|
O DUPLO REGISTRO DE MEMÓRIA
Ednei José Dutra de Freitas, Ph.D
ABSTRACT
This article introduces a discovery of a double memory register in human
mind. The second memory register now discovered is until unknown by science
and has different function of the first one well know by science. They
are not similar at all. That discover is published here under lights of
Epistemology.
RESUMO
Este artigo contém a comunicação científica
da descoberta de que há um duplo registro de memória na
espécie humana. O segundo registro, ora comunicado ao meio científico,
é desconhecido pela ciência e difere do que a ciência,
a psiquiatria e a psicanálise conhecem e nominam como memória,
até o presente momento. Tal conhecido registro é um dos
registros de memória que tem o ser humano, mas o segundo registro
que se distingue completamente do que hoje se conhece como memória,
ainda é ignorado por estas ciências. A descoberta aqui publicada
o foi à luz da Epistemologia.
RESUMEN
El artículo contiene la comunicación científica
del descubrimiento de que hay dos y no solo un registro de memoria en
los humanos. El nuevo registro es desconocido por la ciencia, la psiquiatría,
el psicoanálisis, y es muy diferente de lo que estas ciencias conocen
con el nombre de memoria (este es solamente uno de los registros de memoria
en el hombre y ya se lo conoce bien) hasta nuestros días. El artículo,
como el descubrimiento, se hace descrito a la luz de la Epistemología.
O artigo que ora apresento contém uma descoberta de um duplo registro
de memória na espécie humana. Como toda descoberta este
artigo deve ser fundamentado com a Epistemologia que, infelizmente, ainda
engatinha no Brasil. Por tal razão sinto que será útil
introduzí-lo somente após levar ao leitor uma noção
necessária e suficiente do que seja Epistemologia, o que facilitará
o entendimento e colocará o artigo à prova, como tudo deveria
ser feito em Ciência, sob as diretrizes epistemológicas de
Karl Popper expostas a seguir. Para a Epistemologia são fundamentais
as noções filosóficas do que seja objetividade e
subjetividade, razão porque começo meu arrazoado sobre epistemologia
abordando estes dois conceitos fundamentais.
A conceituação filosófica dos termos objetividade
e subjetividade foi especialmente trabalhada por Kant8, que usa a palavra
"objetivo" para indicar que o conhecimento científico
deve ser justificável, independentemente de capricho pessoal. Uma
comunicação, uma descoberta, serão objetivas se puderem,
em princípio, ser submetidas a prova e compreendidas por todos.
Diz Kant8:": Se algo for válido para todos os que estejam
na posse da razão, seus fundamentos serão objetivos e suficientes".
Aplica a palavra "subjetivo" para os nossos sentimentos de convicção
(de vários graus). Estes sentimentos surgem, por exemplo, de acordo
com as leis da associação, acrescentando ainda o filósofo
que "razões objetivas também podem atuar como causas
subjetivas de juízo, à medida que possamos refletir acerca
dessas razões, deixando-nos convencer de seu caráter racionalmente
necessário".
Popper10, por sua vez, sustenta que as teorias científicas nunca
são inteiramente justificáveis ou verificáveis mas
que, não obstante, são suscetíveis de se verem submetidas
a prova. Em conseqüência, a objetividade dos enunciados científicos
reside na circunstância de poderem ser intersubjetivamente submetidos
a teste. Em seu livro, citado na bibliografia10, Popper reconhece que
Kant foi "talvez o primeiro a afirmar que a objetividade dos enunciados
científicos está estreitamente relacionada com a elaboração
de teorias - com o uso de hipóteses e de enunciados universais...Só
quando certos acontecimentos se repetem, segundo regras ou regularidades,
tal como é o caso dos experimentos passíveis de reprodução,
podem as observações ser submetidas a prova -em princípio-
por qualquer pessoa. Na teoria popperiana, por este denominada "Teoria
do Método Dedutivo de Prova"10, uma hipótese só
admite prova empírica - e tão somente após haver
sido formulada. O trabalho do cientista consiste em elaborar teorias e
pô-las a prova. Com isso ele quer dizer que "o estágio
inicial, o ato de conceber, criar ou inventar não reclama análise
lógica nem dela é suscetível, só importando
a justificação de validade (o quid juris?, de Kant)"(Popper)10.
Afirma ainda este filósofo que não existe um método
lógico de conceber idéias novas porque toda descoberta encerra
"um elemento irracional ou uma intuição criadora, no
sentido de Bergson".
Indo além, Popper afirma não haver enunciados definitivos
em ciência, o que concorda com Kant, pois a coisa em si, a verdade
absoluta, é incognoscível, sendo o conhecimento em ciência
sempre aproximativo e passível de ser mudado. Errar em ciência
é inevitável.
Em Psicanálise, o desenvolvimento científico não
é diferente das demais ciências, não havendo desacordo
com os critérios filosóficos de Kant e Popper. A realidade
de que a Psicanálise pode tomar conhecimento é a realidade
das apresentações psíquicas da pulsão, e não
das pulsões em si mesmas. Freud disse a respeito que "o objeto
interno é menos incognoscível que o mundo exterior...como
o físico, tampouco o psíquico necessita ser em realidade
tal como nos parece. Todavia nos agradará descobrir que a retificação
da percepção interna é menos rebelde do que a retificação
da percepção externa, e que o objeto interno é menos
incognoscível do que o mundo exterior".
Todavia, finaliza Popper10:"todo enunciado científico empírico
pode ser apresentado de maneira tal que todos quanto dominem a técnica
adequada possam submetê-los a prova. Se, como resultado, houver
rejeição do enunciado, não basta que a pessoa nos
fale acerca de seu sentimento de convicção, no que se refere
às suas percepções. O que essa pessoa deve fazer
é formular uma asserção que contradiga a nossa, fornecendo-nos
indicações para submetê-la a prova. Se ela deixa de
agir assim, só nos resta pedir-lhe que faça novo e mais
cuidadoso exame de nosso experimento, e que reflita mais demoradamente".
Sob as luzes da Epistemologia, como apontada nos parágrafos anteriores,
vou apresentar minha descoberta, a de que há dois registros distintos
de memória na espécie humana, colocando minha descoberta
a prova por todos que dominem a técnica adequada e a possam submeter
a teste. Por razões didáticas vou dividir a explanação
de minha descoberta em dois capítulos abaixo descritos.
CAPÍTULO 1
Nosso destino é construído no decorrer da ontogênese,
como edificação psíquica fantasmática que
se inicia no útero com impressões e emoções
emanadas do inconsciente materno. O destino habita o porão da nossa
mente, de tal maneira que cada um de nós, dependendo de como resolve,
ou não, o complexo de Édipo, determina para si próprio,
sem nunca o saber conscientemente, isto é, com os recursos da memória
comum que conhecemos, todo o trajeto de vicissitudes que irá percorrer
pela vida afora. Não está escrito nos astros, embora muitas
vezes possa ser previsto à perfeição por astrólogos,
cartomantes, videntes, pais-de-santo: não porque forças
do além ou almas do "outro mundo", que não existem,
venham em auxílio para esses maravilhosos paranormais. O que acontece
é que estes têm a faculdade, ainda desconhecida da ciência
em sua fisiologia, de fazer a leitura direta do inconsciente (do consultado)
pelo inconsciente do paranormal. Todavia, é de conhecimento público
e universal que estas acertadas previsões, acertadíssimas
muitas vezes, apenas reportam para o consultado o que vai ocorrer em sua
vida, mas exatamente são acertadas porque nunca servem para mudar
o curso do destino do consultado ou de sua história.
Não há psicoprofilaxia para miríades possíveis
de autoconfigurações ontogenéticas da psicogênese
de cada um de nós, já que dependem, cada uma, de fatores
intrínsecos e ainda imponderados de cada criança que vem
ao mundo, parecem depender pouco ou nada do nosso DNA já que gêmeos
homozigóticos podem traçar para si destinos completamente
diferentes - o que isenta os pais e a família de qualquer responsabilidade.
No cume de minha carreira profissional, que se deu no ano de 1991, descobri
a "Memória dos Freitas" (e aqueles que ficarem curiosos
porque dei à memória que descobri o nome de minha família
digo que foi por um imperativo categórico, exaustivo e desnecessário
de explicar aqui, mas extensamente explicado no meu livro, constante da
bibliografia)4 e a publiquei na terceira edição de meu livro
"Psicofarmacologia Aplicada à Clínica". A Memória
dos Freitas é uma descoberta psicanalítica e é uma
expressão de nosso destino. A imensa maioria das pessoas passa
a vida estritamente dentro de seus preceitos e limites, mas uma minoria
de pessoas rompe com estes, embora mesmo assim sua influência sobre
tais rompedores continue implacável por toda a vida.
Aqueles que vivem unicamente nos preceitos e limites da Memória
dos Freitas são a maioria do povo, os menos inquietos com seus
dogmas, os que não sentem necessidade de criar, de procurar um
pensar genuíno, inovador ou mesmo revolucionário, nem mesmo
alcançam uma diferenciação de self do conjunto simbiótico
da horda humana em que vivem. Comportam-se, no mundo, como rebanho. Para
os que podem usufruir desta benesse, há uma tessitura de vida pronta,
aprendida e apreendida na casa parental, no convívio social, e,
em geral, podem ter garantido para si uma vida menos atribulada, ou até
estável, já pronta -como destino- no porão da mente.
Mantêm-se na mediocridade de ser e não precisam transgredir
a Memória dos Freitas. A Memória dos Freitas é a
memória sócio-cultural-inconsciente-familiar-pessoal do
indivíduo, sua mitologia, sua religião e crenças,
seus ideais a serem perseguidos, dentro de sua tradição
e seu folclore.
Os transgressores não o fazem por prazer mas por necessidade (inquietação
anímica, sensibilidade supra-mediana). A compositora Chiquinha
Gonzaga, por exemplo, cuja vida anímica não cabia em sua
tradição familiar e cultural rompeu pela esquerda com a
Memória dos Freitas. Quando há esta ruptura, torna-se impossível
regressar a esta memória e viver dentro de seus preceitos, e o
indivíduo transgressor é obrigado a criar para si e para
o mundo, redesenhar o universo para renominar as coisas, outros meios
e métodos, outros paradigmas, outros ideais a serem perseguidos,
outra maneira que lhe ajude a não sucumbir ao caos que decorre
do abandono de padrões familiares, culturais, sócio-educativos
pré-estabelecidos no decorrer e na construção feita
por várias gerações suas ancestrais, cujo objetivo
é "enquadrar" o rebanho e tornar possível a vida
em sociedade (a mediocridade do enquadramento como rebanho é necessária,
pois sem as normas inconscientes, as massas promoveriam a barbárie
e a autodestruição: a Memória dos Freitas é
uma necessidade humana, nesta pré-história do humanismo).
Para os que rompem pela esquerda, criar passa a ser uma tarefa árdua
e compulsória, ah! esses príncipes e princesas da solidão!,
mesmo que aparentemente acompanhados.
O sujeito bem adaptado à Memória dos Freitas vive, em geral,
sem grandes inquietações interiores, e suas ambições
coincidem com as de seu meio sócio-cultural, sendo por isso bem
aceitos em suas comunidades. Tais pessoas podem enriquecer de dinheiro,
tomar postos no grande empresariado, nas lideranças políticas
ou religiosas, podem ser excelentes profissionais liberais, como também
podem -a maioria- fazer parte da população de baixa renda.
São todos estes os indivíduos comuns do povo e sua maioria
é aquilo que podemos chamar de "pessoa normal".
Para aqueles que rompem pela esquerda com a Memória dos Freitas,
surgirá, inexoravelmente, a hostilidade familiar e social: o sujeito
passa a ser visto como esquisito, extravagante, ou mesmo "maluco".
Todo este mal-estar que causa à família e ao meio social
que freqüenta provoca, nestes últimos, a reação
de contrapartida, cujo objetivo (inconsciente) é forçar
a volta daquele que rompeu para os cânones da Memória dos
Freitas, já que o rompedor questiona dogmas e valores sociais vigentes,
ameaçando a homeostase do rebanho.
Um artista ou escritor de talento, um compositor ou pintor criativo, irá
experimentar estranheza ante aquilo que, antes, lhe era familiar, e passará
a questionar e mudar sua visão de mundo. Há, então,
de pagar o ônus de ser diferente para conseguir conviver com aceitável
harmonia no meio social que o hostilizará. Paradoxalmente, com
o passar dos anos (mas às vezes, infelizmente só post-mortem)
terá compensações e reconhecimentos, que normalmente
tardam. Mas certamente ganham para si próprios os louros de maior
riqueza na vida espiritual , além de deixar um legado conceitual
enriquecedor para a humanidade.
A Memória dos Freitas é , também, uma fonte de conhecimento
de nossa pré-história, e neste sentido não pode ser
desprezada. Por exemplo, nos sonhos, na regressão hipnótica,
nas rememorações verdadeiras -embora ainda explicadas com
teoria pífia e errônea- ocorridas nas auto-denominadas "terapias-de-vidas-passadas"
(que são inócuas exatamente por causa da fundamentação
teórica bizarra), em gestos e comportamentos "involuntários"
(inconscientes) que o indivíduo reproduz no cotidiano ou em alguma
época de sua vida, tais como uma maneira de andar (lembrar a Gradiva,
de Jansen, analisada por Freud), ou movimentar coreograficamente as mãos
e o corpo ou comportar-se com gestos, temperamento, caráter tal
qual um bisavô ou bisavó que nunca conheceu (características
muitas vezes atávicas), ou uma compulsão para adoecer das
pernas a partir de uma certa idade, na velhice, comum em algumas gerações
de famílias que acompanho e anoto o registro4, de tal maneira que
o descendente remoto, irmãos e primos param de andar sem razão
médica detectável, imitando mesmo que atavicamente seus
ancestrais desconhecidos. Toda esta constelação de fatos
pode nos dar pistas sobre as "vidas passadas", o destino e a
Memória dos Freitas ao sujeito transmitidos por seus antepassados,
de forma sub-reptícia, inconsciente, predominantemente averbal,
até porque de antepassados que sequer conheceu, às vezes
muito remotos no tempo.
Esta transmissão inconsciente de códigos comportamentais
e de destinos foi, de certo modo, reconhecida por Freud como fenômeno
natural da psiquê humana. Disse Freud no Capítulo V10 (vide
página na bibliografia) de seu livro "Esboço de Psicanálise",
uma de suas últimas obras, que "os sonhos trazem à
luz um material que não pode ter-se originado nem da vida adulta
de quem sonha nem de sua infância esquecida. Somos obrigados a considerá-los
parte de uma herança arcaica que uma criança traz consigo
ao mundo, antes de qualquer experiência própria, influenciada
pelas experiências de seus antepassados. Descobrimos a contrapartida
deste MATERIAL FILOGENÉTICO (o grifo é meu) nas lendas humanas
mais antigas e em costumes que sobreviveram. Dessa maneira, os sonhos
constituem uma fonte da pré-história humana que não
deve ser menosprezada". Aqui vemos com clareza que Freud reconheceu
o fenômeno da transmissão de códigos inconscientes
comportamentais, transgeracionais e sócio- culturais entre gerações
que sequer tiveram contato temporal, mas também podemos notar,
com igual transparência, seu erro teórico crasso, absurdo
para os conhecimentos da ciência atual. Para Freud, a gravação
da memória de costumes, lembranças e códigos comportamentais
a nós transmitidos por nossos antepassados seria filogenética,
isto é, repassada das vivências de gerações
antigas para e pelo DNA. O pai da psicanálise não estava
sozinho ao pensar assim em sua época (Jung também)4. A Lei
da Herança de Caracteres Adquiridos, da Teoria da Evolução
de Lamarck3 (na bibliografia) ainda tinha adeptos, incluindo-se a Teoria
da Degenerescência, que Freud abraçou em sua obra, embora
timidamente; e entre os adeptos de Lamarck estava Freud, que se opunha
à Teoria da Evolução de Charles Darwin, jamais abraçada
por ele (embora Freud cite Darwin algumas vezes em sua obra, e lhe faça
elogios, o que fez com a razão, Freud escreveu o nome de Darwin
em sua obra como os católicos escreveram o nome de Pôncio
Pilatos no CREDO: o nome está lá mas não tem nenhuma
função: não há uma só interpretação
nos casos clínicos de Freud ou uma só frase em seu oceano
de insights contido em suas obras completas que tenham sido intuídos
com matizes subjetivos da teoria darwinista. E isto tem uma explicação.
A teoria darwinista jamais foi abraçada por Freud porque supostamente
(até hoje) fere as escrituras sagradas judaicas. Freud era ateu,
admirava Darwin com sua razão, mas por motivo afetivo jamais conseguiu
se distanciar, inconscientemente (Memória dos Freitas) da cultura
e da tradição judaicas, às quais foi sempre solidário,
nos acertos e nos erros. Hoje, nem uma criança de ensino médio
ou Freud se permanecesse vivo iriam aceitar explicações
lamarckistas.
Sou obrigado a abrir um parágrafo aqui porque desde 1991 tenho
experimentado oposição na troca verbal de idéias
com analistas vários, judeus e não judeus, por causa desta
minha afirmação de que Freud abominava emocionalmente Darwin
e se apoiava em Lamarck para (inconscientemente) proteger a cultura judaica.
Já me chamaram até de anti-semita! Outros, menos radicais,
dizem que não é verdade, que Freud adorava Darwin: prezados
leitores, é só ler Ernest Jones1 na bibliografia e nas páginas
que indico neste trabalho, o insuspeito Ernest Jones, para fazer calar
estes insultos que venho recebendo há treze anos. Acho que o próprio
Freud treme no túmulo cada vez que ouve um psicanalista argumentar
estes horrores ortodoxos e dogmáticos contra minha descoberta.
A investigação sobre a transmissão de códigos
entre gerações, falada por Freud, nunca foi prosseguida
(nem se fala nisso) pelos psicanalistas porque há muita ortodoxia
e, pior, dogmatismo, mesmo entre os psicanalistas. E logo dogmatismo lendo
como "Bíblia" as palavras do pai da psicanálise,
que nunca pediu rebanho e tinha horror de fanáticos-dogmatistas!
Ortodoxia psicanalítica ou dogmatismo psicanalítico = Memória
dos Freitas dentro da própria Psicanálise. Quem foi mais
heterodoxo com suas próprias idéias, insatisfeito com a
primeira criou a segunda tópica, entre muitos outros exemplos foi
o próprio Freud, o gênio que possibilita eu hoje estar escrevendo
este artigo. Mas não imagina o leitor quão difícil
é colocar este assunto, quanto sofrimento, quanta incompreensão
tenho recebido. Mas não tenho como sucumbir ao dogma. Minha teoria
pode ser refutada (e espero que seja) pelos critérios de Popper,
epistemologicamente. Mas na base da ortodoxia psicanalítica, não.
Até porque este não é o critério de refutar
teorias. E estou convencido de estar com a razão.
Por outro lado, no vácuo teórico deixado por Freud, os espíritas
passaram a "explicar" esta "memória-de-vidas-passadas"
com uma teoria tão absurda quanto a de Freud. A teoria dos espíritas
é consensual, hoje, entre os "terapeutas-de-vidas-passadas"
no mundo todo, e se alastram tanto quanto as diferentes seitas evangélicas
Brasil afora, fazendo vítimas. Acreditam estes "terapeutas",
todos espíritas, que no setting da seção de "terapia-de-vida-passada"
almas do "outro mundo" encarnam-se no paciente, hipnotizado
ou não, o que, então, para estes, explicaria suas lembranças
de épocas remotas, anteriores ao seu nascimento. Claro, assim também
não dá. Todavia o fenômeno, já notado por Freud,
de reminiscências que o sujeito tem de fatos que antecederam a seu
nascimento é um fato da natureza humana e tudo que é fato
da natureza insiste em acontecer e reclama uma explicação.
O que fiz ao nominar (criar) a noção de Memória dos
Freitas foi refutar, de acordo com os critérios epistemológicos
de refutação de Karl Popper, as duas teorias acima descritas,
a de Freud e a dos espíritas, trazendo uma nova teoria que contradiz
aquelas e oferecendo ao leitor os meios de refutar a minha própria
teoria. O conceito e a constelação de proposições
que compõem a Memória dos Freitas, porém, não
se esgota aqui. Na verdade, coloquei à frente este assunto da memória
entre gerações não conviventespor seu apelo à
atenção pública, mas este é apenas um assunto
um tanto periférico de minha descoberta. Outros aspectos mais relevantes
e mais importantes da Memória dos Freitas vou abordar no capítulo
2 deste ensaio, para dar uma folga ao leitor para respirar.
Todavia, acrescento que as lembranças de fatos que ultrapassam
no tempo a época do nascimento de pacientes, pelo que observo em
minha clínica, não se referem somente a parentes ancestrais
consangüíneos: podem ser do ambiente de uma família
adotiva, o que sepulta de vez a hipótese de transmissão
pelo DNA. E, ainda, estas lembranças podem ser interpretadas e
decodificadas no setting da psicanálise4. A psicanálise,
ao decodificar e interpretar a Memória dos Freitas, muda o destino,
e não há cartomante ou vidente paranormal que possa prever
o que virá a acontecer no futuro de um paciente bem analisado.
Outras conseqüências de minhas descobertas, em parte publicadas
neste primeiro capítulo e aqui em primeira mão, já
que quando publiquei a 3° edição de meu livro4 ainda
não havia percebido isso, é que só há indicação
de psicanálise para aqueles que rompem pela esquerda com a Memória
dos Freitas. É crueldade psicanalisar um paciente, mesmo neurótico,
bem adaptado à Memória dos Freitas porque a psicanálise
(se for bem feita) irá fazê-lo romper com a Memória
e trará sofrimento para o paciente, muitas vezes sem a força
criativa necessária para reordenar o caos que daí decorre,
mesmo com auxílio do analista. A pobreza de espírito, a
adaptação à mediocridade são, portanto, contra-indicações
absolutas de psicanálise. Já os que rompem pela direita
com a Memória dosFreitas - psicopatas, dementes, esquizofrenias
com sintomas negativos (a hebefrênica especialmente), esquizofênicos
cronificados, deficiência mental- a psicanálise é
uma hipótese que deve ser definitivamente afastada: nessas pessoas
não há como criar e reordenar o caos pelo insight e interpretações,
provocando uma ruptura impossível pela esquerda com a Memória
dos Freitas. Para esses, terapias alternativas que não molestem
o inconsciente são melhor indicadas.
Outro desdobramento de minha descoberta, que eu não havia percebido
ainda quando publiquei minha terceira edição4 é o
de que nos psicóticos que rompem pela direita (esquizofrenia hebefrênica
ou a forma catatônica da doença , psicoses cronificadas),
nas demências que deles necessitem, só há dois antipsicóticos
(neurolépticos) de segunda geração no mercado brasileiro
que ajudam a tratar: a quetiapina -o melhor de todos- e a amisulprida.
O haloperidol, bem como os demais antipsicóticos, mesmo os de segunda
geração como a olanzapina, a risperidona, a clozapina, por
exemplo, não só não ajudam a tratar como agravam
estes quadros mórbidos. Isto a experiência empírica
dos colegas poderá confirmar (embora eu não recomende que
tentem doravante) mas é um fato clínico observado com rigor
por quem escreve livros e artigos sobre psicofarmacologia desde 1981.
No entanto, o haloperidol, os neurolépticos tradicionais e os demais
antipsicóticos de segunda geração que não
a quetiapina e a amisulprida são de valor e ajudam a tratar, com
eficácia similar uns aos outros (a escolha deve ser feita apenas
levando em conta os efeitos adversos) aos esquizofrênicos e demais
psicóticos que têm sintomas produtivos (delírios,
alucinações, predominantemente), como na forma paranóide
da esquizofrenia, na mania, mas estes pacientes normalmente rompem pela
esquerda com a Memória dos Freitas, e também nestes a psicanálise
é normalmente bem indicada como psicoterapia, ou melhor, já
que não é propriamente uma psicoterapia, como técnica
de investigação do inconsciente, o que acaba sendo terapêutico.
A psicanálise, nos que rompem pela esquerda, pode decodificar e
interpretar a Memória dos Freitas e é a única via
que conheço para modificar o destino porque joga um facho de luz
nos porões da mente.
Antes que em algum leitor suscite a idéia de que ao falar em romper
pela esquerda e romper pela direita com a Memória dos Freitas a
matéria tenha alguma raiz ideológica, pergunta que já
me foi feita várias vezes, esclareço que não: em
meu livro há um gráfico publicado com quadrante cartesiano
de abscissas e ordenadas, com projeção em épura,
no plano, da figura espacial que visualizei da Memória dos Freitas,
no espaço, com o olho observador e projetor colocado em perpendicular
(90 graus) relativamente ao plano cartesiano, colocado abaixo da imagem
espacial, e sobre o centro da figura. Nesta projeção aparece
a imagem plana da Memória dos Freitas centralizada no quadrante
cartesiano. As doenças que mencionei como tendo rompimento criativo
estão projetadas à esquerda da imagem central da Memória,
e o rompimento destrutivo aparece projetado à direita. É
pura Geometria Descritiva. É tal como acontece para se estudar
um tórax: não se radiografa o pulmão em três
dimensões, mas a épura (não deixa de ser épura)
da figura espacial do pulmão que se quer estudar é vista
no plano da radiografia. O mesmo vale para a tomografia, ressonância
magnética: Seria difícil trabalhar com ressonância
magnética de uma imagem espacial do cérebro, por exemplo.
Temos de trazê-la para o plano, em épura.
CAPÍTULO 2
No capítulo anterior discorri sobre a memória de fatos ocorridos
antes de nascermos, aprendida e apreendida desde o útero materno
e após o nascimento na casa parental e no meio social que esta
é inconsciente e impossível de evocar à consciência
sem ajuda especializada, e que molda nosso comportamento cotidiano, crenças,
erros e até acertos em nosso relacionamento com o próximo;
ela é provinda de aprendizado averbal e informal, chamei-a de Memória
dos Freitas e disse que o aspecto da reminiscência de fatos que
precedem nossa data de nascimento dela faz parte. Mas afirmei que este
é apenas um aspecto periférico de uma constelação
de complexidades que formam a Memória dos Freitas, havendo outros
muito mais importantes, embora tenham menos apelo à curiosidade
humana. Mas sua utilidade e descoberta são uma nova aquisição
da Ciência e devemos destes tomar conhecimento.
Neste artigo vou revelá-los. O fenômeno foi primeiramente
observado por Freud, mas a investigação paralisou porque
este acreditava que a transmissão de memória entre gerações
que não se tocaram no tempo era feita pelos gametas, isto é,
pelo DNA, o que é uma teoria absurda. Freud tinha em seu entorno
o campo cultural de uma época na qual o Lamarckismo era muito forte,
embora a Teoria da Evolução, de Darwin, já fosse
conhecida. Sabemos que Freud, escritor de "O futuro de uma ilusão"
muito se distanciou , intelectualmente, das posições e dogmas
religiosos, mas para ele o peso mítico deste aspecto evolucionista,
por ser ele judeu, inconscientemente, foi-lhe intolerável de ser
vencido, e ele não conseguiu distanciar-se, neste particular, AFETIVAMENTE,
de sua cultura judaica, de tal maneira que este ponto afetivo tornou-se
um ponto inatingido à compreensão do mestre.
Vou aproveitar o conceito de ponto inatingido4 como marca da cultura e
da tradição regional, familiar e pessoal inconscientes de
cada um de nós, para explicitar a tradição a que
chamei de Memória dos Freitas. O que chamei de Memória dos
Freitas é, também, nossa instância mítica.
E o que é um mito? Os mitos são contos que não conseguimos
desmentir, decodificar ou reduzir com o curso normal do pensamento e com
a evocação da memória comum, já que não
são conscientes. São relatos de origem popular, não
reflexivos, na maioria das vezes retratando forças da natureza
ou crendices tão ilógicas como onipresentes e atuantes em
nosso cotidiano, escondidas no porão da mente: lobisomem, idéias
de que olho grande e inveja de outros têm energia para nos trazer
infortúnio (sem que consigamos enxergar o óbvio científico
de que inveja não tem energia nenhuma, tanto na concepção
da Física Clássica, de Newton, quanto na da Física
Quântica2, e por ser um sentimento, apenas, e inerente ao sujeito
que dela padece, e só faz mal ao invejoso).
O raciocínio crítico sucumbe aos mitos, porque os mitos,
sendo inconscientes, não são suscetíveis de exame
pela razão e nem nela chegam, por mais inteligente e perspicaz
que seja a pessoa. Estes são aprendizados inconscientes irracionais.
Posso dizer também que o mito é uma verdade que o indivíduo
inconscientemente se acredita possuidor, que não é estabelecida
pela razão. Sua decodificação é difícil,
mas possível através da psicanálise, e a dificuldade
é ancorada no fato de não podermos evocá-los à
lembrança, em outras palavras, à luz do pensamento, e às
vezes é difícil até mesmo decodificar seu próprio
enunciado, que pode ser intensamente vivido pelo indivíduo, sem
que este se aperceba sequer de como é que seu mito se enuncia.
Como eu disse, os mitos são contos que não podemos desmentir,
descumprir, decodificar ou reduzir pelas vias normais do pensamento, e
têm um caráter universal, quer seja este universo a humanidade
toda, a região, a família ou a própria subjetividade
do sujeito (mitos pessoais).
E agora? Digo que os mitos são contos e que há nesta sua
transmissão, através das gerações, um aprendizado
informal, e o leitor há de perguntar: então quem conta esses
contos? A esta pergunta vou responder com um caso clínico emprestado
do próprio Freud, em cima de uma passagem de seu livro "Análise
da fobia de um menino de cinco anos"5, o famoso caso do pequeno Hans.
Logo na introdução, parte I do texto, conta Freud que Hans,
aos três anos e meio de idade, foi visto por sua mamãe tocando
com a mão no próprio pênis. Ela o ameaçou com
as seguintes palavras: "Se fizer isso de novo, vou chamar o Dr. A
para cortar fora o seu 'pipi' ". Como se pode perceber, esta curta
história, tão universal, que se passou com Hans e sua mamãe
- e todos nós já presenciamos mães e adultos repetindo
esta mesma ameaça a crianças pequenas sem saber que estão
propagando um trágico mito inconsciente - contém uma codificação
inconsciente mítica, que a mãe de Hans nem conhecia de pleno
teor o seu significado, codificação que a ela foi transmitida
por seus ancestrais e que ela retransmitiu para o filho. Exatamente por
não ter consciência do enunciado do mito que estava retransmitindo
ao filho, o retransmitiu de forma incompleta e falseada.
Na verdade, nem era o Dr. A que estava presente no inconsciente da mãe
de Hans quando ela retransmitiu ao filho uma ameaça aprendida inconscientemente
com seus próprios ancestrais. Este material, incompletamente verbalisado,
deu a Hans munição para a formação de um de
seus mitos, o mito da castração. Entre as lacunas que ficam
naquilo que é transmitido pelas gerações anteriores,
entre as lacunas daquilo que é retransmitido incompleta e falseadamente,
entre as lacunas daquilo que o menino ou a menina podem apreender com
as suas próprias palavras (único instrumento simbólico
que dispõem para construir sua visão de mundo) e fantasias
que encontram sobre o que observam em si mesmos e no mundo externo nascem
os mitos, todos os mitos, estes tapa-buracos do pensamento humano.
Os nossos mitos mais primevos e mais universais são as nossas protofantasias,
a de sedução, a de castração e a da cena primária.
São elas fantasias sobre a origem, e não fantasias presentes
desde a origem (como imaginavam Freud, Jung e ainda muitos analistas hoje
em dia, resíduos do Lamarckismo, que imaginava, dentro da psicanálise,
que as protofantasias já vinham desde a origem, trazidas pelos
gametas - DNA -) e que bom que são, na verdade, apenas fantasias
criadas pelas representações simbólicas através
de impressões e experiências inconscientes, e, portanto,
fantasias que nós todos criamos como edificações
simbólicas na ontogênese - desenvolvimento que depende da
cultura-, pois se fossem fantasias herdadas pelo DNA (filogenéticas),
como pensavam Freud e Jung, como poderia a psicanálise atenuar
efeitos mitológicos desestruturantes?.
Mitos desestruturantes tanto quanto mentirosos são os que as pessoas
têm de que inveja e olho grande, ou ódio de outrem podem
ter uma "energia" que faz mal ao indivíduo invejado.
Este é apenas um exemplo, entre miríades. Se apelarmos para
a razão e o conhecimento da ciência, os mitos cairão
por terra ao primeiro exame:
Os mitos só servem à perpetuação dos dogmas
e à manutenção do espírito de rebanho, geralmente
provocam medo e têm a função social complementar às
leis civis e religiosas, sendo mais poderosos que essas porque não
são verbalizáveis, são impostos pela Memória
dos Freitas e imunes ao raciocínio crítico e à liberdade
de opinião, e têm como função primordial não
permitir que o indivíduo mediano transgrida "normas"
estabelecidas socialmente e, portanto, têm eficácia em impedir
uma barbárie, ainda maior do que a que hoje vemos no Brasil e no
Mundo.
A descoberta da Memória dos Freitas e a possibilidade que aí
se abre para jogarmos sobre esta, (que habita os porões da mente
e cujos subprodutos assustadores, castradores, tirânicos, impositivos
proliferam como fungos na escuridão), fachos de luz, permitem o
alívio e a libertação de todos nós dos grilhões
que nos tolhem os passos do crescimento, desfazem nossa ignorância
sobre as verdades da natureza e ajudam no sentido de que a nossa vida
seja mais produtiva, livre, descontraída e profícua, sem
medos absurdos e irracionais.
No presente, só uma minoria rompe com ela (a Memória dos
Freitas) e não é por escolha, mas por desconforto, e quando
rompe pela esquerda cria as obras que edificam o conforto e o progresso
da humanidade: nós vivemos todos nas costas desses gigantes. A
maioria das pessoas precisa ficar dentro dela, já que a civilização
ainda não criou instrumento menos cruel para garantir à
grande massa a necessária humanização sem usar instrumentos
coercitivos: e não só da Memória dos Freitas precisamos
para que não se saia cometendo por aí, Brasil e mundo afora,
toda espécie de delitos, crimes, das maneiras mais horrendas: ainda
precisamos de Código Penal, polícia, Forças Armadas!
A humanidade ainda está na pré-história do humanismo.
Só os muito grandes de espírito percebem a coerção
que a Memória dos Freitas representa e com ela rompem para criar.
Mas se a humanidade toda rompesse, sem os mesmos recursos criativos desses
super-homens, seria uma catástrofe.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Jones, Ernest - Vida e Obra de Sigmund Freud, IMAGO ED. Vol.2, páginas
de 301 a 313, Título X - Biología, Río de Janeiro,
1975.
2. Kalmus, H. - Genetics, Pelican Ed., London, 1948.
3. Lamarck, Jean Baptiste - Philosophie Zoologique, Librairie Reinwald,
Schleideir Frères Editeurs, Paris, 1907.
4. Freitas, Ednei - psicofarmacología Aplicada à Clínica,
EPUB ED., 3° Edição, páginas de 3 a 47, Río
de Janeiro, 2000.
5. Freud, Sigmund - Análise de uma fobia em um menino de cinco
anos, IMAGO ED., Edição Standard Brasileira, Vol. X, Río
de Janeiro, 1975.
6. Freud, Sigmund - Os instintos e suas vicissitudes, IMAGO ED., Edição
Standard Brasileira, Vol.XIX, Río de Janeiro, 1975.
7. Freud, Sigmund - (1937-1939) - Esboço de Psicanálise,
IMAGO ED., Edição Standard Brasileira, Vol XXIII, páginas
de 169 a 210, más especialmente la página 193, Río
de Janeiro, 1975.
8. Kant, I. - (1781). Critique of pure reason, in The Transcendental Doctrine
of Method, N. Kemp Smith Ed., Capítulo II, seção
3, página 645, England, 1933.
9. Popper, Karl - A lógica da pesquisa científica, Ed. Cultrix,
páginas de 46 a 49 e 106, São Paulo, 1989.
10. Popper, Karl - Conhecimento Objetivo, Ed. Itatiaia, páginas
de 152 a 158, Belo Horizonte, 1975.
Ednei José Dutra de Freitas, Ph.D. é psiquiatra,
psicanalista, membro efetivo da Sociedade Psicanalítica do Rio
de Janeiro, ex-professor de Psiquiatria e Psicologia Médica da
Faculdade de Medicina da UERJ (RJ), Membro Titular da Sociedade Brasileira
de Médicos Escritores (SOBRAMES) e autor do livro Psicofarmacologia
Aplicada à Clínica, 3° Edição, EPUB, Rio
de Janeiro, 2000. e- mail: edneifreitas@globo.com
|
|