Algumas idéias sobre a defesa da Ordem Econômica no Brasil INTRODUÇÃO À medida em que o Estado vai deixando de ser um operador direto de diversos setores da atividade econômica - como a telefonia ou a energia elétrica - seu papel como regulador passa a ser cada dia mais importante. Cumpre destacar que essa atividade regulatória é típica do Estado, e que é uma tarefa normalmente relegada a um segundo plano quando ao mesmo tempo se é operador/empresário. O Estado regulador é um guardião fundamental da liberdade e da concorrência na atividade econômica, propiciando ao país um crescimento justo e equitativo. As políticas de defesa da concorrência devem, por um lado, evitar que as barreiras levantadas pelo governo sejam repostas por aqueles agentes que detém poder econômico e, por outro, reeducar produtores e consumidores de acordo com as regras de intensa competição que definem a existência de um mercado aberto. A quebra de monopólios estatais e o processo de desestatização vem resultando na instalação de órgãos reguladores de setores prestadores de serviços públicos como a Agência Nacional do Petróleo, a Agência Nacional de Energia Elétrica e a Agência Nacional de Telecomunicações. Esse processo é paralelo ao esforço do executivo de defesa da concorrência. Existem dois principais problemas no complexo relacionamento entre órgãos reguladores e defesa da concorrência. Em primeiro lugar, assegurar uma aplicação uniforme das políticas concorrenciais no país como um todo, sem risco de fragmentação das políticas setoriais. Em segundo, evitar situações em que duas autoridades entendem ter competência para tratar determinado assunto. Estas dificuldades são ainda maiores no Brasil do que em outros países porque o sistema de defesa da concorrência ainda se encontra em fase de consolidação e envolve três atores: o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e a Secretária de Direito Econômico (SDE), ligados ao Ministério da Justiça, e a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), do Ministério da Fazenda. Além disso, a definição do papel de cada um destes atores apresenta margens a dúvidas. Na Inglaterra os órgãos reguladores setoriais monitoram o cumprimento dos contratos de concessão de suas respectivas áreas. Assuntos concorrenciais são competência do Office of Fair Trading, do Ministério da Indústria e Comércio. Para evitar duplicação de tarefas, existem convênios que permitem uma divisão entre questões concorrenciais e questões regulatórias específicas de cada setor. Na França, na área de defesa da concorrência existe uma direção geral, ligada ao Ministério das Finanças, responsável também pela defesa do consumidor e fraudes financeiras. E há um órgão autônomo, o Conselho da Concorrência. A primeira agência reguladora foi a Autoridade de Regulação das Telecomunicações (ART) criada em 1997. A ART e os órgãos de defesa da concorrência se articulam através de uma lei que cria competências específicas para a agência e estabelece consultas recíprocas entre ela e o Conselho da Concorrência. Nos EUA, a relação é mais complexa entre reguladores setoriais a nível estadual e federal, e os principais órgãos de defesa da concorrência, que são a Divisão Antitruste do Ministério da Justiça e a FTC. As cortes americanas preferem dar a competência da autoridade concorrencial ao órgão regulador – desde que demonstrado que órgão foi criado para cuidar das matérias de defesa da concorrência. Além disso, diferentemente dos outros países, o setor petróleo pôde se desenvolver longe da ação estatal, e a primeira intervenção do Governo foi a pedido da indústria, e para regular o excesso de produção causado pela descoberta de um campo gigantesco – East Texas – em 1930. Assim, a cavaleiro da situação, o Estado pôde se dar ao luxo de designar o organismo que regulava o setor ferroviário para colocar ordem no caos da superprodução de petróleo – que coincidia com o início da Depressão, e levou os preços a menos de dez cents o barril. Em seguida, apresentam-se as principais leis brasileiras no campo da regulação econômica. I. – Lei 4.137, de 1962 Mesmo com algumas críticas ao projeto que serviu de base (Projeto 122, de 1948, do Deputado Agamenon Magalhães), em 1962, finalmente, foi promulgada a Lei 4.137. É criado, por seu artigo 8º, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) que tinha por incumbência a repressão e apuração dos abusos do poder econômico. De acordo com seu artigo 2º, a lei fornecia o caminho para que o CADE apurasse, investigasse, denunciasse e contivesse os abusos que eram caracterizados pela sua finalidade (dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros). Exigia-se, portanto, um rigoroso enquadramento às disposições legais. A repressão ao abuso do poder econômico a posteriori deixa de ser única, ou seja, há possibilidade de um controle a priori, como previsto no artigo 74: "atos, ajustes, acordos ou convenções entre as empresas, de qualquer natureza, ou entre pessoas ou grupos de pessoas vinculadas a tais empresas ou interessadas no objetivo de seus negócios que tenham por efeito" a dominação do grau de concorrência no mercado. A Lei 4.137/62 mostrou-se ineficaz (até o ano de 1975, apenas onze processos foram julgados pelo CADE). Um dos principais problemas derivou da atuação do Judiciário – que suspendia efeitos das decisões do CADE em decorrência dos mandados de segurança que as empresas condenadas impetravam. O CADE passa a ser visto, então, como um órgão que, quando fazia algo, era de pequena relevância. II. – Lei 8.158, de 1991. A intenção do governo brasileiro, ao sancionar a lei 8.158 de 8 de Janeiro de 1991, era permitir, dentro do novo modelo que se formava, que o mercado se auto-regulasse, aplicando suas próprias leis. Mas era necessário, ao mesmo tempo, evitar que fossem permitidas crises ou disfunções que colocassem em "xeque" o ambiente concorrencial, interferindo de forme negativa no comportamento dos agentes econômicos. A lei 8.158/91, resultado da Medida Provisória 204, de 2/
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1990, procurava celerizar o procedimento administrativo de apuração de práticas de violação à ordem econômica, com a criação da Secretaria Nacional de Direito Econômico (SNDE), ligada ao Ministério da Justiça, que tinha como função "apurar e propor as medidas cabíveis com o propósito de corrigir as anomalias de comportamento de setores econômicos, empresas ou estabelecimentos (...) capazes de perturbar ou afetar, direta ou indiretamente, a concorrência". A qualidade técnica das decisões do Conselho Administrativo da Concorrência – CADE – neste período, sofre um incremento, aumentando o número de práticas julgadas e mostrando aos agentes econômicos a existência de uma "autoridade antitruste" no Brasil. Entretanto, a atuação do CADE acaba sendo sufocada e diluída, pois a cultura do empresariado nacional via a legislação de defesa da concorrência como "um instrumento de ameaça de retaliação por parte do governo federal contra determinados setores da economia". III. – Lei 8.884, de 1994. A Lei de 1994 sistematiza a matéria antitruste, aperfeiçoando o seu tratamento legislativo. O CADE é transformado em autarquia federal, e é beneficiado com destinacão orçamentária própria. Dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, fortalecendo-o no monitoramento das práticas comerciais dos setores oligopolitizados. A atuação do CADE nos últimos quatro anos, vem assumindo uma linha contínua. Transparece uma acentuada preocupação para com a condução da estrutura do mercado e atos abusivos praticados por empresas em posição dominante. A lei brasileira é uma mistura do sistema europeu (no que se refere à caracterização do ilícito pelo objeto ou efeito) e norte-americano (no que tange a tipificação dos atos). Para que se considere um ato contrário à ordem econômica, basta (I) limitar , falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; (II) dominar mercado relevante de bens ou serviços; (III) aumentar arbitrariamente os lucros; (IV) ou exercer de forma abusiva posição dominante (artigo 20). A semelhança de comportamento não implicaria a existência de uma prática ilícita, mas decorreria da resposta "racional" de todos a uma determinada situação de mercado [...]. Qualquer um que possa praticar um ato restritivo da concorrência deverá ser atingido pelas disposições da lei, ainda que sua atividade não tenha fins lucrativos. Verifica-se no período atual que existe uma disposição para mudança quanto às relações comerciais tradicionais, que são baseadas em assimetrias de estruturas, como a imposição de condições de entrega, vendas casadas, diferenciação de preços e a solução cômoda de repassar à ponta o ônus de certas condições. Empresas de pequeno e médio portes, sem poder de mercado, viram-se motivadas a denunciar práticas antigas, como, por exemplo, a venda de matérias-primas ou produtos obrigatoriamente através de distribuidor (transportadora) do próprio fornecedor, enfrentando o risco de retaliação e mesmo de inviabilização de seus negócios. A Lei 8.884/94, embora seja vista por alguns setores como um impecilho às fusões e aquisições de empresas, concessões, privatizações e reforma do sistema financeiro, representa uma significativa melhora em relação às regras vigentes há alguns anos. Essa lei caracteriza-se como um avanço na direção da criação de condições administrativas para a implementação efetiva da política de concorrência, embora deva-se ressaltar que apenas o seu estabelecimento não seja capaz de eliminar os riscos decorrentes da concentração industrial, podendo, no entanto, minimizá-los. IV. – As Agências Reguladoras Corrigir as falhas de mercado tem sido o maior objetivo da regulação dos setores específicos na economia. A regulação certa, no caso adequado, pode viabilizar a concorrência. Assim, é "importante assegurar que a regulação apenas crie barreiras à entrada quando for considerado estritamente necessário para a correção das falhas de mercado, procurando ao máximo, maximizar os seus aspectos pró-concorrenciais". Nesse sentido, surge uma importante tarefa para as agências de concorrência: "a eliminação da regulação em mercados onde ela não é necessária, e onde é necessária (...), a agência pode trabalhar por uma forma de regulação que seja a menos restritiva e estimule o número máximo possível de concorrentes". No atual quadro legal regulatório, é o consumidor o credor máximo da prestação dos serviços públicos. É ele que ajudará na aplicação da Lei, fiscalizando o cumprimento das obrigações contratuais estipuladas às empresas que explorarão os serviços públicos, bem como a sua prestação. Vale ressaltar que tais serviços deverão assegurar aos agentes econômicos envolvidos no processo uma remuneração justa e adequada a fim de não inviabilizar a continuidade do processo regulatório. Os Serviços de Utilidade Pública (SUPs), onde se constata maior grau de atividade regulatória, apresentam maiores problemas devido a algumas características, tais como a demanda generalizada e inelástica, provisão dos serviços via estrutura de redes, separação entre atividades de geração e distribuição de serviços, que levam a constatação de um grau maior de atividade regulatória nesses setores. IV.1 – ANEEL e ANP O setor elétrico distingue-se do setor de telecomunicações devido a um razoável grau de maturidade tecnológica que aquele possui. Por ser um setor que apresenta obras civis volumosas, apresenta importantes questões concorrenciais relacionadas ao poder de mercado, aos monopólios naturais e a barreiras à entrada (volumes de investimentos). Para que esses problemas sejam contornados, é necessário que haja limites estabelecidos de forma dosada, já que a rigidez pode introduzir ineficiência tanto em economias de escala de curto quanto de longo prazos. O mercado de Energia Elétrica tem uma tendência a se interligar ao mercado de gás natural. No Brasil, atualmente, essas duas formas de energia estão sendo controladas por agências reguladoras diferentes (ANEEL e ANP) e as companhias não podem fornecer nenhum produto ou serviço que não sejam eletricidade e gás, respectivamente. A verticalizacão é uma questão que deve ser considerada por seus efeitos tanto em seu primeiro tipo (empresa de geração e de distribuição pertencentes ao mesmo grupo) quanto em consumidores eletro-intensivos que adquirem plantas de geração (discriminando preços, recusando-se a contratar com concorrentes ou não gerando energia para forcar seus competidores a buscar energia mais cara em outras fontes). Além das barreiras legais como a licitação e as condições técnicas, a tarifa de transmissão surge como obstáculo à entrada no campo da geração; dependendo do ponto em que a carga a ser suprida se situa e onde se instala a geração, o investimento pode ser, ou não, competitivo nesse segmento. IV.2 – ANATEL O rápido processo de inovação tecnológica verificado faz, no Brasil e no mundo, com que os limites do mercado da telefonia fixa tornem-se cada vez menos definidos. A defesa da concorrência e o processo regulatório são desafiados por essas transformações. Uma regulação anti-concorrencial é fundamental, mas uma regulação pró-concorrencial é um instrumento poderoso de universalização dos serviços de telecomunicações. Dessa forma, cria-se incentivos para expansão de oferta, aumenta a população que pode ter acesso ao serviço, os custos são reduzidos, as empresas tornam-se mais criativas do ponto de vista tecnológico e organizacional. O CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e a ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações) formam um grupo forte para garantir a concorrência no recém-privatizado mercado de telecomunicações do país. Mas é necessário assegurar uma atuação firme e independente de ambos, de modo que o resultado seja a concorrência livre. O Quadro abaixo aponta como os diversos Órgãos Reguladores podem atuar conjuntamente. Comparativo das Agências de Redução e do CADE Agência Natureza Jurídica Composição Competência Possível Atuação do CADE ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações) Autarquia especial vinculada ao Ministério das Comunicações. 5 conselheiros com mandato de 5 anos. Regular e fiscalizar o setor de telecomunicações. Atuação conjunta em atos de concentração bem como às infrações contra a ordem econômica. ANP (Ag. Nacional do Petróleo) Autarquia especial vinculada ao Ministério das Minas e Energia. 1 diretor e 4 diretores com mandato de 4 anos. Regular e fiscalizar as atividades relativas ao monopólio do Petróleo. A ANP deverá atuar com o CADE na repressão das infrações contra a ordem econômica. ANEEL (Ag. Nacional de Energia Elétrica) Autarquia especial vinculada ao Ministério das Minas e Energia. 1 diretor-geral e 4 diretores com mandato de 4 anos Regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica. BIBLIOGRAFIA RODRIGUES, Valesca Andrade: "Da Intervenção à Regulação: A Transição do Estado Brasileiro"; Capítulo III - pág 67 a 77. Prêmio Luis Eduardo Magalhães 1998: Brasil 500 Anos: Balanços e Perspectivas; Iº Prêmio. Massao Ohno Editor. São Paulo. 1999.