OS PERCALÇOS DO CADE
Exame/24 de Setembro de 1997 -pg. 138.
Prof. Roberto Minadeo
Temos acompanhado os esforços do Cade para promover o aumento da concorrência e para evitar abusos de poder no exercício da atividade econômica. O órgão foi reestruturado e, praticamente, recomeçou do zero. Daí a necessidade de conquistar os seus espaços - o que tem sido feito de forma brilhante pela nova equipe.
O tema da defesa da concorrência é uma preocupação mundial. A dissolução da Standard Oil em 1911 pode ser considerada um marco nesse tipo de legislação. Por exemplo, a recente fusão entre a Boeing e a McDonell-Douglas foi inicialmente alvo de duras críticas por parte dos europeus, preocupados com a viabilidade de o consórcio Airbus concorrer no mercado. Mas, mediante algumas exigências, as autoridades européias em pouco tempo aprovaram a fusão.
Poderia parecer que a existência de apenas dois fabricantes no mercado de aviões de grande porte seria uma limitação à concorrência Alguém poderia alegar que esses dois fabricantes entrariam em acordo para ter as companhias aéreas à sua mercê. Porém, os conluios entre fabricantes são coisa de romances de ficção dos anos 40. Em outras palavras, o fato de serem apenas duas empresas grandes significa uma briga de gigantes em cada encomenda. Enfim, a concorrência aumentou, em vez de diminuir. O resultado final foi o oposto ao que era esperado à primeira vista, com uma análise superficial.
Vejamos um caso oposto. Quantas padarias há no Brasil? Milhares. Qual a concorrência entre elas? Quase nenhuma. Em primeiro lugar, até muito pouco tempo atrás, o trigo e muitos produtos baseados nele eram controlados pelo governo, impossibilitando qualquer concorrência. Mas a própria natureza do produto e as características do comportamento do consumidor impedem a possibilidade de uma grande concorrência Como é a compra do pão para o nosso café da manhã? É uma compra de conveniência: pouquíssimas pessoas se disporiam a gastar sequer um minuto a mais para gozar de um pão alguns centavos mais barato. Em outras palavras, cada padaria tem um mercado quase que cativo para a venda do pão destinado ao café da manhã, formado pelas pessoas que estão à sua volta, e dentro desse mercado virtualmente não existe concorrência.
Portanto, o simples fato de serem milhares de padarias em um único país e apenas dois fabricantes de aviões de grande porte em todo o mundo não significa que há mais concorrência entre as padarias. Mostra apenas que esses únicos dois fabricantes de aviões precisam concorrer entre si, ferrenhamente, para realizar uma única venda. Já os padeiros trabalham muito, mas um padeiro do Leblon definitivamente não concorre com seu colega da Tijuca.
Dentro dessa lógica, portanto, qual o motivo de se dissolverem as associações Brahma-Miller e AntarcticaBudweiser? No caso do julgamento Colgate-Kolynos, houve empresas que publicamente se disseram afetadas e se fez preciso que o Cade entrasse em campo para julgar. Esse é o seu papel, o qual desempenhou muito bem. No caso das cervejarias, ao menos pelo que acompanhei pela imprensa, não vi companhias que seriam afetadas. Dai a surpresa com a resolução de que as associações fossem dissolvidas: se não há prejudicados, então não há necessidade de dissolver nada. O mercado deve ser entendido como formado por fornecedores e consumidores maduros e adultos. O Cade não pode ao mesmo tempo acusar e julgar: seu papel é de julgar apenas quando há partes em litígio, de modo a assegurar que haja concorrência e que não existam abusos de poder econômico. Portanto, seria inadmissível que ao mesmo tempo o Cade se arrogasse o papel de juiz e de promotor. Cabe uma ressalva: o Cade deve intervir automaticamente quando a empresa resultante de uma aquisição ultrapassar 20% do mercado. Novamente, não é o caso da aplicação dessa fórmula: tanto a Brahma quanto a Antarctica já possuem mais de 20% do mercado.
Considero extremamente positivo esse reinício do Cade, coincidindo com uma fase agressiva de mudanças na nossa vida empresarial. Era de se esperar uma fase de adaptação. Alguns percalços no seu início não são demérito algum para qualquer um dos membros da equipe. Porém, caso não haja uma superação de transtornos desse tipo, vejo o Cade como causador de possíveis problemas eventualmente até maiores do que aqueles por ele resolvidos.
Ao longo dos últimos anos virou moda falar mal dos "elefantes" tipo General Motors ou IBM. Praticamente todo livro sobre negócios precisa atacar uma das duas, ou ambas, enaltecendo, paralelamente, as empresas japonesas. Bem, não se pode esquecer que a IBM ficou durante 12 anos sob investigação de organismos de "defesa da concorrência" nos Estados Unidos. Milhares de documentos eram enviados, milhares de reuniões foram efetuadas, milhões de dólares foram envolvidos por custas judiciais e honorários advocatícios. Que beneficio chegou ao consumidor? Nenhum! Mas com certeza isso brecou a Big Blue. O mesmo ocorreu com a GM. Os órgãos de "defesa da concorrência" as impediram de crescer.
Portanto, os perigos a que aludi não só existem como já se manifestaram. Com certeza, o Cade aprenderá sobre os erros dos seus pares dos Estados Unidos e corrigirá sua rota a tempo.