Fernando Pessoa

  O Amor  

O amor, quando se revela, 
Não se sabe revelar. 
Sabe bem olhar p'ra ela, 
Mas não lhe sabe falar. 

Quem quer dizer o que sente 
Não sabe o que há de *dizer. 
Fala: parece que mente 
Cala: parece esquecer 

Ah, mas se ela adivinhasse, 
Se pudesse ouvir o olhar, 
E se um olhar lhe bastasse 
Pr'a saber que a estão a amar! 

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente 
Fica sem alma nem fala, 
Fica só, inteiramente! 

Mas se isto puder contar-lhe 
O que não lhe ouso contar, 
Já não terei que falar-lhe 
Porque lhe estou a falar...

Mais triste do que o que acontece    

Mais triste do que o que acontece 
É o que nunca aconteceu. 
Meu coração, quem o entristece? 
Quem o faz meu? 

Na nuvem vem o que escurece 
O grande campo sob o céu. 
Memórias? Tudo é o que esquece. 
A vida é quanto se perdeu.
E há gente que não enlouquece! 
Ai do que em mim me chamo eu! 

Já não vivi em vão

JÁ NÃO VIVI em vão
Já escrevi bem
Uma canção.

A vida o que tem?
Estender a mão
A alguém?

Nem isso, não.
Só o escrever bem
Uma canção.

 

Eu amo tudo o que foi  

EU AMO TUDO o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói, 
A antiga e errônea fé, 
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

  Contemplo o lago mudo  

Contemplo o lago mudo 
Que uma brisa estremece. 
Não sei se penso em tudo 
Ou se tudo me esquece.  

O lago nada me diz, 
Não sinto a brisa mexê-lo 
Não sei se sou feliz 
Nem se desejo sê-lo.  

Trêmulos vincos risonhos 
Na água adormecida. 
Por que fiz eu dos sonhos 
A minha única vida?  

 

   Bem, hoje que estou só e posso ver  

Bem, hoje que estou só e posso ver 
      Com o poder de ver do coração 
Quanto não sou, quanto não posso ser, 
      Quanto se o for, serei em vão, 

Hoje, vou confessar, quero sentir-me 
      Definitivamente ser ninguém, 
E de mim mesmo, altivo, demitir-me 
      Por não ter procedido bem. 

Falhei a tudo, mas sem galhardias, 
     Nada fui, nada ousei e nada fiz, 
Nem colhi nas urtigas dos meus dias 
     A flor de parecer feliz. 

Mas fica sempre, porque o pobre é rico 
     Em qualquer cousa, se procurar bem,  
A grande diferença com que fico. 
     Escrevo-o para o lembrar bem. 

Basta Pensar em Sentir  

Basta pensar em sentir 
Para sentir em pensar. 
Meu coração faz sorrir 
Meu coração a chorar. 
Depois de  parar de andar, 
Depois de ficar e ir,  
Hei de ser quem vai chegar 
Para ser quem quer partir. 

Viver é não conseguir. 

  Autopsicografia  

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente. 

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm. 

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração. 

 

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