Universidade de Brasília
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Na edição do dia 19 de julho deste suplemento, Rejane Xavier, ex-membro da equipe de redação dos programas de governo de Fernando Henrique Cardoso e ex-assessora do antigo ministro da Educação, saiu em defesa dos resultados do programa educacional implementado nos últimos oito anos. ‘‘Trabalhou-se muito, e bem’’, diz ela. Isso, sem deixar de lembrar, com toda a modéstia devida, que ‘‘há bastante a ser feito’’, mas ‘‘sem necessidade de demolir o que já foi construído’’. Claro, não vamos nos deixar levar por estes Bin-Ladens da educação (eu) que, animados por um ‘‘saudosismo elitista’’ e antimodernizador, vociferam ‘‘diatribes’’ e ‘‘discursos indignados’’ visando apenas destruir os honestos frutos de anos e anos de trabalho persistente e corajoso. Estes esperam milagres que nunca acontecerão, vêem coisas que ninguém vê, enquanto a professora Rejane, bem, ela tem a sabedoria paciente para compreender que ‘‘os resultados das medidas do último governo precisam de tempo para se fazer sentir’’.
Como vocês vêem, eis aí mais alguém que gosta de seguir à risca a primeira lição do já conhecido Manual de redação tucana: ‘‘Dê a impressão que o opositor é um louco rancoroso e coloque-se como o arauto da racionalidade do Ocidente: único caminho possível para a segurança e a felicidade’’. Veja bem, diz a professora Rejane, o ‘‘quadro é difícil e complexo’’, erros certamente foram cometidos, mas devemos ter uma crítica ‘‘construtiva’’. Para quem não é versado em eufemismos, a crítica construtiva é aquela que não toca em nenhum processo estrutural, mas contenta-se em sugerir um ajuste ornamental ali e outro lá.
De fato, em ao menos um ponto a professora Rejane tem razão: não creio que este tipo de crítica sirva atualmente quando o assunto é educação. O problema não está em ações pontuais realizadas pelo MEC de então. Algumas, por sinal, foram muito boas. Nesse sentido, fiz questão de citar os Parâmetros Curriculares Nacionais e, certamente, poderia citar outras. Mas a soma das partes nem sempre dá um todo, e boas ações isoladas não conseguiram imprimir mudanças substanciais na qualidade do ensino, já que a direção geral do programa educacional tucano estava absolutamente equivocada. Ela baseou-se, no final das contas, em uma tentativa de universalização do acesso ao ensino incapaz de garantir o mínimo de qualidade. É essa direção que merece uma crítica ‘‘radical’’, pois espero que tal estratégia nunca mais seja tentada novamente por um governo federal. Os números da professora Rejane não conseguem esconder este fracasso.
Alguma escola, nenhuma escola
Em um dado momento do seu texto, a professora afirma que eu esqueço sistematicamente ‘‘o enorme salto qualitativo (...) que levou milhões de crianças a passar de nenhuma para alguma escola’’. Eis aí uma verdadeira pérola que traduz muito bem o ideário tucano. Muito interessante esta maneira de chamar de ‘‘salto’’ a passagem do nada ao qualquer coisa; como se o simples fato de colocar crianças na escola já significasse um fantástico ‘‘salto qualitativo’’. Mais interessante ainda é descobrir que o dinheiro do Fundef (o mesmo Fundef apregoado como uma verdadeira revolução na educação) foi parar em alguma escola, e não em uma escola da qual possamos nos orgulhar.
Mas, para a professora Rejane, ‘‘as vitórias obtidas no campo da universalização do ensino não podem ser minimizadas’’. Para mim, é cômica a sugestão de que tal universalização teria contribuído para diminuir a desigualdade racial, isso quando o Saeb (Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Básico) mostrou, por exemplo, que, no período 1995/2001, a diferença do desempenho escolar na prova de português entre brancos e negros aumentou de 19,6 para 26,1 pontos.
Por outro lado, é sintomático o método utilizado pela professora para encontrar ‘‘vitórias’’ a todo custo. Vejam só vocês, ao ler o mesmo SAEB, ela enxerga uma ‘‘significativa estabilidade’’ nos níveis de proficiência dos alunos. Os números, entretanto, mostram que a média do desempenho escolar dos alunos de 3º ano caiu substancialmente, em matemática, de 290,01 pontos (1995) para 262,34 (2001) e, em português, de 281,94 pontos para 276,71. Na 4ªsérie, a derrocada continua: de 188,28 para 165,12 em português e de 190,62 a 176,26 em matemática. Isso em um sistema de avaliação cuja escala vai até 425 pontos. Na verdade, estamos diante de belos exemplos desta exótica língua tucana que transforma ‘‘queda’’ em ‘‘estabilidade’’ e ‘‘resultados medíocres’’ em ‘‘saltos qualitativos’’. Eis aí a segunda lição do tal Manual de redação: ‘‘Exercite durante todas as manhãs a primorosa arte da torção semântica’’. Pena que a realidade não acompanhe tais mudanças. Na verdade, o que a realidade mostra é que 59% dos alunos na 4ªsérie continuam não conseguindo ler e compreender sequer um parágrafo elementar e 52% têm profundas deficiências de raciocínio matemático. Este é o único ‘‘salto qualitativo’’ que encontraremos nas salas de aula da Vila Planalto, da Candangolândia etc.
Mas, como dizia Freud, há várias formas de ignorar o princípio de realidade. Por exemplo, quando o Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) indica com todas as letras o baixo desempenho dos nossos alunos e demonstra que 51% dos alunos de 15 anos estão no nível mais baixo de aprendizado, a professora se indigna: ‘‘Não é justo exigir das nossas crianças o mesmo desempenho das européias’’. Sim, mas eu só queria que elas tivessem o mesmo desempenho das crianças da Indonésia, da Albânia, da Tailândia, do México e da Letônia: todos países que se saíram melhor do que nós na avaliação do Pisa ampliado. Talvez a professora Rejane ache um absurdo comparar as crianças do Brasil com as da Albânia: este grande ex-farol do comunismo que passou por todo o tipo de atraso, instabilidade, desgoverno e loucura administrativa nas últimas décadas. Esta mesma Albânia — onde há até bem pouco tempo a definição de ‘‘matéria’’ presente nos livros didáticos de física era uma frase do camarada Lênin — tem crianças mais bem preparadas em ciências do que as nossas! E o que dizer do fato de a Indonésia gastar menos por aluno que o Brasil e, no entanto, ter alunos com melhores desempenhos escolares? Mas, justiça seja feita, as ‘‘vitórias’’ e os ‘‘saltos qualitativos’’ já conseguiram colocar nossas crianças na frente das crianças peruanas.
Ao invés deste triste espetáculo de tentativa de esconder catástrofes, creio ser mais produtivo para o país reconhecer a grave crise educacional herdada. Está na hora de chamarmos de gato um gato e mostrarmos a incapacidade do projeto educacional anterior em incluir, com um mínimo de qualidade, aqueles que estavam fora das escolas.
Universidades e mundos paralelos
Mas o ponto alto do artigo da professora Rejane diz respeito às universidades. Os números são absolutamente parciais. Por exemplo, seguindo a lógica peculiar do salto qualitativo, ela não compreende por que, para mim, ‘‘o crescimento de 62% no número de estudantes universitários, em seis anos, não acrescenta nenhuma qualidade à formação da juventude brasileira’’. Talvez isso fique mais claro se lembrarmos que, no último provão, 41,8% dos alunos participantes tiraram nota C (ou seja, diploma absolutamente sem valor). Em cursos com grande número de instituições privadas, temos percentuais de nível C ainda mais assustadores: psicologia (69,7%), jornalismo (54,9%) e administração (49,1%). Como vocês podem ver, um verdadeiro show de qualidade.
Em outro momento, ela insiste em defender a política anterior para as universidades públicas ao lembrar que o número de alunos cresceu 33% no governo FHC. Só que esquece de dizer que o número de professores não acompanhou tal crescimento. Ao contrário, herdou-se um déficit de 7 mil professores nas universidades públicas. É fácil imaginar o impacto desse descompasso nas condições de trabalho e na qualidade. Durante os anos tucanos, greves enormes foram feitas para sensibilizar o governo a contratar mais professores.
Já posso ver a professora Rejane dizer que não é verdade, que o governo cuidou, e muito, da qualificação do ensino superior público. Afinal, ‘‘dos cem mil alunos de mestrado e doutorado, 83% estão no sistema público de ensino superior’’ e ‘‘o número de trabalhos científicos publicados pelos nossos pesquisadores nas melhores revistas internacionais cresceu 98%’’. O detalhe é que o primeiro dado apenas mostra como o ensino privado (salvo honrosas exceções que nunca devem ser esquecidas) está longe de poder responder por uma parcela significativa da pesquisa brasileira, já que a universidade pública sempre foi responsável pela quase totalidade dos mestrados e doutorados. Quanto ao segundo dado, só gostaria de lembrar uma coisa. Se houve continuidade nas pesquisas brasileiras, isso se deve muito mais à tenacidade dos pesquisadores brasileiros (acostumados a trabalhar em condições adversas) do que a esta política governamental marcada pelo desmantelamento do CNPq, pela diminuição do número e valor das bolsas de doutorado e pelo contingenciamento de verbas de pesquisa.
Mas se a professora ainda tem alguma dúvida sobre a crise educacional da qual seu partido foi colaborador-mor, recomendo exercício simples: uma pesquisa com os professores. Vá às escolas e universidades e pergunte aos professores sobre a qualidade do ensino e as condições de trabalho. Talvez descubra que sua visão diz respeito a um mundo paralelo que tem muito pouco a ver com a realidade cotidiana das instituições de ensino no Brasil.
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