John Cage e o eu como problema

 

            John Cage é um típico caso de compositor que é muito mais conhecido do que realmente apreciado e ouvido. Poucos negariam que sua obra funciona como ponto de referência obrigatório para a compreensão da arte do século XX. Sua participação na cena artística norte-americana, seja através da música, da pintura, da dança (graças a suas parcerias com Merce Cunninghan) ou da crítica de arte foi, em alguns casos, decisiva. No entanto, treze anos depois de sua morte, o significado de sua obra ainda é uma incógnita. Talvez uma maneira de explorá-la seja compreendendo como esta obra extensa procurou dar forma a uma das aspirações maiores do século XX: livrar-se do eu e de tudo aquilo que ele poderia representar (dominação de si, hierarquização dos desejos, auto-identidade).

 

Retornar à origem    

 

Este eixo de compressão da obra de Cage abre-se a partir do momento em que vemos, em sua música,  a procura por uma forma capaz de operar um certo “retorno à natureza”. Como ele afirma, em um texto tardio : “Arte =  imitação da natureza em seus modos de operação”. Trata-se assim de procurar fundar a racionalidade musical em um impulso capaz de reconciliar a composição com os modos de operação do que ainda não ganhou as marcas da sociedade.

De fato, Adorno havia percebido claramente que, na música de Cage, encontrava-se este movimento crítico fundamental, esta “protestação contra uma cumplicidade cega da música com a dominação da natureza”. Neste sentido, a questão maior do Cage seria: o que é necessário destruir para que a natureza possa advir em seu modo de operação próprio?

Lembremos alguns traços da trajetória de Cage. Se procurarmos acompanhá-lo em seus passos, veremos que sua obra organiza-se em dois grandes momentos. O primeiro, que vai dos anos 30 até o início dos anos cinquenta, é marcado por algumas experiências seriais (Cage foi aluno de Schoenberg durante dois anos), explorações formais que tinham o ritmo e a pulsação como elementos estruturadores de síntese e composições por justaposição. A partir dos anos 50, Cage descobre o Zen budismo e coloca-se, cada vez mais, como um compositor dadaista que vê, em Erik Satie um precursor. Neste momento, impõe-se o uso deliberado do acaso, da indeterminação e da indistinção entre som estruturado e ruídos advindos da vida ordinária. É neste momento que a obra de Cage leva às últimas consequências seu projeto de crítica à racionalidade musical ocidental, projeto agora amparado por uma junção entre expectativas vanguardistas tipicamente modernistas e aspirações de espiritualização da vida cotidiana. Através da arbitrariedade do acaso, Cage procurava abrir espaço para um retorno ao ser que se “deixaria estar” na imanência do sonoro. Daí porque ele poderá afirmar : “Eu ví a arte não mais como uma forma de comunicação que parte do artista em direção ao seu público, mas como uma atividade na qual o artista encontra uma maneira de deixar os sons serem eles mesmos

Mas, se voltarmos à primeira fase de Cage, veremos que ela é extremamente instrutiva a respeito do que move seu projeto estético de retorno. Quando ainda era aluno de Schoenberg, Cage  deixa claro sua necessidade em : “encontrar um meio de fazer música liberado da teoria da harmonia, ou da tonalidade”. Esta recusa da harmonia como princípio estruturador da organicidade funcional das obras era radical. Não se tratava, para Cage, de abandonar o sistema harmönico funcional tonal em prol de outra forma de organização total, como, por exemplo, o dodecafonismo ou outra forma de pensamento serial. Tratava-se simplesmente de parar de pensar em termos de progressão, de expectativa e resolução. Isto significou para Cage, procurar construir músicas por justaposição de materiais. Em Cage, os cortes eram tão constantes que o material estava impossibilitado de desenvolver-se. Ele era apresentado de maneira cada vez mais desarticulada : arpeggios, sequências de oitavas, glissandos, pequenas repetições e modulações.

Já se insinuava, neste momento, aquela que será a direção fundamental da sua música. Direção claramente posta na afirmação : “A noção de relação retira a importância do som (...) eu comecei a me interessar não às relações – ainda que visse a interpenetração das coisas – mais creio que elas se interpenetram de uma maneira mais rica, mais abundante, se não estabeleço relação alguma”. 

Cage não poderia ser mais claro. Tratava-se de liberar o som de qualquer dependência de um pensamento da relação. Este programa só pode se realizar através da destruição de todos os fatores formais que bloqueariam nossa aproximação com esta “real natureza dos sons”, tais como: a distinção entre som e ruído, música e silêncio, entre acaso e necessidade, entre qualidades periféricas e centrais do som. Tudo isto caia necessariamente por terra. Cage sabia claramente das conseqüências que tal postura traria para uma reflexão sobre a racionalidade da forma musical: “Toda tentativa de excluir “o irracional” é irracional. Toda estratégia de composição que é inteiramente racional é irracional ao extremo”.

Pierre Boulez, muito mais interessado em levar o pensamento serial ao extremo, viu nesta desarticulação do sentido global da forma o convite para uma “improvisação determinada apenas pelo livre-arbítrio”, ou seja, diletantismo que enconbriria uma fraqueza fundamental na técnica de composição. Mas “livre-arbítiro” de uma subjetividade capaz de ter a seu dispor a integralidade de todo e qualquer material a partir de sua vontade, eis algo absolutamente estranho ao projeto estético de Cage. Ao contrário, esta destruição de todos os fatores formais próprios da música ocidental a partir da renascença era pensada por Cage como figura de uma dissoluçào do eu.

 

Livrar-se do eu

 

Este é um ponto fundamental. Durante boa parte do século XX, o eu, suas potencialidades expressivas e seus princípios de relação foram vistos exatamente como aquilo contra o qual a arte deveria lutar.  Esta foi, inclusive, uma das razões do rico diálogo tecido entre arte de vanguarda e psicanálise durante todo século. Todas eram práticas que procuravam confrontar o sujeito com algo em nós para além do eu. Confrontação fundamental para a cura diante da alienação em uma linguagem reificada e inibidora.

Poderíamos lembrar de várias figuras desta confrontação. Mas, no caso de Cage, a palavra mais correta seria “dissolução do eu”. “Fazer algo que escapa à dominação do eu” como maneira de formalizar o som em sua real natureza, esta era uma afirmação-chave para Cage. Daí porque sua música não é construída a partir de procedimentos de “improvisação”, mas é, na verdade, a construção de espaços de indeterminação.

A diferença entre os dois conceitos é absoluta. A improvisação está ligada à potencialidade expressiva do eu que, servindo-se da memória e de parâmetros musicais de base varia normalmente apenas um padrão musical : a altura. A indeterminação funda-se exatamente na negação da intencionalidade do compositor. Neste caso, a tarefa do compositor consiste simplesmente em definir regras de um dispositivo preciso que deve permitir a manifestação de um acontecimento musical imprevisível tanto para o músico quanto para o intérprete e para o auditor. Insistamos neste ponto: não há improvisação na música de Cage, há indeterminação. Isto nos exemplica não só sua conversão ao Zen budismo, mas também seu modo de realização do programa de retorno à origem.

Para além dos problemas e  impasses levantados pelo programa estético de Cage, talvez ouvi-lo hoje nos deixe invariavelmente com uma questão: ainda queremos ouvir este impulso de despossessão de si?  Quase conseguimos esquecer que a música, tão louvada pelo seu poder “reconfortante” e “terapêutico”, nem sempre quis ser vista assim.

 

 

Vladimir Safatle