Vladimir Safatle
Especial para o Correio
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A posse de Luís Inácio Lula da Silva na presidência do Brasil foi um acontecimento histórico. Muito já se falou sobre a força simbólica da façanha em colocar um ex-operário de esquerda no comando deste que já foi chamado "o país dos bacharéis". A maioria do povo brasileiro assumiu o desejo de trilhar um verdadeiro caminho alternativo na condução das políticas sócio-econômicas do país. Este desejo por alternativas mostra que a tarefa de Lula consiste em governar mostrando o que pode ser, atualmente, uma verdadeira política pública de esquerda. É a partir de tal perspectiva que devemos nos perguntar sobre o sentido da polêmica indicação de Gilberto Gil para o Ministério da Cultura (MinC). Com certeza, ela não foi resultante de composição com os imperativos do mercado, até porque o mercado é absolutamente indiferente ao nome que vai ocupar o ministério com o menor orçamento da Esplanada. Lula poderia colocar o PSTU no Ministério da Cultura e nenhum operador de mesa de câmbio iria perder seu tempo discordando. Também não foi composição política, já que fere todas as leis do bem senso acreditar que um partido sem senador e com apenas 5 deputados federais tenha peso suficiente para exigir um ministério. Talvez nem valha a pena entrar no mérito da extrema sensibilidade política expressa pela sua primeira declaração como ministeriável, na qual Gil reclamava do salário de ministro ou ainda, da segunda declaração, na qual afirmava que levaria um gravador para compor música no gabinete. Mais importante é lembrar que, mesmo se olharmos para as qualidades técnicas de Gilberto Gil, a soma dos números continuará dando zero. Suas duas experiências administrativas não deixaram lembranças. Ao ser eleito vereador em Salvador, Gil ficou famoso por faltar a 63% das sessões plenárias. Não consta que ele tenha apresentado algum projeto de envergadura ligado a política pública cultural ou planejamento de financiamento para a cultura. Assim como nada consta em sua passagem pela Secretaria Municipal da Cultura de Salvador, a não ser a organização de eventos musicais tão relevantes quanto a turnê internacional do Casiopeia: um grupo de jazz fusion japonês. Mas poderíamos defender a nomeação dizendo que Gil é músico reconhecido internacionalmente e produtor cultural de longa data, o que o qualificaria para ser Ministro. Eis alguém que poderia democratizar o acesso à cultura através de uma política consistente de eventos. De fato, é isto que Gilberto Gil tem prometido atualmente através da defesa da lei de incentivos que data da era Collor. Neste sentido, vale a pena lembrar que o Ministério da Cultura não é uma Diretoria de Promoção de Eventos. Pensar que política cultural se resume a organizar eventos através, principalmente, de dinheiro de grandes empresas é um equívoco imperdoável para um governo de esquerda. Tudo se passa como se estivéssemos abrindo mão da oportunidade histórica de desenvolver uma verdadeira mudança na política cultural. No fundo, isto nos deixa com a impressão que a esquerda não pensou, de forma aprofundada, uma política pública para o setor. O que talvez explicaria a inexistência de um nome natural para ocupar a pasta, ao contrário do que aconteceu com o Ministério do Meio Ambiente. Não sabemos ao certo quais seriam suas ações concretas, a não ser a otimização e a racionalização do uso da máquina cultural disponível. O que ela acha de entidades como a Embrafilme, de museus como o Guggenheim, da política broa de milho, de leis como as que obrigam emissoras de TV a veicularem uma certa porcentagem de produção nacional de difícil acesso? Vale a pena ter uma política de criação de espaços para a produção da música erudita contemporânea, da dança etc.? Se os grandes ícones culturais da era FHC foram Carla Perez e Ratinho, quais ícones a esquerda quer deixar? Questões desta natureza continuam em aberto. Mas, voltando a Gilberto Gil, talvez a justificativa mais plausível para colocá-lo à frente do MinC tenha sido investimento em imagem. Duda Mendonça deve ter soprado no ouvido do presidente que cairia bem ao governo ter alguém simpático para aparecer na imprensa e levar em viagens internacionais. Alguém que representasse bem a vitalidade popular da cultura nacional. Se esta foi realmente a razão, só resta dizer que não haveria imagem mais equivocada e que está na hora da intelectualidade brasileira ter uma avaliação mais contundente a respeito da tropicália e de seus resultados. Ao ser confirmado no cargo, Gil afirmou que agora a tropicália estava no poder. Na verdade, nos últimos vinte anos, a tropicália nunca esteve fora do poder. Não se trata apenas de constatar a continuidade de uma relação faustiana entre seus expoentes maiores e os donos do poder, como Antonio Carlos Magalhães, Roberto Marinho e o próprio Fernando Henrique Cardoso. O fato é que há muito a tropicália virou a expressão máxima do establishment da indústria cultural brasileira. O que não poderia deixar de ser diferente, já que sua tentativa de instaurar uma dialética entre arte e mercadoria entrou em colapso a partir do momento em que ela foi operada no interior da forma-mercadoria sem modificar suas estruturas maiores. A bênção de Caetano Veloso em relação à axé music está longe de ser casual. Por outro lado, nenhum movimento está tão comprometido com a repetição dos significantes-mestres que compõem o cerne da ideologia nacional quanto a tropicália. De uma certa forma, a cultura brasileira é mais conservadora do que a política brasileira. Desde o paleolítico, carregamos os mitos fundadores de um certo exotismo tropical, uma forma de gozo solar, uma sensualidade sem conflitos, um lugar onde todas as contradições se dissolvem no ritmo manhoso do batuque blablablá. Não é difícil encontrar estes motivos na antecâmara ideológica da música brasileira atual. Mesmo porque, a ausência de rupturas radicais, o medo do negativo e a consolidação de um conjunto de standards e tiques formais no período pós-tropicália facilitaram a transformação da música popular em veículo privilegiado de exposição de um certo conjunto de imagens fundadoras da nossa fantasmagoria social. Por tudo isto, em um momento histórico onde as expectativas de ruptura e de inovação podem enfim ser realizadas, a escolha de Gilberto Gil foi uma ducha fria naqueles que sempre se preocuparam com os rumos da cultura no Brasil. |