Depois de uma confortável noite no refúgio, era hora de entrar de vez no gelo, desta vez carregando nossas pesadas mochilas cargueiras. Caminhamos, pela última vez, pelo Glaciar Inferior, subimos pela corda fixada um dia antes e içamos as mochilas até o alto do primeiro grande bloco de gelo. Ao longe, bem lá embaixo, avistávamos o pequeno refúgio que havia nos abrigado durante a tempestade. Mais longe ainda, os lagos Paimum e Huechulafquen e o vale do riacho Rucu Leufu, por onde tínhamos subido, formavam uma magnífica vista aérea. O cume nevado do monte Tronador começava a aparecer ao Sul, junto com outros picos que não conseguíamos identificar. Nesse dia, não tivemos um único momento de descanso. Escalávamos num labirinto de seracs, procurando o caminho mais fácil possível entre grandes gretas, paredes às vezes negativas e tetos cobertos de estalactites.
Tínhamos sete parafusos para gelo, que usávamos para ancorar nosso sistema de segurança com corda. Cada parafuso era instalado pelo Hsu - que guiou toda a parte técnica da escalada - e removido por mim repetidas vezes. O parafuso preso no gelo duro exige uma certa força para ser desrosqueado. Em alguns momentos, utilizei a ponta da picareta como ferramenta nessa operação. Em geral, porém, as duas picaretas cumpriam o papel de me manter ancorado enquanto removia os parafusos, de modo que eu não podia contar com elas para isso. Quando o parafuso é desrosqueado, fica um cilindro de gelo em seu interior oco. Esse gelo precisa ser removido para que o dispositivo possa ser reutilizado. Para isso, é preciso soprar dentro dele, para aquecê-lo, e, depois chacoalhá-lo repetidas vezes, até que o gelo se solte. É uma operação demorada e trabalhosa.
Houve mais um lance em que precisei içar a mochila. Estávamos diante do grande paredão negativo que havíamos visto de longe. Descobrimos que era possível escalá-lo pela esquerda, progredindo sobre blocos irregulares de gelo. O trajeto, sinuoso, começava sobre uma parede de uns 80 graus de inclinação com gelo muito quebradiço, que seguia em diagonal para a direita por uns dez metros. No alto dessa parede, um patamar inclinado oferecia um caminho natural para a esquerda, embaixo de um pequeno teto, sob o qual passei engatinhando. A visão dos estalactites pendendo sobre a minha cabeça e da água que escorria deles - o sol brilhava forte nesse momento - era impressionante. Cheguei, então, ao topo de uma chaminé de gelo, onde minha mochila ficou enroscada quando Hsu tentou içá-la. Uma passada cuidadosa sobre a chaminé levava a um estreito patamar inclinado, pelo qual subi, sempre em diagonal para a esquerda, até um ponto onde a borda superior da parede estava ao alcance da picareta.
Nesse lugar, pedi ao Hsu que içasse a mochila, enquanto eu tratava de desenroscá-la. Era difícil porque a borda da parede, de inclinação muito negativa, estava coberta de estalactites, que prendiam as fitas e a corda. Superado o obstáculo, mais alguns poucos metros de rampa fácil me levaram até o Hsu. Estávamos num lugar impressionante, no alto de um grande bloco inclinado. Hsu subiu por ele e descobriu uma passagem para o bloco da direita, cruzando uma greta de uns 6 metros de largura por cima de uma ponte de gelo e neve. Outra greta, outra ponte, e Hsu ancorou a corda numa rampa 50 metros à direita. Na minha vez, a neve cedeu quando dei o primeiro passo sobre a ponte e uma fenda profunda apareceu sob meus pés. Consegui me firmar com as piquetas, evitando a queda, mas a descarga de adrenalina foi forte. Voltei atrás, respirei fundo, esperei um pouco para que a taquicardia diminuísse e reiniciei a travessia.
O gelo parecia firme mais adiante, de modo que pude passar, com um passo largo, sobre o buraco aberto no chão e continuar caminhando. O medo de provocar mais algum desabamento na ponte de neve me fazia caminhar devagar, pé ante pé, com o mínimo impacto possível naquela frágil passarela. No final da ponte, escalei a curta parede para subir no próximo serac. A travessia da segunda ponte transcorreu sem problemas, embora eu estivesse alarmado com a visão da enorme greta que se abria embaixo do bloco de gelo sobre o qual caminhava. Era um buraco que parecia não ter fim - lindo e apavorante em sua cor azul profunda. Mais um trecho vertical de dois metros para escalar e pude me juntar ao Hsu. Eram 9:30 da noite e o sol já havia desaparecido no horizonte. Meus ombros e minha cintura doíam muito com o peso da mochila. Em particular, a barrigueira apertada sobre a cadeirinha de escalada era bastante desconfortável. Além disso, estávamos completando dez horas e meia de atividade intensa e ininterrupta. Não havíamos comido quase nada durante todo o dia e nossa água estava no fim. Para completar o quadro, como não tínhamos mais sol, a temperatura caía rapidamente.
Ia anoitecer em poucos minutos. Logo, era urgente achar um lugar para passar a noite. Começamos uma longa travessia horizontal rumo ao que parecia ser um patamar coberto de pedras. Para ganhar velocidade, enrolamos a corda e escalamos esse trecho sem segurança. O patamar era, na verdade, o topo de um serac. Não era plano, estava rodeado de gretas profundas e era um alvo evidente para as pedras que caíam de um paredão rochoso algumas dezenas de metros acima. Mas não tínhamos escolha. Por isso, ancoramos nossa barraca no gelo com seis parafusos. Parte dela ficou suspensa no ar, já que não havia espaço suficiente no topo do serac. Sem disposição para preparar o jantar, entramos na barraca com todo o material que carregávamos e dormimos encolhidos, sobre mochilas, corda e outros equipamentos. Acordei de madrugada com os músculos tensos, incomodado pela impossibilidade de esticar as pernas. Massajei um pouco os pés, bebi os últimos goles de água e demorei para pegar no sono novamente. Hsu sempre se saía melhor nessas situações. Mesmo com o vento rugindo lá fora, ele dormia profundamente. Mesmo assim, naquela noite, teve pesadelos em que pedras caíam como projéteis do paredão e furavam nossa barraca.
O dia amanheceu ensolarado. Com o sol, o gelo começa a derreter, as pedras se soltam e o risco de avalanches aumenta muito. Por isso, precisávamos sair logo daquele exótico acampamento. Estávamos famintos, sedentos e não totalmente recuperados do esforço feito no dia anterior. Era hora de acender o fogareiro e derreter gelo para obter água e, com ela, cozinhar a refeição que não havíamos tido antes de dormir. Entre os vários tipos de alimento que levávamos, estavam alguns pacotes de comida liofilizada americana que eu havia comprado alguns meses antes na Califórnia. Naquela manhã, comemos macarrão tricolor ao molho de camarões - delicioso. Como isso não foi suficiente para saciar nosso apetite, cozinhamos também um arroz com bife Teryaki. Derretemos mais gelo para encher os cantis, organizamos nossas coisas e partimos.
O caminho parecia fácil à frente, mas o Lanin ainda nos reservava algumas surpresas. À medida que subíamos, gretas enormes apareciam adiante. O terreno tinha uma inclinação média de uns 50 graus e, em geral, havia um grande desnível entre as margens em cada lado da fenda. Tínhamos que andar em zigzag, contornando essas cavidades - algumas com dezenas de metros de profundidade - ou procurando pontes para cruzá-las. Durante cinco horas, navegamos no mar de gretas, ganhando altitude continuamente. Depois das 4 horas da tarde, as gretas se tornaram raras e passamos a subir por uma rampa de 45 graus que parecia não ter fim. O chão estava coberto com uma espessa camada de neve fofa e gelo quebradiço, o que tornava as piquetas pouco eficientes e inviabilizava o uso de parafusos para ancoragem. Por toda parte, havia uma grande quantidade de asas de anjo, onde nossa corda se enroscava incontáveis vezes. Não havia nenhum lugar acampável à vista, de modo que só nos restava continuar subindo.
Às 6:30 da tarde, cruzamos o bergschrund, a última grande greta do glaciar. Era um buraco enorme, mas que praticamente se fechava em um ponto à direita, pelo qual subimos sem problemas escalando alguns poucos metros de gelo quase vertical. Passamos, então, a caminhar pelo snowcap, a parte superior da montanha, coberta por muita neve fofa. Às 7:30, a rampa começou a ficar cada vez mais suave, até se tornar horizontal. Estávamos num amplo patamar algumas poucas dezenas de metros abaixo do cume. Largamos nossas mochilas, descansamos alguns minutos e subimos, então, para apreciar a paisagem no topo da montanha. A visão era impressionante. O cume arredondado terminava numa enorme cornija a Oeste, onde haviam se formado dois túneis de gelo. Asas de anjo enormes cobriam as bordas a Noroeste. O cume fumegante do Quetrupillan dominava o cenário no lado chileno, enquanto, ao Norte, sobressaiam o Llaima e um outro vulcão que não conseguimos identificar. Ao Sul, o Tronador, nosso velho conhecido, servia de referência à distância. Um outro cume nevado era visível a Sudoeste - possivelmente o vulcão Osorno.
A Nordeste, o Lago Tromem indicava a direção da via Normal, pela qual desceríamos no dia seguinte. A Leste, 30 metros abaixo, nossas mochilas marcavam o patamar onde armaríamos a barraca para passar a noite. Para ancorá-la, tivemos que sepultar na neve um bom número de estacas e ferramentas de escalada. As fortes rajadas de vento deixavam claro que qualquer negligência na montagem da barraca não seria perdoada. Por isso, fizemos o melhor que pudemos. Mesmo com o vento forte, essa foi, para mim, a noite mais tranqüila de toda a jornada. Agora já não temíamos mais as tempestades e nem as avalanches. No dia seguinte, depois de um demorado café-da-manhã e de mais uma visita ao cume, descemos, quase sem parar, os 2.600 metros de desnível até Tromem. Foi meu recorde, já que nunca havia descido tanto num único dia. Conseguimos uma carona na caçamba de um caminhão basculante para voltar a Junin. Sentado sobre a mochila do Hsu, eu não tirava os olhos do vulcão, pensando no que tínhamos acabado de fazer, nos seracs suspensos, nas grandes gretas e na imensidão branca e azul em que havíamos vivido nos últimos dias. Enquanto o Lanin sumia à distância, os últimos raios de sol tingiam as nuvens de dourado. Como observou o Hsu "só faltou aparecer uma faixa no céu com a inscrição The End".
Maurício Grego - São Paulo, 9 de janeiro de 1996
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