Ele não conhecia ninguém lá, mas as pessoas o chamavam pelo nome. Isso o fez se lembrar de que ele tinha uma família. Aquilo não poderia ser Céu de jeito nenhum. Havia gente ruim lá. Mas ele ainda estava torcendo para que aquilo fosse um sonho. À noite, propositalmente, ele caía da cama, tentando acordar do pesadelo. Veio uma memória de sua infância. Ele costumava cair da cama de propósito para escapar dos pesadelos. Mas desta vez não funcionou. Logo ele leu em seus lençois: Centro Psiquiátrico D. Pedro II. Ele tinha que se render à realidade. Ele tinha sido internado. Num hospício.
Mas por quê? O que ele tinha feito? Será que ele já era doente mental antes de ser internado? Será que ele tinha sido doente durante toda sua vida? Talvez sua família tivesse escondendo isso dele toda sua vida. Para poupá-lo. Se ele era um doente mental ele não sabia o que fazia. Sua vida não passava de uma loucura. Droga! Ele deveria saber! As pessoas sempre diziam que ele era maluco! Mas ele não acreditava que estivessem falando sério. Achava que estivessem brincando.Então tudo que ele achava que ele sabia era ilusão. Em sua vida ele estava sempre errado. Puxa! Eles o tinham internado! Ele não sabia por que, mas estava claro! Ele é louco! Alguém o tinha colocado lá, mas ninguém tinha lhe explicado por quê. Ele teve de descobrir sozinho onde ele estava!
E trouxeram-lhe drogas e mandaram-no tomar. Ele disse que não estava sentindo nenhuma dor e que queria saber para que servia aquele remédio. Mandaram-no calar a boca e tomar senão eles iriam perder a paciência. Como ele não queria apanhar, obedeceu. Afinal, eles eram violentos. Naquele lugar as mulheres eram mais ou menos boazinhas. Ele percebeu que as mulheres de branco eram mais agradáveis do que os homens de branco. Às vezes as mulheres de branco deixavam que ele lanchasse mais de uma vez. Às vezes ele podia até pegar dois, três copos de mingau, de uma vez! Os homens de branco insultavam-no todo o tempo. Às vezes não deixavam que almoçasse ou jantasse.
Depois de um tempo ele compreendeu que ele estava preso num hospital psiquiátrico e que as pessoas vestidas de branco eram enfermeiros, doutores, etc. Mas no começo, quando ele sequer se lembrava de que tinha uma família ele achava que as mulheres de branco estavam lá para ensinar-lhe a viver, discipliná-lo, enquanto que os homens estavam lá para puni-lo, fazê-lo pagar por algum pecado.
Como as pessoas falam com ele passa a conhecer o próprio nome. Seu nome é a abertura da grande porta de seu passado... Suas memórias eram de muito tempo atrás, mas talvez nem seja tanto tempo, afinal, ele tinha pouca noção do tempo. Ele mal sabia quando era dez horas da manhã ou três da tarde. Não lhe deixavam ver o sol.
A menção de seu nome tornou as memórias mais claras. As memórias que ele tinha eram obscuras, porém a lembrança de seu nome deu-lhe uma certa identidade. Essa identidade o ligou a outras pessoas fazendo que as outras memórias fluíssem com mais facilidade.
Daí ele passava a receber lembranças mais lúcidas. De sua infância, adolescência e do início de sua vida adulta. Ele não conseguia se lembrar de coisas recentes de sua vida. Suas lembranças paravam num certo ponto e havia uma estranha pausa nas memórias.
Algumas das pessoas de branco lhe perguntaram sobre sua família. Quantos irmãos e irmãs ele tinha? “Você tem pai?” eles o estavam testando. Ele hesitou, mas respondeu todas as perguntas.Ao passo que seus parentes iam visitá-lo, suas memórias retornavam. No princípio ele mal podia falar com eles. Era cansativo, difícil. Eles lhe proporcionaram memórias, pois eles diziam: “eu sou isso! Eu sou aquilo!” “eu fiz isso! Eu fiz aquilo!”Houve um momento em que uma das moças bonitas que trabalhavam lá começou a perguntar sobre as crises do pessoal. “Por que você está internado?” “por que você está aqui?” Os internos que estavam com ele relatavam seus casos: “eu bati na minha mãe!” “eu quebrei minha casa inteirinha!” Quando ela virou para ele e perguntou sobre seu caso ele apenas encolheu os ombros e disse: “eu não tenho a menor idéia... o que aconteceu? Por que estou aqui? ” “você não se lembra do que fez? ” Ele sinalizou que não, se perguntando, cada vez mais, o que tinha acontecido? “Quando sua família vier visitar você, pergunte a eles.”Então, ansioso, ele aguardava a visita de sua família, para que lhe contassem a história dele. A história de sua crise.
Quando a família dele veio a mesma moça bonita o lembrou de perguntar sobre a crise. Então ele perguntou. Um de seus irmãos lhe disse: “você estava muito agressivo!” A menção de “agressivo” o levou a uma outra memória: ora, a canela dele estava no curativo. Era um sinal de agressão. Agressão dele? Bem, ele podia se lembrar do momento em que ele se arremessou em algo de vidro, provavelmente, ali sua imaginação voava: vidros se estilhaçavam, mas parecia que se dissolviam em água. De repente, ele se via na praia, se afogando, talvez. Mas seu irmão foi muito conciso, breve. Ele apenas disse: “Estêvão, você estava muito agressivo.” Nada mais do que isso. Então ele poderia ter cometido qualquer tipo de agressão, qualquer tipo de violência. Isso o estava consumindo por dentro. Ele tinha que saber o que ele tinha feito. Tinha sido coisa séria? Os grilos amontoavam.
Mais tarde duas das mulheres que trabalhavam lá conversavam sobre ele. Uma das mulheres era aquela que lhe tinha perguntado sobre sua história: “então você não se lembra como veio parar aqui?” Quando ele sinalizou que não ela continuou: “você se lembra de como machucou a canela? ” “sim.” “claro!”, ela disse sorrindo, “a gente sempre se lembra de dor. Quando dói, ah! Aí não dá pra esquecer!” Elas sorriram com certa ironia. Ele retornou o sorriso. Mas ele sabia que ele não se lembrava de nenhuma dor. Porque dor física não pode ser comparada a dor psíquica. Ele não se lembrava de dor na canela, mas se lembrava da dor dentro da cabeça. A verdadeira dor.
ele devia ter cometido alguma violência. Talvez ele tivesse matado alguém! Senão por que estaria amarrado como um animal e carregado como um saco de batatas? Ele sempre fora um excelente lutador, tinha noções de Kung Fu, Jiu Jitsu, Karate, técnicas de Ninja... Ele poderia facilmente matar uma pessoa. Durante toda sua vida ele tinha temido o dia em que ele viria a perder o controle. “Coloca ele lá!” Disse um dos homens. Eles jogaram-no na maca como um gari joga o pesado saco de lixo no caminhão, aliviado quando se livra do fardo desagradável e mal-cheiroso. Como sempre, houve uma pausa em sua memória.
A próxima coisa que ele se lembrou foi quando ele sentiu uma dorzinha na canela esquerda. Ele não sabia o que estava acontecendo, então ele começou a agitar as pernas para que a dor e o desconforto passassem. Então ele viu o homem de branco ( dessa vez ele não se lembrava do que acontecera momentos antes, mas sua mente não estava muito confusa, então ele sabia que eram doutores e enfermeiros). O enfermeiro fez cara feia e resmungou para o bombeiro que estava ao seu lado: “tá vendo?” O bombeiro entendeu a mensagem e começou a gritar com extrema violência: “abaixe as pernas! Abaixe as pernas, vamos! Abaixe as pernas, porra!” Estêvão não queria apanhar, nem sofrer nenhuma violência, por isso ele abaixou a perna. E também ele não queria que mais violência fosse gerada naquele dia. Ele podia se lembrar de seu nome, mas não tinha as lembranças dos últimos dias. E sua mente era como uma como Internet barata que toda hora caía, a todo momento era desconectada. A cada momento ele ficava mais confuso. A cada momento as coisas sumíam de sua mente.
Quando ele chegou lá ele ainda podia se lembrar de suas experiências com línguas. Ele planejava facilitar o aprendizado de línguas para ele e para o mundo. Uma de suas últimas lembranças era exatamente pesquisas a esse respeito. Mas, de repente, as pessoas a seu redor falavam enrolado. O passar do tempo trazia confusão, não clareza. As pessoas falavam enrolado, logo ele não sabia sequer em que país ele estava. Primeiro, porque ninguém falava com ele como se ele fosse gente. Num momento ele tentou chamar um dos enfermeiros, que apenas riu dele e disse “ele tá doidão ainda”. Num certo momento o homem de branco exigiu: “Vamos! O que você fez, cara!? Diga, rápido!” Estevão só podia dizer “não sei!.. Eu não me lembro.” numa voz bem pequena, bem frágil. Então seu irmão disse: “ele não se lembra, ele tomou injeção a pouco.”Mas tarde ele perguntou de novo: “Onde estou?”, “você está no lugar certo.”, respondeu um dos homens de branco, dessa vez, gentilmente. Foi uma resposta indireta, então Estêvão tentou novamente: “ Eu tô no hospício?”, perguntou com dificuldade. “É um hospital.”, corrigiu o homem, como se fosse um professor. “Hospital..” repetiu Estevão, como se para não esquecer mais, porém num sotaque espanhol que chamou a atenção do homem de branco: “É assim que se fala? Fala direito, vamos. Hospital.” “Hospital.”Em um outro momento ele via seus irmãos, Estefania e Ezequias, falarem de seus sintomas: “ele estava agressivo, dizia que era Deus.”. Porém nada era perguntado a ele. Era como se ele fosse surdo e mudo. Era como se ele não fosse uma pessoa. Sua mente voava. Se ele estava sendo ignorado daquele jeito, talvez ele não fosse adulto, como sempre fora. Talvez estivesse em uma outra encarnação e aqueles não fossem seus irmãos, mas sim seus pais. Pais que cuidavam de uma criança que não podia falar...
Aquele era o começo da confusão. Ele não podia ver direito e além disso os funcionários de lá (enfermeiros, certamente) gritavam com os clientes o tempo todo. Eles gritavam “sente aqui, porra!” “Não pegue isso!” No momento em questão ele e seus companheiros eram levados para tomar café da manhã. Ele mal podia ver. Mal se agüentava de pé. Ele se sentia como se sua mente quisesse abandonar o corpo. As vozes zuniam. Naquele momento ele ainda tinha consciência das coisas, ele ainda podia falar. Mas a equipe do manicômio não queria acreditar nisso. Tratavam Estêvão como se ele fosse irracional, inferior. Ele e seus companheiros não passavam de criaturas irracionais naquele lugar. Se ele fosse para um lado eles gritavam “pare! Você não pode ir aí!” Ele não sabia onde estava e era enxotado o tempo todo. Já estava difícil para ele ver as coisas, não lhe davam espaço. Gritavam o tempo todo... logo Estêvão começava a dar lugar para as ilusões. Ninguém tinha explicado para ele o que estava acontecendo, então ele começou a fantasiar sua própria história em sua cabecinha... será que ele não estava morto, num limbo talvez? Mais tarde, bem mais tarde ele ficou sabendo que estava na emergência do “hospital”.
Bem mais tarde Estevão veio a saber que mandavam levantar a língua para que o paciente não escondesse o remédio debaixo ou atrás dela para depois jogar fora. Esta idéia nunca lhe tinha ocorrido! No local havia um televisor em uma das salas, havia uma sala de atividades com lápis de cores, jogos e o som de um rádio. O banheiro tinha água quente, mas era mal iluminado, pequeno e sombrio. Dormiam no local que chamavam de enfermaria, onde havia várias camas lado a lado. Da janela dava para ver o pátio, mas era impossível ver o sol.,p> Dava para ver que estavam no terceiro ou quarto andar de um prédio e dava para ver também que havia várias ambulâncias pelas redondezas e outros prédios onde certamente se tratava de doenças mentais também. Havia lá senhoras de 60, 70 e até 80 anos que também se tratavam lá. Alguns pacientes não tinham onde viver, logo, moravam lá. Essas são algumas características do ambiente do Centro Psiquiátrico D. Pedro II.
No início tudo era muito barulhento. As pessoas gritavam, mas havia também uma companhia que tocava em determinados momentos. As vezes, quando ele olhava para alguma bela doutora que passava a companhia, que era altamente barulhenta, tocava. Era como se estivesse a denunciar sua falta de pudor, por olhar uma pessoa atraente de classe superior. Quando ele ia para um lugar que não deveria ir, ouvia a companhia tocar. O barulho ensurdecedor o perseguia. Havia um homem lá que gritava como se estivesse sob um sofrimento imenso. Ele só gritava, não tentava agredir ninguém. No entanto, a “cura” que os profissionais encontraram para ele foi amarrá-lo na cama e deixá-lo lá, contido, gritando a noite toda. Tudo era resolvido assim. Na base do terror.
Na época em que João Batista estava “enchendo o saco” e Estêvão ouvia as ameaças daqueles que deveriam cuidar das pessoas, ele não acreditou que levariam a cabo tal ameaça covarde. Afinal, João Batista não estava machucando ninguém. Ele só queria falar com os médicos, só queria a atenção que toda pessoa em fase de tratamento necessita. Ora, Estevão também tivera sua fase de agitação.
Estêvão, depois de ser, repetidas vezes, tratado com desprezo e incompreensão começou a ficar com a cabeça embaralhada, constrangido. Afinal, tratavam-no como um irracional, como um errado, logo, ele deveria ser isso.
Ele se lembra de um dos muitos momentos de confusão. Era a fila do almoço. Lá ele observava as pessoas. Lá ele viu Catarina pela primeira vez. Ele, observando sua beleza, foi falar com ela, de imediato. Disse uma gracinha sobre sua boniteza e ela lhe olhou sensualmente e agradeceu. Ele insistiu: “qual é o seu nome?”, “Regina.” Naquele momento ele não insistiu mais. Porém, mais tarde, ela conversava com outra pessoa que lhe perguntava o nome: “Catarina.”, ela disse dessa vez. Então, intrigado, ele foi tirar a dúvida: “Ué... você não disse que seu nome era Regina?” “não...” ela replicou, sorrindo, “Regina é a minha irmã!” Estevão tinha a impressão que ela "estava dando mole",assim decidiu fazer a corte. E quando estava a ponto de fazer uma declaração teatral (tentando e já fazendo!) ela começou a se irritar: “hei! Me deixa! Eu sou casada!” como ele insistia ela apelou “gente! Gente! Por favor!”, nisso um dos auxiliares de enfermagem que trabalhava lá interviu: “deixa ela, seu chatinho! Nossa! Que coisa! ai, ai, ai...” Estevão estava surpreso. Catarina não era tão hostil, antes. Antes, quando ela disse para ele que ela se chamava Regina. "E eu sou casada", disse ela. "Mas não era possível!" Estevão pensava, "ela não daria mole daquele jeito se fosse casada! Será que ela está se fazendo de difícil?" Ele se recusava a acreditar que ela fosse casada, como dissera. Ele preferia acreditar que ela inventara Regina, e tudo. Talvez fosse sintoma da doença dela. Até que um dia o marido apareceu para uma visita. Aí ele ficava bolado: "será que ela tem realmente uma irmã aqui dentro?" Ele nunca mais viu Regina e nunca teve respostas para suas perguntas.
Até outro momento no pátio. À noite ele viu quando levavam o tarado para a enfermaria (local onde os pacientes do Centro Psiquiátrico dormiam). Lá eles o amarraram na cama. Mas ele estava nu! Só escondia sua nudez com o cobertor! Estêvão mal podia acreditar que ele estivesse realmente nu, assim, decidiu puxar o cobertor do tarado para ver com certeza. E fazendo isso ele viu que o homem estava realmente nu! Porém Estêvão levou uma bronca por ter ousado tirar o cobertor: “deixa ele! Ele tem que ficar aí! Bastante tempo depois, num momento em que ele estava sentado com Márcia e um outro paciente, Márcia dizia “você estava atacando as mulheres, até tentou me beijar um outro dia.”, nisso Estevão pensou “eu tentei beijar esse canhão?! Eu pensei que tivesse tentado beijar a loura gostosa!”, “eu tive que sair correndo!”, continuou ela.“Caramba... eu estava doido mesmo! Imagina se ela acha que eu estou afim dela!”, Estêvão pensou. E ele ainda alertou o rapaz: “cuidado com ele! Nunca se sabe! Ele estava tentando beijar as mulheres. Pode ser que ele comece a tentar beijar os homens também.”, nisso Estêvão disse, brincando: “hum...até que ele não é de se jogar fora.”, e, se aproximando do rapaz, completou: “talvez não seja uma má idéia..."
Ele estava confuso. Confuso com um monte de coisas. Quando ele chegou lá ele se viu cercado por mulheres. Elas olhavam para ele com grande interesse e curiosidade. Coroas, em sua opinião. Elas lhe diziam coisas, mas ele não conseguia entender tudo. Ele estava confundido com a língua. Num momento, umas delas (a moça grávida, talvez) perguntou a ele: “você é gay?”, ele respondeu: “sim, sou.”, pois em sua mente “gay” queria dizer “alguém de outro país” e tudo estava tão estranho que talvez ele fosse mesmo de outro país.
Num outro momento um cara que se identificou como residente psicologia perguntou-lhe sobre as vozes. O que as vozes dizem? Mas ele não ouvia nenhuma voz! Ele disse isso ao psicólogo que estava intrigado com ele. E o psicólogo queria saber o que o fazia fazer as coisas que ele fazia. Ele perguntou se havia algum tipo de impulso. O cara tinha um bom cheiro e um belo pescoço. Igual a outra bela garota que tinha falado com ele. Era tão bom que ele teve vontade de morder o pescoço dela. E o cara lhe deu a mesma sensação, então ele disse: “as vezes eu sinto vontade de morder as pessoas. Morder você por exemplo. Eu gostaria de mordê-lo.”, “mas por que você ferir as pessoas com mordidas? Por que isso?” Estêvão se espantou com o que o psicólogo disse, pois ele não queria morder para machucar, e sim por prazer.
Em sua opinião, o desejo sexual não era algo culpável. Afinal, há deuses que inspiram sexo. Deuses como Eros, o grande deus do amor, que nos lembra de sexo. O que dizer de Adônis? A beleza desse deus era um bastante afeminada, e ganhou o amor de Vênus, a deusa do amor! Na verdade o sexo está mais do que presente no mundo dos deuses! Estêvão pegou emprestado o jornal do Sidney e olhou as fotos de garotas nos jornais. Tinha uma sala no Centro Psiquiátrico onde se podia achar vários revistas e jornais. As vezes ele via belas garotas nas revistas e recortava as páginas e ia ao banheiro se masturbar.
Estevão pedia que o homem lhe explicasse o que estava errado com ele, mas o homem o tratava como se ele fosse irracional. “Não me siga!” dizia o profissional, tentando não ser ríspido, mas sendo ríspido, pois Estevão não era irracional e podia entender o que estava acontecendo até um certo ponto. O profissional não contou para Estevão sobre sua condição, mas uma das pessoas que estava internada com Estevão disse “Você está impregnado.” Estevão nunca ouvira o termo antes. O diagnóstico foi dado por um de seus companheiros de internação. E mais tarde Estevão veio a saber que estava totalmente correto. João Batista disse para Estevão: “Foi por causa das maçãs que aquela mulher deu para você. Eu comi uma e também passei mal. Acho que ela é uma bruxa.”, “Ei, não exagere! Ela é minha mãe!” Depois daquilo Estevão desenvolveu um estranho trauma. Pavor de maçãs. Ele não podia mais colocar maçãs na boca! Não podia comer mais maçãs! Dois anos mais tarde ele descobriu que impregnações eram causadas por superdosagem de certos medicamentos psiquiátricos. Especialmente superdosagem de Haldol. Somente depois dessa descoberta que ele pode tomar coragem para comer maçãs de novo.
Num outro dia Estêvão falava com Dona Dolores e com moça negra que trabalhava lá. Dona Dolores lhe perguntou sobre sua condição mental e finalmente ela disse: “não há nada errado com você. Você tem namorada?” Quando ele respondeu que não ela continuou: “é por isso. Seu problema não é doença. É falta de afeto.” , ela diagnosticou, “você deve arrumar uma namorada!” Daí ele olhou para a moça negra, que era muito bonita imediatamente e propôs: “quer namorar comigo?”, e ela respondeu, um pouco surpresa: “não!”. Dona Dolores riu e comentou: “você deve encontrar uma namorada lá fora, não aqui.”
Um dia ele estava atrasado para a medicação da noite e ele foi chamado pela enfermeira. Ele estava confuso devido ao tratamento que recebia (simpático da parte das mulheres, e rude da parte dos homens). Apesar disso ele estava sempre se perguntando: “quem sou eu?” Por isso ele criou uma maneira de se apresentar, assim ele disse à enfermeira: “deus Estêvão está aqui.” A enfermeira sorriu e disse: “não diga isso, pois atrasa a alta!”
Para não falar daqueles seus colegas internados que não tinham o privilégio do silêncio e eram perseguidos por vozes aterradoras, que os levavam a gritar e gemer de terror, e não para causar terror, como os profissionais de lá faziam. No caso dele, ele podia ser acordado com um chamado mais enérgico, mais forte da parte de João Batista ou com um grito violento e mal-educado da parte dos profissionais, que o arrancaria do isolamento. Porém as pessoas que estivessem gemendo com as dores da perseguição eram tratadas com isolamento, eram amarradas em uma cama. Infelizmente nenhuma providência real era tomada para amenizar a dor. Os profissionais de lá amenizavam a dor com mais dor. Logo, os profissionais de lá amenizavam as suas próprias dores, não as dos pacientes. Estevão passou então a considerar aquele silêncio que ele experimentava como um mal da doença. A cada dia ele buscava se livrar mais e mais daquilo. Chegava a achar que o remédio ajudava muito a controlar isso. E na verdade, aquilo perduraria muito ainda.
Ele podia se lembrar de algumas partes, como em flashes. "Será que os remédios têm que fazer as pessoas se esquecerem para tornar a recuperação mais fácil?", ele pensava. Mas e quanto aos maus-tratos? Por que a maioria das pessoas trabalhando para o hospital tinham que gritar com as pessoas (em tratamento)? Por que amarrar as pessoas no fim do século 20?
O trabalho dos bombeiros não era combater incêndio e proteger os cidadões? Por que estavam atacando doentes mentais? Até aquele momento ele tinha admiração pelos bombeiros. Ele tentava manter sua admiração por aqueles profissionais.
Ele tinha que admitir que seu psiquiatra, a nutricionista e os estagiários e as psicólogas tinham um comportamento diferente. Eles eram superficiais, mas ao menos tentavam ser gentis. Sua gentileza vinha mesclada com medo. E parecia que eles achavam que doentes mentais não podiam entender as coisas direito.
Parecia que eles achavam que pessoas com transtornos mentais não tinham discernimento. Apesar disso tudo eles não eram agressivos como os bombeiros e os enfermeiros, por exemplo. Então, em sua mente, Estêvão desculpava os bombeiros e os enfermeiros desta forma: "bem, eles não fizeram curso superior como os psiquiatras, as nutricionistas e os psicólogos. Com certeza, um bombeiro é treinado para resolver tudo no braço. Bombeiros e enfermeiros não têm curso superior, do contrário eles teriam boas maneiras. Alguns deles, talvez, sequer completaram o primário. Afinal, Estêvão não tinha completado o primeiro grau (ensino fundamental) e era mais educado que eles.
E o que ele poderia dizer da medicação. Eles davam-lhe medicações, mas não lhe explicavam para que lhe davam. como se fosse um segredo. Ele se sentia diferente, estranho. Primeiro ele mal conseguia ver. Tudo parecia esbranquiçado.
Num momento uma jovem, talvez psicóloga, falou com ele. Ele mal podia definir seu rosto, mas ela era tão bonita que ele fez um grande esforço para ver o rosto dela e ele tinha que elogiar sua beleza. Será que sua dificuldade para ver era efeito colateral do remédio? Os doutores não iriam dizer. O problema principal é que até hoje ele não sabe se a moça que falou com ele era real ou só uma alucinação.E o tarado e o cara surdo, então? Eles eram real ou só alucinação? E os médicos davam a impressão de eles não pretendiam esclarecer nada.
Sua condição era confusa e estranha. Será que as drogas que lhe davam que lhe causavam os problemas na visão? Ele era um cara de seus vinte e dois anos, mas se sentia com sessenta anos! Ele já não sentia prazer nas coisas que tanto gostava. Ele pediu revistas em quadrinhos ao seu irmão, pois não via graça em um romance policial que tinha pedido antes.
Sua visão estava péssima, ele mal conseguia ler. Ele chegou a conclusão de que ele seria obrigado a usar óculos. Desta vez era essencial. Comer e dormir eram seus únicos prazeres, sendo que ele só conseguia dormir a noite. (E de dia se perdia numa preguiça inexplicável.)
Por que os professionais daquele hospital não levavam seus pacientes a sério? Numa época Estêvão vivia tirando o curativo de sua canela todo o tempo, e tinha um cara careca que estava sempre gritando com ele por causa disso. Talvez ele não soubesse que Estêvão não se lembrava da forma em que tinha se ferido e estava tentando descobrir o que estava acontecendo. Quando Estêvão se livrava das bandagens do curativo ele podia ver suas feridas, ele podia ver os pontos. O cara dizia que ele que tinha colocado as bandagens. Porém, mais tarde, Estêvão se lembrou de que as bandagens tinham sido colocadas em outro lugar. O cara careca estava lá, sempre gritando e rindo zombeteiro. Toda vez que Estêvão se levantava da cama e ia se fazer alguma coisa o cara gritava: “vai deitar, Estêvão! Você só faz merda!” Interessante que o cara gritava com Estêvão como se ele fosse um cachorro!!
O cara parecia até preocupado com os ferimentos. Certa vez ele deu Polvidine ao Estêvão e o mandou tomar banho e lavar os ferimentos com a substância, o cara disse que era sabão e remédio ao mesmo tempo. Naquele tempo Estêvão não conhecia o Polvidine. Ele sentiu que estava sendo enrolado pelo careca, mas obedeceu. Mas tarde, quando ele já podia ver as coisas livre da confusão do começo, ele não pode encontrar mais o cara. Ele se perguntava se tal cara tinha realmente existido. Talvez ele fosse um fantasma ou uma alucinação. Não dava para ter certeza. Ele só tinha certeza de uma coisa: não importa se o cara era gente de verdade, um fantasma ou uma alucinação, ele estava tentando enrolar Estêvão, com certeza!
Nota: quando Estêvão deixou o Centro Psiquiátrico D. Pedro II ele percebeu que seus reflexos estavam comprometidos e o que as pessoas diziam para ele demorava para chegar ao cérebro. Mais uma razão para não gritar com ele!!
O próprio Estêvão tinha passado a maior parte do tempo limitado a enfermaria. Eles tinham deixado que ele saísse da enfermaria duas vezes. Primeiro eles tinham levado o Estêvão e outros pacientes companheiros de enfermaria para dar um passeio... dentro do Centro Psiquiátrico D. Pedro II, é claro!! Então ele andou com Dona Dolores, João Batista, Catarina e outros. Eles estavam nas ruas do Centro Psiquiátrico... mas sob vigilância. Eles tinham que ficar um perto do outro e não podiam ir longe. E era engraçado, pois não havia nenhuma possibilidade de eles se perderem!...
Alguns companheiros de Estêvão tinham deixado o Centro Psiquiátrico primeiro. Sidney, por exemplo, a enfermeira chegou a dizer que tinham esquecido da alta dele, e “isto é tão injusto, coitado!” Talvez isso tenha acontecido por Sidney ser muito quieto, resignado. E a namorada de João Batista tinha saído alguns dias antes também. E isso fez que Estêvão reivindicasse sua alta com muito mais energia, é claro!! Os enfermeiros ficavam muito agressivos quando Estêvão lhes perguntava sobre a alta. Como era de praxe. Mas o psicólogo o dava esperança, tratando-o com muito mais humanidade.
A Segunda vez que ele teve a oportunidade de sair do prédio para as ruas do Centro Psiquiátrico foi para cortar o cabelo. Ele estava sendo acompanhado por Márcia e pelas duas moças que tinham falado com ele no passado (aquelas que falavam sobre os ferimentos em sua canela). Sim! Eles tinham um salão de barbeiro dentro das dependências do Centro Psiquiátrico!
Então enfim ele deixou aquele maldito lugar! Liberdade! Ele deveria ir para um certo encontro lá dias depois. E ele foi. Era a “via de egresso”. Lá ele ouviu doentes mentais falando de seus casos pela primeira vez. E ele tinha pessoas com transtornos mentais em sua família. Pessoas que nunca falavam sobre isso. Ele sabia que um tio tinha sérios transtornos mentais e que estava em internações todo o tempo.
Mas quando ele deixou o Centro Psiquiátrico ele veio a saber de vários outros casos! Uma tia, a avó, uma cunhada, uma prima, um outro tio e mesmo uma irmã! (Todos com transtornos mentais num certo período de suas vidas, com problemas que Estêvão desconhecia) Como era possível!? Eles nunca tinham falado sobre todos esses casos! Por quê? Ah, sim! Eles tinham vergonha! As pessoas não dizem: “eu sou doente mental”, elas dizem: “eu tenho problemas de nervo...” É menos chocante. Menos humilhante. Ele já sabia do caso de seu tio Neném porque era muito evidente. O pobre homem barbudo tinha freqüentes crises. Geralmente ele estava nas ruas falando como um político... ou como um fofoqueiro! Sempre reclamando. TODA A VIZINHANÇA SABIA DE SUA LOUCURA! A loucura de seu tio não dava para esconder.
Bem, na “via de egresso” as pessoas falavam sobre sua loucura. Os familiares sempre falavam mais que os pacientes. Um paciente militar disse que ele tinha ficado fora de internações psiquiátricas por quinze anos. Ele tinha tido recaída dessa vez, mas ele disse estar confiante no futuro. Tinha uma paciente que andava com uma muleta. Sua parente falava sobre suas crises constantes. Inclusive que em uma das crises ela simplesmente pulou do segundo andar para a calçada. Por isso que agora ela andava mancando. Estêvão tinha machucado a canela na primeira crise. Ele estava diante de pessoas que tinham passado por várias crises. Será que ele teria várias crises? Será que ele iria sofrer maiores ferimentos? Eram as perguntas que ele se fazia. Ele e sua mãe falaram pouco, quase nada.
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