Vladimir Safatle
Especial para o Correio
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"Não faça parecer real, até que se torne real". Este é o conselho que o diretor de cinema dá à garota que vai fazer seu primeiro teste para tornar-se atriz. A garota é Betty Elms: uma das duas protagonistas de Mulholland Drive, o mais audacioso filme de David Lynch. Este é um conselho mais precioso do que aparenta. Ele nos dirá porque só um tempo como o nosso poderia produzir um filme como Mulholland Drive. Um dia alguém irá escrever um livro sobre a psicologia dos funcionários da empresas de distribuição cinematográfica. Então, talvez possamos descobrir porque eles teimam em dar nomes estúpidos para filmes que não entendem. Cidade dos Sonhos é um exemplo clássico deste sintoma patológico. Mulholland Drive é extremamente pertinente à natureza do filme e remete a um dos elementos centrais dos filmes de Lynch: a estrada. Ela não está presente apenas em A Estrada Perdida, de 1997. Coração Selvagem e Uma História Real, só para ficar entre os mais evidentes, são filmes estruturados como um road movie. O fato é que Mulholland Drive também é algo como um road movie, e não é por acaso que placas de trânsito, indicações de ruas e outros sinais de deslocamento aparecem de maneira tão recorrente no filme. Basta lembrarmos que um road movie é, na verdade, a história de um processo de formação. Nós seguiremos alguém que irá fazer uma viagem e chegará ao seu destino, mas nesse trajeto ele irá se deparar com um acontecimento que destruirá seu antigo e limitado horizonte de compreensão. Dessa destruição, ele sairá transformado em outra pessoa. Depois dessa viagem, ele nunca mais será o mesmo. Neste sentido, Mulholland Drive é o road movie perfeito ou, talvez, o único road movie sobre a impossibilidade de um road movie. Costuma-se dizer que Mulholland Drive não tem uma história. Se analisarmos bem, o filme tem uma história que chega a ser relativamente simples. Betty Elms chega a Hollywood vinda de uma pequena cidade do Canadá. Ela quer ser alguém: "Uma atriz ou uma estrela", é o que ela diz. Seu corpo recém-egresso da adolescência denuncia a vontade de chegar a portar aquilo que faz de uma mulher um objeto de desejo. Durante dois terços do filme ela não cansará de repetir que tudo está correndo como em seus sonhos. Tudo se passa como uma viagem que apenas repete as imagens perfeitas do folheto de turismo. Mas Betty encontra uma mulher que parece saída dos filmes de Rita Hayworth. Ela não sabe de onde veio, seu nome é falso, sua memória foi apagada em um acidente de carro. Tudo o que ela tem é uma bolsa cheia de dólares e uma chave azul. Nada mais previsível: uma quer ser alguém, a outra não sabe quem é mas tem beleza cinematográfica, trejeitos de estrela e dinheiro, ou seja, tudo o que faz alguém ser. Na verdade, uma quer ser aquilo que a outra já é sem saber. Mulholland Drive funciona assim como um road movie de mão dupla: uma mulher quer construir uma história do presente para o futuro, a outra quer reconstituir sua história do presente para o passado. Entre as duas há um filme que deve ser feito, mas ninguém se entende sobre quem deve ocupar o lugar da atriz principal. Por enquanto, o lugar da mulher está vazio. A atriz foi dada como morta. Mas o filme deve continuar e alguém deve vir ocupar o lugar que ficou vazio, mesmo que para isso devamos preenchê-lo com personagens que estão apodrecendo. "Não faça parecer real, até que se torne real". Este é o conselho que o diretor de cinema deu à garota que foi fazer seu primeiro teste para tornar-se uma atriz. E, realmente, durante dois terços do filme, nada parece real em Mulholland Drive. Todos os personagens parecem falsos ou caricatos. Cada um nos dá a impressão de ter saído de um filme que já vimos: o diretor de cinema usa roupa preta e óculos de intelectual como todo diretor de cinema, os policiais são estúpidos como todos os policiais, os managers da indústria cinematográfica são mafiosos como todos os managers. Os personagens são carregados demais e às vezes parecem lutar contra qualquer coisa de sobre-humano para poderem repetir suas falas e desempenhar seus papéis. Tudo parece ter sido reaproveitado, como em uma liquidação de antigos clichês da história do cinema que já não funcionam direito. Mas há uma impressão ainda mais forte que atravessa Mulholland Drive. É difícil não nos sentirmos diante de um filme que, de uma certa forma, já deveria ter acabado. Nesse sentido, a cena paradigmática é o primeiro teste de Betty Elms na sua trajetória para ser alguém. O produtor do filme é um velho arruinado, o galã com o qual ela deverá atuar é um sessentão com bronzeado estilo Miami Vice, o diretor do filme é alguém que está repetindo a mesma coisa há anos. Betty Elms parece ter chegado tarde demais, seu filme ficou velho. Da mesma forma que nossos filmes ficaram velhos demais. Os quadros de sociabilização se mostram incapazes de suportar uma produção de identidade sem produzir um resto que não se enquadra em cena alguma. Este é um dos pontos de genialidade do filme e que diz respeito ao processo geral de criação de David Lynch. Na mão de outro cineasta, este argumento de uma garota ingênua que vai para Hollywood a fim de vencer na vida e encontra uma mulher misteriosa e com amnésia viraria uma história trivial. Mas Lynch sabe que esta história não pode mais ser contada – ela está gasta demais – e trata-se de mostrar isso a todo momento. A forma da estrutura narrativa nega o conteúdo da história que ela deveria suportar. É desse conflito que vem a impressão irredutível de estranhamento próprio a Mulholland Drive. Vivemos em um mundo onde investimos libidinalmente em ruínas. Nesse sentido, Lynch nos oferece uma via de sublimação ao se servir de um dos dispositivos maiores da arte contemporânea, cujo eixo de desenvolvimento está exatamente em forçar suas margens ao introduzir instabilidade naquilo que, de tão visto, parecia não poder significar mais nada. O que era muito familiar deve se transformar em estranho. Um procedimento que Lynch já havia levado ao extremo em Twin Peaks com sua história da pequena cidade pacata e ilídica que, aos poucos, vai se dissolvendo em uma rede de conflitos obscuros e interferências sobrenaturais. Ao saber instaurar conflito na utilização de formas gastas da história do cinema e de uma gramática vazia, Lynch é capaz de filmar com ruínas.
SILÊNCIO E SEXO Silêncio é o nome de um teatro de ilusões que aparece na última terça parte do filme. É lá que terá lugar o verdadeiro acontecimento da viagem de Betty Elms. É lá que ela vai realizar esta mudança de identidade que é o destino de todo road movie. Na verdade, tudo aconteceu um pouco antes. Betty está deitada na cama, pronta para dormir. A outra mulher, Rita até então, está lá, encostada na porta, a fragilidade feminina envolta em uma toalha. "Por que você não vem dormir aqui?", diz Betty. Segundos depois as duas estarão transando. "Esta é a primeira vez que você faz isto?", pergunta Betty. "Eu não me lembro", diz Rita. Mas nós sabemos que é a primeira vez que Betty faz isto. E depois disso feito ela não poderá mais voltar atrás. Rita terá um sonho: "No hay banda, no hay orquestra", é o que ela dirá enquanto dorme. Ao acordar, ela levará Betty a Silêncio. Essa não é a primeira vez que sexo aparece como lugar de verdade nos filmes de Lynch. Em Veludo Azul, havíamos seguido Jeffrey até a casa de Dorothy Vallens, uma misteriosa cantora de cabaré que não deixa de nos remeter à mesma constelação semântica de fragilidade e sedução de Rita. Lá, escondido dentro de um armário, ele descobre o ritual masoquista e incestuoso que liga Dorothy a Frank: um bandido violento e impotente. Ao se deparar com esta opacidade que marca tudo o que é da ordem do sexual, Jeffrey poderá completar seu destino. Em A Estrada Perdida, Fred Madison é casado com uma mulher novamente parecida com Rita. Ela se chama Renée. Tudo o que sabemos é que Fred matou Renée, isto depois de uma cena onde ele aparece suando e atônito depois de ter transado com sua mulher. No final do filme, algo desta cena se repete quando Pete, que está no lugar de Fred, conseguir enfim transar com Alice, que está no lugar de Renée. "Você nunca vai me ter" é o que ela diz ao final. Mas por um instante Betty teve Rita e o resultado foi que as duas chegaram a um teatro chamado Silêncio. Lá está um ilusionista que repete as mesmas palavras "No hay banda. Il n'y a pas d'orchestre. It's just illusion." Quando ela ouve estas palavras, Betty treme como se estivesse possessa. Nada estranho para alguém que passou o filme inteiro repetindo que tudo parecia um sonho perfeito. Mas Lynch não parece muito interessado em simplesmente fazer uma forma de crítica ao fetichismo ao mostrar que corremos atrás de imagens que, no fundo, são ilusões. Seu jogo é outro e muito mais radical. Esse jogo se desvela quando uma cantora latina entra no lugar do ilusionista. Ela irá cantar a capela, uma velha canção de amor. Mesmo tendo sido advertidas de que tudo seria ilusão, de que tudo certamente se tratava de um playback, Betty e Rita choram compulsivamente. E mesmo no interior de um universo de simulações e imagens gastas, algo acontece. Em meio a uma artificialidade que não teme dizer seu nome, uma experiência da ordem do real enfim tem lugar. Esta experiência não é a revelação de algo perdido ou de uma espontaneidade originária massacrada pelo nosso mundo industrial. Ela é o estranhamento daqueles que se vêem investindo libidinalmente em ruínas, daqueles que se vêem cantando palavras vazias, daqueles que se descobrem transando uma imagem perfeita. It's just illusion, sim, eu sei, mas não posso me impedir de chorar. E esta é talvez a grande lição que David Lynch tem a nos dar: toda arte autêntica conhece a expressividade do inexpressivo e sabe que só haverá experiência do real quando perdermos o medo de entrarmos em um teatro de ilusões. Mas Betty não realizou seu destino. É verdade que ela teve uma experiência que a transformou definitivamente. Agora, ela é Diane. Mas Diane é uma atriz fracassada e deprimida, ela nunca ouviu "This is the girl". Diane é ninguém, seu road movie não chegou a lugar algum. Tudo o que ela pensa em fazer é assassinar aquela imagem que nunca será sua e que sempre ocupará o lugar no qual ela gostaria de estar. Para Diane, a experiência do real foi uma experiência de destruição. Mas, para Lynch, ela foi uma sublimação. Porque o desejo de Diane continuou preso ao mesmo sistema de imagens que o aprisionou e o constituiu. Enquanto David Lynch nos mostrou que o único destino possível para nós consiste em aprendermos a construir estradas com ruínas. |