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Millie acordou com um sobressalto e, olhando pela janela que filtrava a tênue claridade da manhã que se iniciava, pulou da enxerga em que dormia. Seus pés, em contato com o chão duro e gelado, retesaram-se num movimento de frio e cansaço, mas ela ignorou esta manifestação involuntária do corpo e, com uma rapidez desenvolvida pelos anos de trabalho e submissão, enfiou sobre a camisola de flanela puída e rota as suas vestes de trabalho. A saia, de sarja azul escura já muito remendada escondia as formas redondas da escrava e a blusa de uma lã que há muito perdera a cor completava o trabalho de ocultar a beleza que tanto a atormentava. A lembrança do chicote de Dona Marta estava ainda bem clara em seu lombo castigado, bem como as palavras amargas de desprezo que ela pronunciara, culpando a pobre Millie por chamar tanto a atenção do amo. Aos cabelos, cujas inúmeras tranças formavam um emaranhado confuso em torno da cabeça, Millie não deu nenhuma atenção e, chegando perto da bacia que havia sobre a pobre mesa que servia ao cômodo, molhou o rosto com a água enregelante. Lançou uma olhada aos irmãos menores, que ainda dormiam sobre as outras enxergas e, sem mais hesitação, saiu para o frio da madrugada.
Ai dela se fosse pega dormindo depois que os primeiros raios de sol despontavam, dourando a plácida superfície do Rio Potomac. Seu amo e senhor, o nobre George Washington, não admitia duas coisas. A primeira era permanecer na cama depois do nascer do sol e a segunda era que algum escravo permanecesse em repouso depois que ele já estava de pé. Sua mãe há muito já tinha levantado, pois trabalhava na cozinha e a esta hora já devia estar assando pães e broas de maçã para o café da família e seus muitos convidados. O pai de Millie, por sua vez, já devia estar no campo, arando a terra e preparando-a para o cultivo do milho, que logo seria semeado.
Millie passou pelo jardim e observou que a aridez do inverno começava a ceder, e alguns pequenos e tímidos brotos começavam a mostrar a cara na superfície ainda gelada dos canteiros que, dali a algumas semanas, estariam reverberando com a beleza e colorido das flores e plantas que seus amos tanto gostavam. Também ela amava flores e teria preferido ser designada para o trabalho no jardim, mas Dona Martha fora inflexível, colocando-a no serviço da lavagem de roupa, um dos mais pesados da casa.
Caminhando pelos gramados de Mount Vernon, admirou mais uma vez a beleza do lugar onde vivia. A superfície espelhada e brilhante do Rio Potomac imperava, já naquela hora matinal, sobre a paisagem majestosa da fazenda. Para Millie, aquele era seu verdadeiro lar. Apesar da dor e sofrimento constante, e da angústia que muitas vezes via refletida fugazmente nos olhos de seus pais, era nas conversas ao pé da fogueira, durante os raros momentos de folga, que Millie descobria que a realidade, em outras fazendas da região e daquele imenso país podia seu muito diferente, e muito mais dura para os negros, expatriados da sua terra para construir a grandiosidade daquela nação em formação. Os mais velhos, que já haviam pertencido a outras famílias, comentavam em voz sussurrante os maus tratos e torturas que já haviam sofrido, e todos sentiam-se gratificados por terem sido comprados por George Washington, um grande homem e figura das mais importantes na sociedade americana. Para Millie não tinha havido escolha, era apenas uma meninazinha magrela e calada quando seus pais haviam sido comprados, mas crescera forte e rápido sob o sol e a fartura de Mount Vernon. Esta é que havia sido a sua desgraça. Tornara-se uma garota exuberante, cujo corpo deslizava em meneios sensuais pelas terras da fazenda, embora nada fizesse para ostentar esta aparência.
Passou rapidamente pela varanda da casa grande, pisando furtivamente na grama gelada para não fazer barulho. Ela sabia que, a esta hora, Dona Martha já estava de pé, com seu eterno chicotinho nas mãos, observando o trabalho da criadagem da casa, e supervisionando a montagem da grande mesa do café. Qualquer descuido seu e ela viria para a varanda, e não custava nada para disparar algumas chicotadas em seu lombo já judiado pelas muitas pancadas. Somente uma vez observara seu amo por perto e vira quando ele, silencioso porém firme, segurara as mãos de Dona Martha impedindo-lhe o gesto. Mas esta ousadia custara-lhe muito mais caro. Nos dias seguintes tivera pilhas muito maiores e mais sujas de roupa para lavar e ficara até altas horas no escuro e fétido quartinho onde se fazia este serviço, com os braços moídos de tanto revirar, com um grosso pau de carvalho, os caldeirões onde a roupa fervia para recuperar a sua brancura original. Mesmo voltando tardiamente para a senzala, com os braços amortalhados e caídos ao lado do corpo cansado, Dona Martha esperara pela passagem dela e, com um ar de desprezo, pespegara-lhe algumas chicotadas como quem faz um favor. Na sua velha blusa ainda restavam diminutas manchas do sangue que a chibata fizera aflorar na carne.
Millie recolheu furtivamente nos dedos as lágrimas que esta lembrança despertara e correu para o lado norte da propriedade, onde ficavam as construções de serviço. A sala da intendência fervilhava de agitação, e escravos passavam apressados vindo da enorme despensa, carregados com as iguarias que lá estavam estocadas. Em Mount Vernon havia fatura, e muita. Para além da importância do senhor George Washington, que era um dos cabeças da grande nação americana, havia a operosidade e grande fertilidade das terras, que eram cultivadas com esmero e zelo impares pelo batalhão de escravos, sob a supervisão rigorosa e engenhosa do próprio Washington.
Abandonando seus devaneios, Millie correu para a sala da lavagem. Um vapor abafado pairava no ambiente, fruto da fervura de muitos caldeirões onde a roupa branca e imaculada das senhorinhas era devolvida ao seu estado original, depois de exigir muito suor e esforço das escravas envolvidas neste serviço. Grace, Calpúrnia e Celeste já estavam lá, e Millie mais uma vez estremeceu, ao perceber o quanto se atrasara, correndo um enorme risco.
- Ocê tá atrasada di novo, Millie! Que qui tá acontecendo cocê? Nun era de perdê a hora nunca e, de uns tempo prá cá, perde quasi todo dia..... - Grace advertia a menina com um ar quase maternal. Enquanto falava, parou por alguns momentos de agitar algumas camisolas de cambraia de um enorme tacho de cobre, enxugando com a manga da blusa o suor que aflorava em sua testa, apesar do frio.
- Num sei proquê minha mãe num me chamoou.....Ela saiu do quarto e eu nem vi!
- Sua mãe me disse qui ti chamou e sacuudiu até, mas ocê nem se mexeu.....ocê tá doente ou prenhe, menina!
Estas palavras caíram como uma bomba sobre Millie. Com um meneio de ombros, aparentando não dar importância ao que dissera Grace, voltou-se para uma grande pilha de roupas escuras, grossas e que ficariam imensamente pesadas ao serem molhadas. Atacou o serviço quase com fúria, para surpresa das outras escravas. Mas sua mente viajava em alta velocidade, relembrando acontecimentos que trazia guardados no fundo da alma, procurando esquecer algo que a marcaria para sempre. Enquanto relembrava, seus olhos ficaram vidrados e ela caiu num aparente mutismo, fazendo com que a esquecessem no seu canto. Enquanto o corpo executava maquinalmente as tarefas que já conhecia de cor, Millie relembrava a noite enluarada, há quase dois meses atrás, em que saíra da senzala, já noite alta, a fim de caminhar um pouco. Embora estivesse acostumada aos sons que seus pais faziam todas as noites, antes de dormir, a cada dia que passava isto a perturbava mais. Fazia muita força para adormecer antes que eles começassem com aqueles movimentos rítmicos que acompanhavam com gemidos guturais, mas ao mesmo tempo esperava com ansiedade crescente e um inexplicável ardor entre as pernas e na barriga o momento em que iniciassem. Por outro lado sentia-se ilícita, quase ladra por assistir e roubar deles esta intimidade, compartilhando, de forma secreta, um pouco daquela emoção intensa.