Como a propaganda ajudou a implodir a Vésper O livro “Propaganda, a arte de gerar descrédito”, editado pela Editora da FGV, provocou debates sobre a eficácia da propaganda e levou alguns publicitários a uma defesa apaixonada de sua arte. Para os que sairam em defesa da publicidade, a “propaganda brasileira é boa, uma das melhores do mundo”. Segundo eles, “quando a comunicação de um produto gera desgaste para a marca, o problema, na maioria dos casos, deve-se à pouca qualidade do produto em si e não à comunicação que é feita dele”. Esta posição parte do princípio de que os produtos e a propaganda que é feita deles são universos separados, estanques e incomunicáveis.
Prof. Armando Levy
Este artigo tem o objetivo de aprofundar essa discussão entre “propaganda boa” e “produto ruim”, discutindo um caso bem real, o da criação, lançamento e queda da Vésper.
Empresa inovadora
A Vésper tinha um projeto tecnológico inovador. Sua tecnologia, baseada em rádio, era similar à telefonia celular, mas seria usada para a instalação em tempo recorde de uma grande infra-estrutura para telefonia fixa. Com isso a direção da Vésper esperava conquistar em pouco tempo uma grande base de clientes, evitando gastos elevados com infra-estrutura como cabos, fios, postes, tubulações e ruas quebradas.
O sistema adotado pela empresa, o WLL, sigla de wireless local loop ou conexão local sem fio, em português, funcionava através da instalação de torres de rádio na freqüência de 1,9 GB, a mesma da telefonia celular. Essa torres conectavam-se ao centro operacional da empresa via conexão em banda larga. Dessa forma, os moradores das residências ao redor da torre não precisavam nada além de ligar um aparelho telefônico na tomada, dotado também de receptor e transmissor de rádio, para ter acesso ao sinal telefônico instantaneamente.
Bastante inovador, porque cortava a zero a necessidade de extensões de fios até a casa do cliente, o sistema tinha, no entanto, algumas limitações dramáticas. A primeira delas era a de que se tratava de um sistema claramente experimental, ainda pouco testado, que podia apresentar falhas de conexão entre a Vésper e as outras operadoras de telefonia, o que de fato ocorreu e continua a ocorrer ainda hoje. A outra limitação importante era o fato de que a linha da Vésper permitia uma conexão com a Internet a velocidades muito baixas, algo ao redor de 14,4 Kb, velocidade essa já na época totalmente suplantada por conexões discadas com velocidades ao redor de 56 Kb que podiam ser conseguidas com a linha da concorrente.
Os investimentos iniciais da Vésper, fixados em alguns bilhões de reais, permitiram criar uma infra-estrutura de torres bastante limitada. Na verdade, a maior parte dos recursos serviu para a implementação de centrais operacionais, além de um sistema de faturamento de contas telefônicas adquirido de uma grande empresa de tecnologia de informação que simplesmente não funcionava a contento e só veio a operar precariamente mais de três meses após o início das operações da empresa.
O fator realidade
No início do ano 2000, quando a empresa entrou em operação, qual era a realidade da companhia? Pouco mais de 60 torres implementadas em 17 Estados do País. Muitas localidades não tinham torre alguma. Na cidade de São Paulo, bairros densamente habitados, com forte demanda por telefone, como a Penha, na zona leste, tinham apenas uma torre instalada. Ou seja, na data de seu lançamento, a empresa tinha capacidade real de atendimento a não mais do que 120.000 clientes potenciais em todo o País. Em cidades como São Paulo, essa capacidade de atendimento ficava limitada a 70.000 residências.
Se esta era a situação da oferta de linhas da Vésper, na ponta da demanda a empresa sabia que as classes A e B sonhavam com uma segunda linha telefônica especificamente para uso da Internet, que crescia exponencialmente no início do ano 2000. Em casas conectadas à Internet e com moradores adolescentes, as famílias viviam o drama de terem a sua única linha telefônica permanentemente congestionada.
Diante de um quadro como esse, com uma capacidade de atendimento limitada e com um produto que não parecia atender a principal expectativa do público consumidor, o que seria recomendável fazer em termos de propaganda?
O fator propaganda
Nas reuniões de briefing com a agência de propaganda, os problemas do produto foram evidenciados: instabilidade técnica e impossibilidade de conexão à Internet eram os dois pontos críticos, que poderiam impactar as vendas negativamente. A Vésper e a agência de propaganda decidiram que esses problemas não seriam apontados pela propaganda. Para as equipes de comunicação da empresa e da agência, a melhor alternativa seria explicitar os problemas dos produtos aos consumidores no momento da venda, através do telemarketing, o que permitiria argumentar, explicar, justificar e garantir a venda. Para a agência de propaganda, o lado bom do produto, ou seja, o fato de que bastava comprar o aparelho telefônico e ligá-lo na tomada para se ter uma linha 100% funcionando, significava a libertação dos usuários de telefonia de antigos modelos que exigiam fios, cabos, instalações, plugs, tomadas, postes e buracos nas ruas. “O usuário de telefone no Brasil conquistou a liberdade!”, diziam os publicitários.
Com esse objetivo em mente, ou seja, mostrar a chegada da “liberdade” ao serviço de telefonia brasileiro, a agência criou uma campanha publicitária cujo principal slogan era: “Agora você tem liberdade de escolha”. Por sugestão da agência, a campanha previa anúncios massivos em televisão, jornais, revistas, rádios, outdoors, por todo o país, para marcar sem questionamentos o lançamento de uma grande empresa de telefonia.
Propaganda x Realidade
Duas centrais de atendimento telefônico estavam prontas e equipadas para receber as ligações dos futuros clientes, uma em Campinas (SP) e outra em Macaé (RJ). Cada uma dessas centrais reunia não mais do que 400 atendentes. Com a entrada da campanha publicitária no ar, a procura pelas linhas da Vésper configurou-se em um dilúvio. Para os homens da agência de propaganda, a forte demanda era a prova inequívoca da eficácia da campanha. Entretanto, considerada a elevada demanda por telefones fixos na época, é sensato supor que qualquer campanha, produzida por qualquer agência, se traduziria em vendas a curto prazo.
As áreas de atendimento a clientes recebiam mais de 160.000 ligações por dia, das quais só conseguiam atender 4.000. Dessas 4.000, menos de 5% podiam, de fato, receber uma linha porque as outras 95% estavam simplesmente fora da área de cobertura das torres. E entre as que podiam, muitos clientes acabavam rejeitando o serviço porque a linha não permitia acesso à Internet, a principal demanda das classes A e B.
Muitos operadores de telemarketing, desesperados com a perda de vendas, começaram a inovar na abordagem e convidavam o cliente a usar a linha da concorrente para acesso à Internet e a linha da Vésper para serviço de voz. O argumento deles era: “para voz, nosso serviço é imbatível porque permite atender duas ligações ao mesmo tempo, tem secretária eletrônica, tem identificador de chamadas”, serviços que a concorrente não tinha na época.
A verdade do produto, seus problemas técnicos, suas deficiências, contrariavam dramaticamente a afirmação da propaganda, que garantia a chegada da “liberdade de escolha”. Que liberdade de escolha era essa que obrigava o cliente a usar sua linha de voz para a Internet e ter que assumir um novo telefone para suas chamadas de voz?
Se você acompanhou um pouco da história da Vésper sabe que a empresa está sendo incorporada pela Embratel sem o desembolso de dinheiro. Ou seja, bilhões em investimentos, um conceito inovador em tecnologia, uma proposta de atendimento a clientes que evitava a saída fácil da terceirização, acabaram no depósito das experiências empresariais fracassadas. Antes disso, porém, mais de 2.000 profissionais perderam seus empregos e a dura verdade é que os acionistas jamais vão recuperar seus investimentos.
Análises? Justificativas? Poucas. Foram feitas algumas tentativas de explicar a queda como, por exemplo, culpar a Anatel por não ter permitido à empresa operar o serviço de SMS na freqüência 1,9 GB ou o alto grau de endividamento da empresa com fornecedores como Lucent, IBM, Northel, entre outros. No mais, um silêncio absoluto. Mas e a propaganda? Ora, segundo a agência de propaganda que coordenou a campanha, a publicidade foi um enorme sucesso! No entanto, a dura realidade é que a campanha da “liberdade de escolha” vendeu, a custos próximos a R$ 60 milhões, o que a empresa, de fato, não podia entregar. Gerou expectativas que a realidade se encarregou rapidamente de destruir. Até os poucos que podiam escolher entre Vésper e Telefonica perceberam que o produto da Vésper era inferior, apresentava falhas de conexão e, pior, não acessava a Internet.
O que teria sido sensato fazer em termos de comunicação, considerando a realidade da empresa? A Vésper tinha em mãos uma informação preciosa: sabia, com precisão cirúrgica, quais residências conseguiria atender porque alimentara sua base de dados com todos os CEPs das ruas que suas torres de rádio cobriam. Com uma informação como essa e conhecendo as limitações técnicas de seu produto, a empresa tinha como focar a comunicação. Além de ações de relações públicas com os públicos que de fato podia atender, a empresa podia ter considerado uma comunicação mais localizada, investindo em propaganda em jornais e rádios com penetração nas cidades onde tinha como prestar serviços, inclusive jornais de bairro e televisões comunitárias, sem falar em sites que se relacionam com públicos específicos identificados pelo CEP, o que resultaria em uma posição inovadora também em sua comunicação. No entanto, a Vésper optou por propaganda de massa, gerando expectativas irrealizáveis em escala astronômica.
Leia as cartas com reclamações contra a Vésper nas colunas de defesa do consumidor da época e de hoje e você saberá o que restou daquela propaganda maravilhosa, absolutamente equivocada e irrealista. A Vésper cometeu muitos erros e a propaganda que marcou seu lançamento foi, talvez, um dos maiores. Culpa da agência? Não apenas dela. Tanto a empresa quanto a agência imaginaram que tudo o que importava em um primeiro momento era vender, a qualquer preço. Eles esperavam que, após as vendas, os “pequenos” problemas técnicos inerentes ao produto pudessem ser resolvidos. Mas não foram. O resultado dessa aventura foi a destruição de uma empresa inovadora, que poderia significar, de fato, uma alternativa à Telefonica, uma alternativa que desse aos clientes a liberdade de escolha que a maioria ainda não tem.
Lições
A odisséia da Vésper, que ainda está por merecer uma análise mais realista por parte do mundo corporativo, coloca uma questão incomoda para os conselhos de administração das empresas. Os acionistas precisam decidir se querem resultados a curtíssimo prazo, que poderão ser comprometedores no futuro, ou se querem construir empresas sólidas, ancoradas em meio à sociedade, que lucrem, gerem emprego e bem-estar social. Se a opção é por empresas duradouras, socialmente importantes, então é mais do que hora de rever o uso de ferramentas como a propaganda de massa, que geram lucros extraordinários para alguns e terminam por destruir marcas e imagens corporativas como a da Vésper, cuja história empresarial não chegou a completar três anos a despeito de enormes investimentos em propaganda de massa.
Originalmente publicado em:
http://www.voxnews.com.br/dados_artigos.asp?CodArt=128 (Dezembro de 2003)
Questões do Caso:
1) Houve propaganda enganosa no caso da Vésper? Justifique.
2) Quais as principais contribuições da Vésper ao mercado de telecomunicações do país?
3) Pode-se dizer que a Vésper foi um caso de fracasso? Justifique.