicais que escolhe. Todos os materiais estão fora do lugar: as melodias são frágeis demais para serem acompanhadas pelas linhas de baixo, as estruturas rítmicas são desconstruídas demais para irem para a pista de dança, as músicas sempre são cortadas e seu desenvolvimento estancado. Há uma pulsão de destruição que faz com que cada elemento musical tenda a anular o resto. Desta forma, James impede intuitivamente a fetichização do material musical com que trabalha e consegue criar estruturas inusitadas, pois totalmente improváveis. Um bom exemplo é Vord'hosbn, a segunda faixa do primeiro disco. Este modo de trabalho marcado pela negação é um bom recomeço para repensarmos uma música eletrônica para além do techno.

Vladimir Safatle é mestre em Filosofia e compositor.

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