Marcuse e as metamorfoses da pulsão

 

Vladimir Safatle

Departamento de Filosofia

Universidade de São Paulo

 

 

“Eros e Civilização” sempre ocupou um lugar peculiar no interior do pensamento filosófico do século XX. Embora tenha sido uma das operações mais acabadas de renovação de uma teoria social com fortes teores emancipatórios através do recurso sistemática à psicanálise freudiana, o livro de Marcuse nunca teve uma acolhida realmente favorável em meios psicanalíticos. No entanto, gostaria de insistir aqui em algumas operações sugeridas pelo livro de Marcuse, a fim de tentar compreender suas limitações e suas potencialidades inexploradas. Elas dizem respeito principalmente a três fatores: a maneira com que Marcuse compreende a reconfiguração dos processos de socialização na modernidade capitalista, sua construção de um horizonte de cura à alienação articulado através da clínica analítica e a leitura da teoria freudiana das pulsões enquanto base para uma história do esquecimento do Ser. Estes três aspectos são dimensões complementares de um mesmo problema, a saber, as condições para a constituição de um conceito positivo de razão capaz de fundamentar processos de racionalização que não se invertam mais em implementação de estruturas de dominação.

 

Pulsão e ontologia

 

Partamos de uma hipótese de fundo proposta por Bento Prado Júnior em sua leitura de Marcuse: “só poderemos compreender a crítica que Marcuse endereça a Freud, bem como sua paradoxal ‘ortodoxia’, se entendermos as metaformoses que sofre a idéia de desejo, na passagem do campo freudiano para o campo da dialética, onde Marcuse procura reinstalá-la” (PRADO JR., 1991, p. 33). Mas, de fato, mais do que uma metamorfose do conceito psicanalítico de desejo, o que assistimos em Marcuse é uma metamorfose mais profunda vinculada àquele que é o dispositivo central da metapsicologia freudiana : a teoria das pulsões. É uma reorientação geral da teoria das pulsões que anima a experiência intelectual de Marcuse. O que nos coloca diante de uma questão maior : o que deve acontecer ao conceito de pulsão para que ele seja pensável pela tradição filosófica?

            No caso de Marcuse, a resposta fundamenta-se em duas estratégias convergentes. Primeiro, trata-se de fornecer ao conceito freudiano de pulsão uma dignidade ontológica. No fundo, a metapsicologia estaria assentada sobre uma ontologia que, inclusive, se deixaria ler como momento maior de inversão dos eixos da história da metafísica ocidental. Assim, a metapsicologia freudiana traria, na verdade, a tese de Eros como essência do Ser. “ser é essencialmente lutar pelo prazer”, dirá Marcuse (p.118). Tese prenhe de conseqüências pois andaria na contramão desta tendência, hegemônica desde Platão que, ao compreender o Logos como determinação essencial do Ser; o fundaria através da submissão das faculdades sensuais e apetitivas. Submissão que não descarta a existência de uma tensão entre Eros e Logos no interior da qual o triunfo do Logos nunca silencia inteiramente a voz de Eros. É difícil não ouvir aqui o aluno de Heidegger pois, tal como em Heidegger, a história da metafísica aparece como locus de uma história do esquecimento do Ser. No entanto, este esquecimento está agora figurado através do recalcamento das exigências de Eros. Daí porque, como veremos mais a frente, apenas os poderes terapêuticos da Erinnerung poderiam dar conta do que é da ordem das exigências do Ser.

            De fato, a hipótese de uma ontologia no coração da metapsicologia freudiana não deixa de ter sua plausibilidade. Neste sentido, valeria a pena lembrar que mesmo Freud, tal reativo a qualquer sobreposição de campos entre filosofia e psicanálise não deixa de reconhecer o caráter especulativo da teoria das pulsões e de insistir, por exemplo : “que a sexualidade alargada  da psicanálise [ou seja, Eros enquanto primado fusional do Um] se aproxima do Eros do divino Platão” (FREUD, 1999, vol. XIII p. 32).

Por outro lado, a compreensão da pulsão como o cerne da ontologia não seria totalmente estranha, por exemplo, a Lacan. O mesmo Lacan que não via maiores problemas em afirmar : “eu tenho minha ontologia – por que não? – como todo mundo tem uma, ingênua ou elaborada” (LACAN, 1973, p. 69). Ontologia que, tal como em Marcuse, se desvela quando passamos a compreender a pulsão como uma “noção ontológica absolutamente central que responde a uma crise da consciência” (LACAN, 1986, p. 152). No entanto, a distância que separa a compreensão lacaniana e marcuseana de pulsão é grande e extremamente significativa.  Ela é a mesma distância que separa alguém cujo projeto ;e mostrar que “toda pulsão é virtualmente pulsão de morte” de alguém que vincula necessariamente a base da dinâmica pulsional a Eros.

            Mas devemos colocar aqui duas questões : o que Marcuse tem em mente ao ontologizar a pulsão freudiana e qual a configuração que a pulsão adquire no interior o projeto marcuseano ? A primeira questão tem uma resposta imediata : a estratégia de doação de dignidade ontológica ao Eros freudiano visa livrá-lo das configurações historicamente determinadas da libido e abrir assim a possibilidade de uma situação histórica na qual a libido não seja configurada tal como ela é atualmente. Em uma sociedade repressiva, a libido não pode, por exemplo, satisfazer-se na plenitude intersubjetiva de “relações eróticas duradouras entre indivíduos maduros” (MARCUSE, 1999, p. 175) instaurando assim uma racionalidade libidinal, na qual racional é o que sustenta a ordem da satisfação, uma racionalidade  distinta da racionalidade como figura da dominação da natureza e capaz de guiar a conduta na dimensão da praxis. Mas trata-se apenas de uma configuração regional de um conceito cuja realidade ontológica não se esgota na determinaçào desta situaçào histórica. O recurso à ontologia acaba por aparecer assim como peça chave de um projeto de emancipação. Pois o que tem realidade ontológica pode ainda ressoar como promessa não realizada.

            E o que dizer da segunda questão : como Marcuse compreende a pulsão freudiana? Primeiro, lembremos que Marcuse não quer simplesmente descartar o dualismo pulsional freudiano e ver, na pulsão de morte, um entulho metafísico obsoleto que cheiraria a pessimismo digno de romantismo alemão tardio, como o fizeram os neo-freudianos. No entanto, não se trata também de dar à pulsão de morte uma irredutibilidade tal que impeça a possibilidade da posição de um projeto de reconciliação entre a positividade de uma vida social não-repressiva e exigências pulsionais. O preço pago será pois a redução da pulsão de morte a uma figura do princípio de anulação de tensão : “o instinto de morte opera segundo o princípio do Nirvana  : tende para aquele estado de gratificação constante em que não se sente tensão alguma  - um estado sem carências. Essa tendência do instinto implica que as suas manifestações destrutivas seriam reduzidas ao mínimo, à medida que se aproximasse de tal estado (...) O princípio de prazer e o princípio do Nirvana convergem então. Ao mesmo tempo, Eros, livre da mais-repressào, seria reforçado; e o Eros reforçado como que absorveria o objetivo do instinto de morte” (MARCUSE, 1999, p. 202). Ou seja, se a pulsão de morte é apenas mais uma figura do princípio de anulação de tensão advindo da carência vital, então nada nos impede de transformá-la em uma simples figura distorcida de Eros no interior de uma sociedade repressiva, figura que se dissolverá assim que Eros instaurar uma sociedade não-repressiva. Ou seja, é Eros que tem dignidade ontológica, e não Tanatos pois, tal como para Kant, Marcuse não acredita em uma realidade ontológica da negação. Contrariamente a Hegel, para quem o resgate da ontologia passa necessariamente pela compreensão da natureza negativa da essência, Marcuse prefere ontologizar a pulsão através do esvaziamento da negação e tendo em vista, principalmente, uma certa concepção ontológica da natureza (interna) como pólo positivo de doação de sentido para as aspirações de racionalização da modernidade. A natureza (pulsional) apareceria assim como signo de autenticidade. No entanto, este esquema nada tem de hegeliano.

Lembremos, primeiramente, como, para Hegel, o negativo não é falta de determinação ou um positivo em si que aparece como negativo apenas no interior de uma relação opositiva (como no caso da noção kantiana de oposição real). Ao contrário, o esforço maior de Hegel consistiu em pensar um negativo em si, para além de sua oposição ao positivo. Restituição da dimensão ontológica ao negativo, através da negatividade de uma essência que aparece fenomenologicamente à consciência, entre outras figuras, através de um ir ao fundamento que é perecer.

            Esta restituição da dimensão ontológica ao negativo deve necessariamente servir para a reconfiguração do conceito de natureza. Podemos dizer, de maneira esquemática que, para a dialética, a natureza não é nem mera construção discursiva reificada, nem pólo positivo de doação de sentido, mas aquilo que nega as aspirações integralizadoras do conceito. Neste sentido, poderíamos insistir que a verdadeira concepção dialética de natureza talvez venha de Adorno, e não de Marcuse. Basta lembrarmos que, para Adorno, sendo a mediação posta como um processo universal, é simplesmente impossível à natureza aparecer como locus do originário ou do arcaico. Ao contrário, se “a natureza da qual a arte persegue a imagem não existe ainda” não é porque Adorno está entrando em uma teologia negativa, mas porque a natureza é definida exatamente como aquilo que impede a indexação integral dos existentes pelo conceito. A natureza é uma figura do negativo,  

Esta idéia da natureza como figura do negativo pode nos explicar afirmações como: “A arte só é fiel à natureza fenomenal (erscheinenden Natur) quando ela representa a paisagem na expressão de sua própria negatividade” (ADORNO, 1973, p. 106).  E se lembrarmos da afirmação adorniana segundo a qual os tempos carregados de sentido que o jovem Lukàcs ansiava o retorno também eram produtos da reificação, então devemos nos perguntar se o bloqueio de apresentação da natureza é na realidade um problema de ordem histórica ou ontológica. Pois se for um problema de ordem ontológica, então o acesso à natureza não é uma aporia, mas marca a manifestação de uma essência que só pode pôr-se como negação dialética da aparência.

Este conceito de natureza parece-me o fundamento para a compreensão correta do que está em jogo na teoria freudiana da pulsão enquanto resposta ao problema da natureza interna. Isto faz com que sejam simplesmente perdidas todas as questões fundamentais trazidas pela pulsão de morte freudiana, como a irredutibilidade da repetição aos processos de rememoração e a inadequação da negatividade da pulsão aos objetos empíricos (que pode aparecer como impulso de destruição dos objetos), inadequação muito bem lembrada por Bento Prado ao insistir que Marcuse simplesmente ignora a necessidade da distinção freudiana entre alvo e objeto da pulsão. Assim, para que a pulsão seja pensável no interior do projeto marcuseano faz-se necessário ignorar a relevância dos problemas trazidos pela repetição e pela  negatividade implícita na variabilidade estrutural do objeto da pulsão (que indica uma inadequação fundamental entre pulsão e objeto empírico). Variabilidade bem posta por Freud quando afirma que o objeto da pulsão: “é o que há de mais variável (variabelste) na pulsão, ele não lhe está originalmente ligado” (FREUD, 1999, vol. X, p. 215).

           

Intersubjetividade primária

 

Anulada a irredutibilidade da pulsão de morte, Marcuse pode desenvolver duas estratégias de leitura que estarão sempre presentes no recurso frankfurtiano à psicanálise (à exceção de Adorno). Primeiro, se Eros atravessa o mero sensualismo dos prazeres sexuais para se satisfazer através da constituição de unidades fusionais cada vez mais englobantes sem nenhum impedimento estrutural de Tanatos, então a verdadeira satisfação de Eros só ocorreria como “desejo social”, desejo de constituição de uma intersubjetividade fundada no reconhecimento mútuo de interesses reconciliados com as dimensões da praxis social. Aqui, o destino do desejo em Marcuse : “é definido no cruzamento entre a intenção que liga o sujeito desejante ao objeto desejado e a intenção social, como teleologia que conduz à constituição da bela humanidade universal” (PRADO JR, 1991, p. 45). Ou seja, a experiência de inadequação estrutural entre pulsão e objeto é simplesmente anulada em prol da crença na exaustão da pulsão no campo intersubjetivo.

Mas este horizonte de reconciliação intersubjetiva como destino natural da pulsão (horizonte que ainda não pode se efetivar mas que ressoa como promessa devido à insatisfação de Eros) não é mera utopia pois encontra seu paradigma em uma espécie de “intersubjetividade primária” fornecida pela positividade de uma relação fusional entre a mãe e o bebê que desconhece um princípio de realidade fundado na repressão. A necessidade do recurso a uma intersubjetividade primária é interessante por ter sido atualmente reaproveitada por Axel Honneth em sua tentativa de pensar o amor como primeiro estágio da constituição de estruturas sociais de reconhecimento recíproco. Nos dois casos, a possibilidade de uma reconciliação do desejo com um campo intersubjetivo de reconhecimento (seja ele posto apenas como promessa ou realizado com potência racional das práticas cotidianas de interação) exige que suas coordenadas já tenham sido postas pela experiência desde o início.

O raciocínio de Marcuse é simples : se o princípio de realidade fundado na repressão pulsional está vinculado inicialmente à internalização da Lei paternal e seus princípios simbólicos de organização, então no interior do fluxo libidinal simbiótico entre bebê e mãe poderíamos encontrar os vestígios de um outro modo de acesso à realidade. Marcuse fala de uma “atitude não de defesa e de submissão [pois estariamos em uma relaçào de interdependência intersubjetiva entre mãe e bebê], mas de integral identificaçào com o meio” (MARCUSE, 1999, p. 199), já que as relações no interior deste meio [que se restringe ao corpo da mãe] seriam organizadas a partir de uma moralidade libidinal-maternal que encontra sua realização na figura de um supereu materno. Moralidade libidinal que teria sido abandona a partir dos processos de socialização baseados na figura do supereu parteno com sua injunçòes de ameaça de castração. Este é um motivo recorrente em “Eros e Civilização”: as expectativas de reconciliação encontram seus parâmetros iniciais em relações simbióticas que teriam realidade tanto ontogenética quanto filogenética, isto a ponto de Marcuse falar de: “uma fase maternal da raça humana” na qual encontraríamos esta atitude de integral identificação com o meio.

Tudo se passa novamente como se Marcuse operasse com a tendência hedeiggeriana de crítica à razão que é repressão (ou esquecimento) do Ser (que é Eros) através de protocolos de retorno à origem e ao arcaico. Crítica à técnica que também se confunde com uma crítica à metafísica ocidental, tal como em Heidegger. No entanto, Marcuse re-configura o campo desta origem através de um inusitado recurso à Freud e à sua sobreposição entre ontogênese e filogênese.  O resultado é a entificação de relações de integração não-dominadora com o meio através da idealização do que está em jogo no interior das relações entre bebê e mãe.

Ou seja, todas as elaborações de Melanie Klein a respeito das posições esquizo-paranóide e depressiva no interior da relação mãe/bebê, posições que nos lembram como.há, desde o início, um jogo fantasmático de inversões de processos de destruição guiando a relação mãe/filho, são sumamentes descartadas. Vale a pena lembrar também como, em uma perspectiva lacaniana, as primeiras experiências do bebê não são de gozo pleno da vida, mas de incompletude devido à prematuração física da criança ao nascer e de alienação do bebê como objeto do desejo da mãe[i]..

Mas ao menos no que diz respeito a este problema da reconciliação intersubjetiva como destino natural da pulsão, Axel Honneth aparece como um inesperado continuador de Marcuse. Ele também precisa partir da hipótese de uma intersubjetividade primária e não-conflitual guiando as relações simbióticas màe/filho. No entanto, não se trata mais de validar a posição de um horizonte utópico de reconciliaçào, mas de fornecer as bases para uma teoria normativa do reconhecimento. Honneth sabe que os processos de socialização dependem de maneira determinante do ‘sucesso’ das experiências do bebê nas relações afetivas com a mãe. Assim, faz-se necessário que tal relação leve necessariamente a este : “estágio de segurança emocional que permite o sujeito provar, mas também manifestar tranquilamente suas necessidades e sentimentos, assegurando assim a condiçào psíquica do desenvolvimento de todas as outras atitudes de respeito de si” (HONNETH, 2000, p. 131). Honneth também economiza todas as discussões não relevadas por Marcuse e usa a teoria dos objetos transicionais de Winnicott para explicar como o bebê pode sair da plenitude de uma relação simbiótica com a mãe reconhecendo-a como um sujeito independente ao mesmo tempo em que ele se assegura do seu amor. Esta é uma discussão que desenvolverei em uma outra ocasião. Mas valeria a pena insistir que a teoria dos objetos trasicionais de Winnicott não pode fornecer as bases para uma teoria normativa do reconhecimento psicanaliticamente advertida porque ela termina na produção de ilusões aceitas no plano intersubjetivo, ou seja, ela é socialização de fantasmas, e não da pulsão ( o que Lacan, a seu modo, havia compreendido ao definir os objetos transicionais como objetos a do fantasma).

Por outro lado, valeria a pena lembrar que esta ““atitude não de defesa e submissão, mas de integral identificação com o meio” da qual fala Marcuse a fim de sustentar a existência de uma intersubjetividade primária poderia ser pensada de maneira diferente. Por hipostasiar Eros como tendência em direção a criação de unidades cada vez mais amplas, Marcuse compreende esta integração com o meio através de um modo muito particular de relações normativas de reconhecimento entre sujeitos, cujos problemas veremos mais a frente.

No entanto, diante de um problema semelhante, e operando também através da recuperação filosófica da teoria pulsional freudiana, Adorno chega a uma conclusão oposta. Ao falar sobre esta atitude de integral identificação com o meio, Adorno insiste não na integração hamônica e totalizadora, mas na: “tendência a perder-se no meio ambiente (Unwelt) ao invés de desempenhar aí um papel ativo, da propensão a se deixar levar, a regredir à natureza. Freud denominou-a pulsão de morte (Todestrieb), Caillois le  mimetisme” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 212).

Se a pulsão de morte indica, para Adorno, as coordenadas da reconciliação com a natureza, então devemos admitir várias conseqüências. Pois a pulsão de morte freudiana expõe a economia libidinal que leva o sujeito a vincular-se à uma natureza compreendida como espaço do inorgânico, figura maior da opacidade material aos processos de reflexão. Esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da qual fala Adorno pensando na pulsão de morte é o resultado do reconhecimento de si no que é desprovido de inscrição simbólica.

De fato, Freud falava de uma auto-destruição da pessoa própria à satisfação da pulsão de morte. Mas pessoa deve ser entendida aqui como a identidade do sujeito no interior de um universo simbólico estruturado. Esta morte própria à pulsão é pois o operador fenomenológico que nomeia a suspensão do regime simbólico de produção de identidades. Ela marca a dissolução do poder organizador das estruturas de socialização e que, no limite, nos leva à ruptura do eu como formação sintética. Neste ponto, Adorno está muito próximo de Deleuze, outro que procurou compreender a pulsão de morte para além da repetição compulsiva do instinto bruto de destruição. Pois é de Deleuze a afirmação, absolutamente central para aceitarmos a estratégia adorniana, de que a morte procurada pela pulsão é : “o estado de diferenças livres quando elas não são mais submetidas à forma que lhes era dada por um Eu; quando elas excluem minha própria coerência, assim como de outra identidade qualquer. Há sempre um ‘morre-se’ mais profundo do que um ‘morro’” (DELEUZE, 2000, p. 149).

Desta forma, o negativo da morte pode aparecer como figura do não-idêntico. Descontando o discurso a respeito das diferenças livres que guia Deleuze nesta colocação e que continua estranho a Adorno, temos aqui a mesma compreensão de que as funções sintéticas de Eus socializados não dão conta daquilo que aparece como experiência para um sujeito.


Bibliografia

 

ADORNO, Theodor. Ästhetische Theorie, Surhkamp: Frankfurt, 1973

ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 1985

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição, PUF: Paris, 2000

FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke, Fischer: Berlin, 1999

LACAN, Jacques, Séminaire XI, Seuil: Paris, 1973

___ ; Séminaire VI, Seuil: Paris, 1986

MARCUSE. Herbert; Eros e civilização, FTC; Rio de Janeiro, 1999

PRADO JR., Bento (org.) Filosofia da psicanálise, Brasiliense: São Paulo, 1991



[i] “A distância entre a identificação ao ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe, se ela não tem mediação (esta que normalmente é assegurada pela função do pai) deixa a criança aberta a todas as capturas fantasmáticas. Ele se transforma em objeto da mãe, e não tem outra função que a de revelar a verdade deste objeto” (LACAN, 2001, p. 373)