Carta à CMVM àcerca do caso Lisnave em 25-10-2000

Ex.mos Senhores,

Recebi uma resposta da CMVM a uma mensagem minha sobre o caso Lisnave. A CMVM, nessa nota, mencionou o facto de a OPA da Navivessel ser legal e enumerou os artigos da lei que estavam a ser cumpridos.

Mas é só isto que uma entidade de supervisão faz? Verificar se toda a lei (de interpretação subjectiva muitas vezes) se cumpre? Então e os aspectos materiais da questão não contam? Este caso da Lisnave é um assalto ao bolso dos pequenos accionistas. Compra-se a 25 cêntimos de euro acções que a maioria dos pequenos accionistas compraram a 2 a 3 a 4 e a 5 contos antes. As descidas foram só parcialmente explicadas pela má situação da empresa. Paralelamente a isso houve um processo de expulsão dos pequenos accionistas da empresa por tuta e meia.

Trata-se de uma tentativa de extorsão evidente. Alguém QUER as acções só para si, e a empresa não deve fechar. Os contratos para a construção de submarinos da Armada estão quase garantidos (o Ministro da Defesa Castro Caldas assim o disse, e mencionou a Lisnave e os E.N.Viana do Castelo como as empresas beneficiadas). A instalação da Lisnave nos estaleiros militares do Alfeite também parece indicar uma relação duradoura entre a empresa e a Armada, envolvendo futuras reparações de corvetas e outros navios. O petróleo está em alta, o que trará, a médio prazo, uma explosão de encomendas do sector do drilling. Já antevendo a possível (ainda que não certa) boa situação futura, a Lisnave não desarma e continua a preparar o seu estaleiro da Mitrena. Segundo o relatório e contas da Lisnave de 1999, a Lisnave ainda é um dos 6 maiores estaleiros do Mundo. É este o cenário de uma falência? Não parece, pelo menos o estaleiro não fechará as portas já. Sendo assim, a tentativa de aproveitar a actual baixa cotação das acções para as comprar baratas é um acto de pirataria financeira, com laivos de assalto à mão armada, que faz lembrar o Far-West.

Cumpre-me fazer as seguintes perguntas:

1) Por que é que a CMVM raramente ou nunca instou a administração da Lisnave a prestar esclarecimentos ao mercado durante um processo de descida das cotações para 1 / 100 do seu valor de há anos? É que a CMVM pede esclarecimentos a muitas empresas quando há factos materiais relevantes. Uma descida de cotação para 1 / 100 não é relevante? Por que é que, em muitos outros casos, a compra de um portal na Internet é matéria relevante e esta descida acentuada não é?

2) Por que é que não houve suspensão das cotações durante toda esta queda? O que é que é considerado um facto suficientemente grave para merecer a suspensão ou mesmo exclusão da cotação? Uma empresa que teve 5 milhões de contos de prejuízo o ano passado, mais do que o seu capital social, não é considerada em situação suficientemente grave para ser suspensa ou excluída? É que, caso a CMVM não tenha reparado, a manutenção das acções na Bolsa durante todo este tempo facilitou a vida aos fautores desta tentativa de extorsão, pois possibilitou a queda abrupta das cotações, instigada pelas notícias de teor lacónico e fúnebre da administração, e possibilitou a compra de centenas de milhar de acções a preços irrisórios.

3) É permitido, e a CMVM não faz nem diz nada sobre isso, a um accionista maioritário comprar aos outros as acções a 1 tostão cada uma, quando a empresa não está nem virá a estar provavelmente, falida? Quando o estaleiro da Mitrena continua operacional a preparar-se para as encomendas futuras de submarinos ou outras reparações? Se a empresa falisse, compreendíamos que as acções valessem zero até, mas não podemos admitir que nos comprem o nosso património por 1 tostão se a empresa ainda tem hipóteses futuras.

4) A CMVM não teve nada a dizer em Novembro de 1999, quando o Grupo Mello fez um aumento de capital da Lisnave de 3560 mil contos para 6 milhões de contos, o que reduziu a percentagem de capital dos pequenos accionistas de 37% para 22%, sem que os pequenos accionistas pudessem acompanhar proporcionalmente o aumento. Porquê? Que eu saiba, em todos os aumentos de capital, todos os accionistas têm reserva de preferência na proporção das suas acções, a não ser que expressamente renunciem a ela.

5) A CMVM não tem nada a dizer sobre os indícios evidentes de má gestão por parte da administração da Lisnave, que teve o resultado prático de engordar várias empresas do Grupo Mello (por exemplo, a Lisnave Infraestruturas que recebeu sempre uma renda da Lisnave-Estaleiros Navais de mais de 1 milhão de contos por ano, as muitas empresas de engenharia ou projecto do grupo Mello, ou o próprio Banco Mello, que cobrava à Lisnave uma incrivelmente elevada comissão cambial por cada dólar facturado aos clientes), destruindo financeiramente a Lisnave-Estaleiros Navais, a única cotada em Bolsa?

6) A CMVM não tem nada a dizer enquanto os empresários portugueses, impunemente, continuam a jogar um sujo jogo que poderíamos chamar "Jogo das OPVs e das OPAs" e que consiste no seguinte: quando há uma onda de euforia num sector organizam uma OPA muito bem montada em termos de marketing e ganham dinheiro a vender acções muito mais caras do que valem. Depois de a empresa estar cotada, se se vislumbrar uma melhoria económica a médio prazo, eles ocultam o facto e lançam uma OPA um pouco acima da cotação, apoderando-se de acções que vão valer muitíssimo mais no futuro a preços ainda baixos; se, a empresa tender para os prejuízos, vão vendendo acções em Bolsa enquanto ainda não se sabe, acções que depois vão descer a preços irrisórios. Este "Jogo das OPVs e OPAs" traduz-se em ganhos expectáveis excelentes para os grandes accionistas e ruína para os pequenos accionistas, como é óbvio. A CMVM não tem nada a criticar? Nem a intervir? A CMVM aceita todas as "avaliações feitas por entidades avaliadoras independentes" (pois, pois...) que os empresários encomendam por alturas de fazer uma OPA? A CMVM nunca desconfia ao menos de que estas avaliações possam ser falseadas para beneficiar o comprador?

7) Quando, há vários meses atrás, todo o capital com direito a voto da empresa foi vendido por 1 dólar aos administradores Rodrigues, a CMVM aceitou o facto passivamente. A CMVM não acha que um facto destes é materialmente relevante e susceptível de afectar o bom funcionamento do mercado?

8) Se, a seguir a esta OPA, uma boa parte dos pequenos accionistas se recusar a vender, o que é mais do que justificado, a CMVM não terá nada a dizer se o grupo dominante lançar uma nova OPA, desta vez potestativa, compulsiva, obrigando os pequenos accionistas a vender contra sua vontade, por 1 tostão? E se não tiver nada a dizer nesse caso, quando a CMVM diz que defende os pequenos accionistas, o que é que quer dizer ao certo? Se, num caso destes, a CMVM não faz nada por nós, em que tipo de casos, exactamente, é que a CMVM pensa que pode ter alguma utilidade prática para a nossa causa?

9) Ao certo, o que é que a CMVM considera uma falta grave no mercado de capitais, susceptível de ser punida seriamente (não falo de multas de mil contos a instituições financeiras que têm milhões de contos de lucro anual, claro; infelizmente, têm sido essas que se têm visto)? O comportamento que o Grupo Mello teve para com os pequenos accionistas durante este processo não é suficientemente grave? O que é que seria grave o bastante para a CMVM se atrever a enfrentar a sério um grupo económico como o Grupo Mello (tomando decisões práticas que defendessem realmente os pequenos accionistas, ainda que beliscando os planos dos maioritários)? Se este caso não é, o que seria?

10) Olhando para as Internet Stocks em todo o mundo e em Portugal também, vêem-se empresas que estão a ter grandes prejuízos com cotações bolsistas muito altas. Isto, como qualquer pessoa com uma formação mínima em Bolsa e em gestão sabe, é perfeitamente lógico e indicativo de que o valor de uma acção depende dos lucros futuros num horizonte alargado e não do valor contabilístico expresso pelo balanço actual. Posto isto, a CMVM está ou não está consciente de que a afirmação da administração da Lisnave de que a empresa vale zero, por ter um valor contabilístico negativo neste momento, como forma de justificar a OPA feita a 0.25 euros é uma falsidade e uma prestidigitação? Uma artimanha que só engana um público muito ignorante? Tenho a certeza de que existem na CMVM técnicos que compreendem bem este ponto. Sendo assim, estes técnicos não poderiam aconselhar a CMVM a encarar esta OPA como ela é, uma tentativa de extorsão? E a agir em conformidade?

11) Finalmente, e talvez o mais importante: ainda que os actos da administração da Lisnave estejam dentro da lei (a CMVM já me enviou a lista dos artigos cumpridos), sabemos que muitas leis têm interpretações diversas (ou não haveria opiniões divergentes de juristas sobre um mesmo tema). A CMVM não acha que está a interpretar as implicações legais do procedimento da administração da Lisnave de uma forma excessivamente favorável aos actos desta última? Que não está a fazer nada para beliscar os interesses da referida administração?

A CMVM não acha que, mais do que zelar pelo cumprimento da lei, lavar daí as mãos e "arquivar o processo", sem beliscar os interesses dos poderosos (o procedimento a que a maioria das instituições públicas nacionais já nos habituaram), devia ter uma atenção redobrada aos aspectos materiais, e não apenas legais, em que os actos de um grupo económico possam ferir os interesses dos pequenos accionistas?

Existem, segundo penso, directivas ou artigos do Código do M.V.M. que têm um significado mais geral, não ligado a pormenores concretos, por exemplo: A CMVM deverá ter em conta o interesse nacional, a CMVM deverá proteger a credibilidade do mercado de capitais, a CMVM deverá defender os interesses dos pequenos accionistas... Estas directivas de âmbito mais geral não justificariam uma tomada de posição mais activa por parte da CMVM, neste caso da Lisnave e noutros? Uma posição verdadeiramente activa tem que ser mais do que arquivar um processo se tudo estiver de acordo com 3 ou 4 artigos.

Gostaria de receber, se possível, uma resposta detalhada. Estarei disponível no telefone 91-9950643. Poderei deslocar-me à CMVM, se isso fôr de alguma utilidade. Há anos, escrevi um dossier detalhado e apresentei uma queixa na CMVM sobre o caso Lisnave. A única resposta que até agora recebi foi que estavam a tratar do assunto.

João Dinis de Sousa
Rua Actor Vale 49 4ºEsq
1900-024 Lisboa
Tel. 91-9950643



                                                                      
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