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Todos conhecem a fábula hindu sobre três cegos em volta de um elefante. Cada cego toca apenas uma parte do animal e tira suas conclusões. Assim, um cego toca a tromba e afirma estar diante de uma cobra. O outro, pega no rabo e deduz que se trata, afinal, de um cipó. O terceiro abraça a perna do animal e crê que o objeto da querela é na verdade uma árvore. Esta tática de fragmentação é maravilhosamente utilizada quando certos setores da mídia querem esconder um fato grande como um elefante. Um dia, aparece a tromba, que é apresentada como uma cobra. No outro, é a vez do rabo, vendido como um cipó, e por aí vai. O resultado final é que ninguém vê o elefante, que passa incólume. Mas ninguém poderá acusar a imprensa de não ter apresentado os fatos.
Isso está ocorrendo com o debate escamoteado a respeito da herança deixada pelo governo passado na área da educação nacional. Durante anos, a educação foi vendida como prova máxima da eficiência gerencial tucana, motivo de prêmios internacionais, grandes projetos de reforma e loas da imprensa nacional. Sim, todos diziam que o país estava enfim dando grandes passos na modernização de seu sistema educacional. A imagem foi criada e não havia dado capaz de indicar o contrário. Quando, no decorrer destes oito anos, algum dado negativo saía aqui ou ali, quando descobríamos, por exemplo, que a qualidade educacional continuava na mesma e que os alunos brasileiros continuavam sabendo menos matemática e ciências que os alunos da Letônia e do México (último resultado do Pisa — Programa Internacional de Avaliação de Alunos), o governo logo se levantava para questionar a metodologia e anular o debate. Isso quando simplesmente não dizia que era isso mesmo, mas que oito anos eram muito pouco para a grande revolução prometida. Diga-se de passagem, só para contextualizar melhor a questão do tempo necessário, a história da república não conhece nenhum ministro da Educação, à parte Gustavo Capanema, que tenha ficado tanto tempo no cargo quanto o último.
Mas a partir de um certo momento não dava mais para esconder o elefante. Restou então dividi-lo. Assim, nos últimos meses, temos assistido à situação pitoresca que consiste em ver a imprensa divulgando, todas as semanas, mais um dado problemático sobre educação sem nunca juntar os pontos e determinar suas causas. Esta recusa sistemática em juntar os pontos é recusa em dizer claramente o nome do problema: o projeto educacional tucano foi catastrófico e deve ser repensado em suas bases. A herança é maldita, seus resultados são pobres e urge que a sociedade civil tome consciência disso para discutir o que ainda é possível ser feito.
Universidade: segunda prateleira à direita
O que dizer do resultado final dos três grandes níveis da educação nacional: o universitário, o médio e o fundamental? Sobre as universidades, tudo o que se pode dizer é: ‘‘Universidades? Ah, então, o senhor vai na segunda prateleira à direita e depois passa no caixa. Fique tranqüilo, pois aceitamos pré-datado.’’
A partir do diagnóstico correto de que era necessário aumentar drasticamente a oferta de vagas e o número de inscritos nas universidades, a sabedoria de então conseguiu criar uma situação verdadeiramente monstruosa. Em 1991, a Universidade de São Paulo (USP) era a maior universidade do país, com 31 mil alunos e outras nove universidades públicas estavam entre as 20 maiores. Desde 2001, a maior universidade do país é a Universidade Paulista (Unip), com 81 mil alunos, seguida da Universidade Estácio de Sá, com 60 mil alunos. Duas universidades privadas que têm um ensino de péssima qualidade, tanto é assim que a Unip tem a honra de ver 51,6% de seus cursos avaliados com nota C (que significa ‘‘mantenha distância, quatro anos da sua vida perdidos’’), enquanto a Estácio de Sá ganha esta difícil disputa com 60% de cursos premiados com um grande C na entrada. Além dessas duas pérolas, atualmente mais 14 instituições privadas aparecem no ranking das 20 maiores, incluindo um ‘‘centro universitário’’ de trocadilho infame: a UniverCidade.
Não se trata aqui de simplesmente criticar as universidades privadas, até porque o Brasil conhece instituições privadas de excelente qualidade e com grande investimento em pesquisa (PUC, FGV, ESPM, por exemplo). A questão é outra. Trata-se de perguntar: a quem beneficia esta expansão indiscriminada de instituições privadas de ensino superior? Com certeza, não ao país. O que o Brasil precisa não é de diplomados. O que precisamos é de conhecimento e pesquisa. Isso, nenhuma dessas universidades repletas de cursos avaliados em C e sem visão do que é uma verdadeira instituição acadêmica pode garantir.
No entanto, alguém poderia dizer: mas o governo anterior criou mecanismos de avaliação, como o provão, além do que, ele sustentou instituições de financiamento à pesquisa, como a Capes. Sobre a Capes, o que pode ser dito é que estamos diante de um desses órgãos do governo federal que sobrevive bravamente a todas as intempéries da vida nacional. Mesmo na ditadura militar e na era Collor, a Capes continuava subsidiando a pesquisa brasileira.
O mesmo não podemos dizer do CNPQ, que foi praticamente liquidado na era tucana. Sobre o provão, vale a pena lembrar como ele foi insuficiente para garantir um mínimo de qualidade no ensino público superior. Tanto que chegamos na situação em que estamos: 20% da pesquisa nacional continuam sendo realizados pela USP, os ‘‘centros universitários’’, que têm autonomia para abrir cursos sem investimento algum em pesquisa, proliferaram como vírus (só o DF viu, nos últimos anos, mais 42 instituições de ensino superior) e, depois do fim do vestibular e do aparecimento do ‘‘processo seletivo’’, vemos casos de analfabetos (isso não é uma metáfora) serem aceitos em cursos de jornalismo. Inclusive, são essas instituições que formarão futuros professores do ensino médio e fundamental, alimentando um círculo vicioso de má formação que afeta, principalmente, a educação pública.
É muito agradável lembrar da resposta dada invariavelmente pelo ex-ministro da Educação quando era perguntado sobre tal situação: ‘‘A concorrência do mercado regulará a qualidade’’. Sim, claro. E eu que ingenuamente acreditava que o critério e a fiscalização rigorosa de qualidade eram função do MEC. O mercado regula tão mal a qualidade que algumas das universidades que mais crescem não são lembradas exatamente pela excelência no ensino. Sendo o mercado o guia, fica a questão: se o aluno descobre, no meio do curso, que entrou em uma bomba, ele terá seu dinheiro e tempo de volta?
Para fechar o quadro, não esqueçamos da herança deixada no ensino público superior. O descaso foi tamanho que, no ano passado, as universidades públicas contavam com um déficit de 7 mil professores para funcionar normalmente. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que em 1991 era a segunda maior universidade do país, encolheu 10%. Cursos foram fechados por falta de professores e várias universidades entraram em um processo de obsolescência. Enquanto isto, a ‘‘grande reforma’’ na educação continuava.
Ensino fundamental: a grande ilusão
Normalmente, os defensores mais lúcidos do antigo projeto educacional diziam: ‘‘Há problemas nas universidades, mas os avanços no ensino fundamental são inegáveis. A evasão e a repetência diminuíram, todos os indicadores progridem, Parâmetros Curriculares Nacionais foram criados’’, e por aí vai. Convém apenas lembrar alguns fatores.
Primeiro, como em boa parte dos índices sociais do antigo governo, há números que progridem de maneira estável há décadas e não podem ser derivados diretamente das políticas implementadas nos últimos anos. Por exemplo, de 1991 a 2000, o analfabetismo passou de 19,7% da população para 13,6%. Mas, na verdade, isso só demonstra que o índice obedece a uma curva constante de decréscimo. Em 1960, a taxa era de 39,7%, em 1970, 33,7%, em 1980, 25,9%, em 1991, 19,7% e em 2000, 13,6%. Ou seja, a cada dez anos, desde 1960, o analfabetismo cai algo em torno de 6%.
Por outro lado, ninguém discute a alta qualidade dos PCNs com seus 230 pareceristas contratados só para elaborar o referencial curricular nacional para a educação infantil, mas o fato é que o problema da qualidade do ensino público continua. Sem entrar no mérito da degradação financeira da profissão de professor na escola pública e sem voltar, por exemplo, ao absurdo do veto presidencial à obrigatoriedade de filosofia e sociologia no ensino médio, um veto alimentado pelo MEC de então, é necessário sublinhar ao menos um ponto na questão da qualidade.
Sabemos bem, por exemplo, o que está por trás da diminuição da repetência e da evasão. Nos últimos anos, o governo federal implementou gradativamente uma política de progressão continuada nas escolas públicas. Trata-se de um eufemismo para ‘‘aprovação automática’’ que só serve para maquiar problemas e inflar números de excelência. Os professores simplesmente não podem mais reprovar um aluno que, na pior das hipóteses, vai para uma turma de ‘‘aceleração’’. Dessa forma, alunos são aprovados sem ter os requisitos mínimos para cursar a série seguinte sob o pretexto paternalista vulgar de que a reprovação causa danos psíquicos, como perda de auto-estima etc. Um psicologismo do mais baixo calão. O resultado é a constatação assustadora de que é possível encontrarmos alunos na 8ª série incapazes de saber, por exemplo, que pré-história vem antes da história contemporânea. Mais ainda. Podemos encontrar alunos que são simplesmente incapazes de ler um texto de seis parágrafos e compreendê-lo. Nesse contexto, dá para entender o número espantoso de analfabetismo funcional que encontramos atualmente, e por que 35% dos analfabetos passaram pela escola.
A respeito de problemas como esses, valeria a pena fazer algo que até agora ninguém fez: para sabermos as causas exatas da qualidade atual do ensino público, que tal perguntarmos aos professores do ensino público? Ninguém melhor do que eles para informar o verdadeiro impacto das políticas educacionais adotadas e quais as mudanças necessárias. Que tal perguntarmos, por exemplo: o alunos que chegam à 8ª série são mais informados e preparados do que há 10 anos? O que mudou? E que a culpa pela diminuição no nível de conhecimento dos alunos não seja colocada na sociedade contemporânea, dominada pelas imagens midiáticas alienantes, pela desagregação da família, pela desarticulação das tradições, pela apatia generalizada etc. Este problema é brasileiro. Vários países, que também participam das mesmas situações sociais da contemporaneidade, continuaram com uma exigência real de qualidade no ensino público e não chegaram no ponto em que estamos hoje. Mas, para resolvermos isso tudo, será preciso encarar o elefante.
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