Comentário à situação da Lisnave em 13-9-2000
Um assaltante do Far-West ataca uma diligência e, de arma em punho diz "A bolsa ou a vida". Um barco pirata aponta os canhões à vítima e força-a a entregar os seus bens. Parece que estes métodos estão a chegar à Bolsa nacional com um evento sem precedentes: os administradores Rodrigues, actuais donos da maioria do capital da Lisnave e da Navivessel (depois de terem comprado essa participação por 1 dólar ao Grupo Mello) lançaram uma Oferta Pública de Aquisição sobre as acções dispersas em Bolsa, ao preço de 25 cêntimos de euro por acção, num momento em que a cotação ronda os 1.30 euros. Este insulto despudorado aos pequenos accionistas é feito enfatizando que a OPA é 'Obrigatória', os pequenos accionistas são obrigados a vender as suas acções a 0.25 euros, 1/5 da cotação actual. Até agora eu não conhecia a figura da OPA obrigatória, a não ser na situação em que o accionista principal detém mais de 90% do capital e obriga os outros a vender-lhe o restante (essa situação é considerada inconstitucional por juristas conceituados, embora esteja prevista na lei). Não é esse o caso actual, em que o free-float da Lisnave ronda os 16% e as acções sem voto são 22% do capital. Mas calculo que uma OPA destas tenha fundamentos jurídicos, que ignoro, mas que os juristas a trabalhar na Navivessel não ignoram. Mas, como sabemos, debaixo da capa da legalidade estrita podem fazer-se monstruosidades do ponto de vista ético e este caso, para mim, é sem precedentes.
Já vi muitas falências. Já muitas empresas cotadas na BVLP desceram gradualmente até zero e, nos próximos anos, talvez muitos mais casos desses se venham a verificar. Se eu comprar acções de uma empresa e ela falir o único culpado das minhas perdas sou eu: ninguém me obrigou a comprá-las.
Mas esta situação é completamente diferente. Trata-se de uma tentativa de extorsão evidente. Alguém QUER as acções só para si, e a empresa não deve falir. Os contratos para a construção de submarinos da Armada estão quase garantidos (o Ministro da Defesa Castro Caldas assim o disse, e mencionou a Lisnave e os E.N.Viana do Castelo como as empresas beneficiadas). A instalação da Lisnave nos estaleiros militares do Alfeite também parece indicar uma relação duradoura entre a empresa e a Armada, envolvendo futuras reparações de corvetas e outros navios. O petróleo está em alta, o que trará, a médio prazo, uma explosão de encomendas do sector do drilling. Já antevendo a possível (ainda que não certa) boa situação futura, a Lisnave não desarma e continua a preparar o seu estaleiro da Mitrena com afinco. Segundo o relatório e contas da Lisnave de 1999, a Lisnave ainda é um dos 6 maiores estaleiros do Mundo. É este o cenário de uma falência? Não parece, pelo menos o estaleiro não fechará as portas. Sendo assim, a tentativa de aproveitar a actual baixa cotação das acções para as comprar baratas, e compulsivamente, é um acto de pirataria financeira, com laivos de assalto à mão armada, que faz lembrar o Far-West.
Compreendo o discurso dos Srs. Rodrigues & Rodrigues quando dizem que a situação da empresa é muito má, que o futuro não está garantido, que as negociações com um parceiro estratégico serão longas e não estão garantidas... Mas nesse caso por que é que nos querem comprar as acções? E a este preço tão baixo de 0.25 euros? Nos últimos meses têm-se multiplicado em declarações, artigos e comunicados, a dizer que a empresa vale zero (com óbvio impacto na descida das cotações). Compreendo que a situação contabilística é má e que não se pode fazer uma OPA a um preço alto a uma empresa que não se sabe sequer se terá continuidade. Se a situação não está garantida, devia-se aguardar o seu desenvolvimento e, se tudo piorasse, todos os accionistas perdiam, a empresa fechava de vez, as acções valiam zero, os Srs. Rodrigues perdiam o seu 1 dólar (a quantia que investiram na empresa) e nós não tínhamos razão para protestar (embora muitos de nós tivessem perdido alguns milhares de contos, o que é mais do que 1 dólar). Por isso, a única coisa ética aqui, é cada um ficar com as suas acções para o que der e vier. Se tudo correr mal todos perdemos, se correr bem e houver prosperidade futura, todos ganharão na proporção das suas acções e os pequenos accionistas não deverão aceitar menos do que 22% de participação nesses lucros e dividendos futuros (a mesma participação que têm agora). Mesmo 22% já é injusto, se atendermos a que os pequenos accionistas tinham 37% da empresa há 1 ano atrás e foi o aumento de capital de Novembro de 99, reservado só ao Grupo Mello, que fez diminuir a sua participação para 22%, para além dos "pontapés" da remodelação de 1997, em que os pequenos accionistas foram extorquidos dos terrenos da Margueira (de onde virá um lucrativo projecto imobiliário participado pelo Grupo Mello), da Lisnave-Infraestruturas, e do seu direito a voto.
Os Srs. Rodrigues, juntamente com o seu colega Sr. Anahory dizem que a empresa vale zero, e que 0.25 euros já é uma esmola superior a zero. Contabilisticamente falando têm razão, porque a situação líquida é negativa, mas onde é que já se viu avaliar uma empresa pela situação líquida? Estes senhores são gestores e sabem de gestão (embora não pareça que sabem muito, pelo trabalho desenvolvido nesta empresa). Sabem por isso que economia e gestão são muito diferentes de contabilidade. Uma avaliação conta sempre com as perspectivas futuras dos cash-flows de uma empresa, não com a situação líquida actual. O seu argumento de a empresa valer zero só engana um público muito ignorante nestas matérias. Como já disse, até é possível que, se a evolução futura não trouxer a recuperação económica da empresa, esta valha mesmo zero. Mas então, devemos todos manter-nos accionistas até essa altura, preparando-nos para o melhor e para o pior. Em vez disso, eles querem-nos comprar as acções a 0.25 euros, um valor igual a 1/5 da cotação actual e cerca de 1/100 da cotação média de 1997, nesta altura de indefinição económica.
Entretanto, o que faz a CMVM? E o Ministério da Economia? O Secretário de Estado Vítor Ramalho e o Ministro Pina Moura conhecem bem o dossier Lisnave, estiveram pessoalmente a trabalhar nele. Não dizem nada, não fazem um comunicado. A CMVM não suspende a cotação das acções, quando a vemos suspender por tudo e por nada (quando uma Internet-stock anuncia a compra de um novo portal, ou faz uma parceria, por exemplo). Uma nova parceria é considerada matéria relevante para decidir uma suspensão e uma OPA declarada a 0.25 euros, 1/5 da cotação não é? Não há exigência de clarificações para o mercado, neste caso? Permite-se que os próprios administradores de uma empresa proclamem alegremente que a empresa vale zero durante vários meses (nalguns comunicados a palavra zero é repetida muitas vezes), que a empresa mude de mãos por 1 dólar, que a cotação das acções desça para valores 20 vezes inferiores à de há 3 anos, enquanto continua com apoios estatais e foi recuperada com apoios estatais, e o Estado não tem nada a dizer? Nem a CMVM suspende as cotações? Dir-se-ia que estes funcionários públicos estão a fazer actos que, pelas suas consequências, favorecem os fautores desta tentativa de extorsão. Por que não critérios de exigência e rigor neste caso?
Não seria moralmente justo que o Estado, que teve um papel decisivo na reestruturação de 1997, que, pelo menos, lançou a empresa em novos caminhos de viabilidade e mesmo rentabilidade (embora só por dois anos), o Estado que gastou dezenas de milhões de contos com esta empresa, que assumiu um buraco de mais de 70 milhões de contos com a Gestnave (sendo os prejuízos desta necessários para a tentativa de viabilização da Lisnave), gastasse mais dois ou três milhões de contos para comprar as acções dos pequenos accionistas, e tomar novamente as rédeas da empresa? Correndo com gestores que já provaram a sua incompetência e negociando uma nova privatização futura com um grupo estrangeiro mais capaz? Pagar mais 2 a 3 milhões de contos não é muito, para quem já gastou 70 milhões. Mas, já sei, o déficit orçamental aperta, não se podem tomar decisões dessas agora... Embora, mesmo com esse problema do déficit orçamental, este Estado não hesite em vender por 20 as licenças UMTS dos telemóveis de terceira geração que podia ter vendido por 200... Aí parece que as grandes fortunas que se banqueteiam na TMN, na Telecel a na Optimus não devem ser beliscadas, é mais grave uma destas fortunas ficar com um rombo de 200 milhões de contos do que um milhão de reformados continuar com pensões de miséria... Enfim, já todos começamos a ficar habituados à forma como estes governantes nos tratam. Faço minhas as palavras do deputado Jorge Ferreira: "A situação do país está a precisar de que um dia os portugueses se irritem a sério e alguém vá parar à prisão".
É aliás engraçado observar um curioso paralelismo entre o caso Lisnave e o das licenças UMTS: em ambos os casos, as decisões tomaram-se em Agosto. Em Agosto decidiu-se o montante das licenças UMTS. Em Agosto a administração da Lisnave resolveu fazer a assembleia geral de accionistas que decidiria a redução de capital. Agosto é o mês da praia, ninguém quer pensar em coisas complicadas... É o mês ideal para estas coisas. No caso da assembleia da Lisnave ainda houve mais pormenores picantes: a assembleia foi em Setúbal (em outros anos tinha sido em Lisboa), os critérios burocráticos para ir lá foram maximizados (exigindo uma série de reconhecimentos notariais, cartas registadas prévias, etc, um pacote de detalhes raramente visto em outras assembleias). Se o objectivo fosse obter um quorum praticamente vazio, não teriam conseguido melhor.
Mais um pormenor engraçado: nos últimos meses telefonei algumas vezes para a Lisnave para pedir esclarecimentos sobre estas situações, sobre a projectada redução de capital para zero e posterior aumento, etc. Fui sempre encaminhado para um tal Sr. Bento, responsável pelas relações com o mercado. Este senhor repetiu o que já vinha nos lacónicos e fúnebres comunicados oficiais, mas não deixou de acrescentar (e enfatizar, repetindo várias vezes) "Tudo isto é porque a empresa vale zero". Ele, pessoalmente, não tem culpa nenhuma, cumpre ordens superiores. Mas é engraçado ver que a cassette do "vale zero" lhe foi passada a ele também.
João Sousa