OS DILEMAS DE JULIANA

Prof. Roberto Minadeo


Juliana Silva estava iniciando uma nova posição como assistente ao diretor administrativo de uma rede de lojas com atuação nacional. Tendo sido formada em Administração de Empresas, havia antes sido trainee de uma Loja de Departamentos, sem ter sido, no entanto, aproveitada - após seis meses em treinamento. Seus atuais deveres incluíam: preparação de análises financeiras, investigar as reclamações dos consumidores, e escrever apresentações para os executivos da companhia. Finalmente, recebera a incumbência de preparar estudos para que a empresa viesse a atuar em todo o Mercosul.

Nos primeiros dias de trabalho, recebeu o manual de políticas e procedimentos da companhia - com a indicação de seu superior para atualizá-lo. Ao longo de seus primeiros meses no trabalho, Juliana terminou lendo tudo. Um parágrafo logo na primeira página afirmava a filosofia da companhia: "O primordial em nosso negócio é uma postura ética de total honestidade com consumidores, empregados, e com todos os organismos do governo. Nada menos do que a verdade pode ser tolerado." Aos poucos, começou a ficar perturbada pelo que julgava uma discrepância entre a filosofia e as práticas da companhia. Depois de algum tempo de trabalho na renovação do manual, ela pediu um encontro com seu chefe, Augusto Pereira.

"Preciso falar-lhe sobre um abismo entre a filosofia que está no manual, e a realidade," disse Silva.

"Sobre o quê você está falando? Não estou familiarizado com todo o manual," disse Pereira.

"Estou me referindo à afirmação sobre a honestidade total com clientes, empregados, e governo. Estou aqui há cinco meses e, penso que não é bem assim..."

"Sobre o que exatamente você está falando? Você pode me dar algum exemplo de desonestidade?", perguntou Pereira, um pouco perturbado.

"Sim, por isso é que pedi esta reunião. Escrevi seis completas mentiras que recordo terem sido feitas por nossos gerentes."

"Vá em frente," diz Pereira.

"Bem, lá vão os casos que encontrei:

· Em dezembro, a administração disse aos balconistas, vendedores e empregados do escritório que seria omitido o bônus dos empregados este ano, porque os lucros foram baixos. Ainda assim, os gerentes receberam um bônus médio de onze mil reais cada um. Eu mesma fiquei indignada, pois quando vi o bônus do gerente de RH, pensei que também eu teria direito a algo.

· No início do ano, um balconista foi demitido. Não havia qualquer motivo para tanto. Não temos problemas financeiros. O rapaz não causava qualquer tipo de problemas. Pelo que circulou na empresa, a única razão é que o seu chefe não ia com a cara dele.

· Um de nossos clientes foi notificado de que seu pedido, que estava sendo transportado por uma de nossas próprias kombis, foi danificado porque o veículo havia sido abalroado por um caminhão. Na verdade, o motorista estava correndo e perdeu o controle sobre um pavimento escorregadio.

· Um inspetor da seguradora foi informado que nós apenas compramos pneus da mais alta qualidade para nossos caminhões. Pelo que sei, constumamos usar pneus recauchutados.

· Nós contamos a muitos clientes que eles recebem nossa - tarifa de cliente preferencial - quando na verdade todos os clientes recebem exatamente as mesmas tarifas.

· Um de nossos executivos recebeu uma sugestão de um subordinado, e a implementou. No entanto, perante a Diretoria, disse que a idéia fora dele - depois que tudo deu certo, é claro."

Sem conseguir esconder um certo sorriso de superioridade condescendente, Pereira disse a Juliana, "Todos esses exemplos mostram que você precisa pintar um pouco a verdade para manter-se nos negócios. A nossa filosofia se refere a mentiras que realmente prejudicam às pessoas - o que jamais ocorreu aqui. Irei desvendar essas pretensas mentiras uma a uma.

É verdadeiro que nós não tivemos lucros suficientes para pagar um bônus a todos. Dado que nossos gerentes tomam grande parte na companhia, nós demos a eles esse bônus. Eles ficam após o expediente, e muitas vezes aos sábados e domingos, sem receberem horas-extras. Sem esse bônus, estou certo de que os poderíamos perder para os concorrentes. Se você consegue explicar isso aos vendedores e balconistas, e ainda por cima sair sem arranhões, vá em frente, eu até marco a reunião para você.

Bem, houve uma demissão. Você quer que a gente saia por aí dizendo a todo mundo o que o cara aprontou? Você tem uma leve idéia de que o rapaz estava envolvido com receptação de mercadoria roubada? Ajuda muito que eu diga isso para todo mundo, só para acabar com a vida do rapaz? Agora, para nós, é algo grave demais para que ele continue por aqui. Se alguém quer acreditar que o demitimos porque o chefe não ia com a cara dele, não há problema, infelizmente, há gente para acreditar em qualquer coisa, e o chefe recebe bônus para engolir esse tipo de sapo.

Como contar a um cliente que um de nossos motoristas perdeu o controle por excesso de velocidade? Seria um caminho certo para um escândalo nos jornais. Além disso, a velocidade talvez não causasse o incidente, se as ruas do Rio de Janeiro não estivessem em péssimas condições. Bem, depois, quem acredita mesmo em qualquer tipo de desculpas? Só um cara muito ingênuo iria acreditar nessa ou em qualquer outra. Aliás, a empresa não pode se responsabilizar de alguém ter dito isso impensadamente, e eu até acho de mau gosto. Finalmente – o que eu julgo como o único fato realmente importante desse episódio – não houve qualquer transtorno: apenas parte da carga foi perdida, e nós assumimos todos os custos ainda antes do seguro ser acionado. O cliente não mostrou qualquer insatisfação, o que poderia ele esperar a mais, o Papai Noel? Me diz como eu faço para receber o bom velhinho também na minha casa!

É claro que nós contamos às seguradoras que nós apenas compramos pneus de alta qualidade. Quando compramos pneus de baixo preço, nos asseguramos de que eles sejam de alta qualidade, apesar do baixo preço. Não há qualquer problema nisso. Você pode fazer as contas, e verificar que as seguradoras ainda ganham muito dinheiro conosco. Aliás, há muitas seguradoras loucas por ganharem o nosso contrato. Não fui eu quem deu permissão a quem faz fortunas com pneus recauchutados, isso é lá com o Governo.

Realmente nós dizemos a cada consumidor que eles estão recebendo uma tarifa preferencial. Isso os faz contentes, e eles não estão pagando uma tarifa maior. O princípio número um neste ou em qualquer outro negócio é manter o consumidor contente - e qualquer publicidade significa sempre algum tipo de ilusão. Sem isso, a vida iria perder quase toda a graça.

Bem, quanto à última. É claro que o executivo poderia dar o crédito ao subordinado. Você acha que o coitado iria ganhar algo com isso? Apenas iria ficar em evidência, e talvez sairia se gabando pelos corredores da empresa. Pelo que eu conheço das coisas, é bastante provável que o coitado logo ganhasse alguns inimigos importantes - e seria rapidamente esmagado pela concorrência interna. Você já teve algum inimigo para saber como é difícil sobreviver?

- Não, respondeu uma Juliana agora um pouco hesitante.

Prosseguiu Pereira: - Agora, quem se arriscou para implementar a idéia? Foi o executivo. E se algo desse errado? Não se esqueça que neste caso, o subordinado não iria sair gritando por aí que a brilhante idéia fora dele.

"Entendo o que você está dizendo, Augusto, mas ainda estou um tanto perplexa. Será que eu me enganei em todos esses casos?" Com essas palavras, Juliana - já quase chorando - se retirou abruptamente da sala.


QUESTÕES

1. Qual é sua opinião sobre a posição de Augusto Pereira de que seja preciso pintar um pouco a verdade para manter-se nos negócios?

2. Será que Silva está se portando adequadamente ao levar a seu chefe sua preocupação sobre as mentiras?

3. O que deveria Silva fazer em seguida?

4. Lembre um caso em que você não foi totalmente verídico, para resolver um problema, e no qual a inverdade não deveria ter sido usada.

5. Lembre de um caso oposto, ou seja, uma situação em que você falou toda a verdade, e se arrependeu depois - até porque você falou mais do que era necessário.