Tunel Vision

Uma Escalada no Deserto de Mojave

"Se você disser que caiu porque uma agarra se quebrou, o que está dizendo é que não estava preparado para o óbvio" -- Eric Bjornstad, no livro Desert Rock "Não escalo essas torres de arenito porque elas estão lá, mas porque elas poderão não estar lá amanhã" -- Leyton Kor, conquistador de vias clássicas no planalto do Colorado

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Histórias sobre escaladas nos desertos do Sudoeste americano povoam minha mente há muitos anos. Amigos que estiveram lá descreveram lugares fantásticos, com milhares de vias espetaculares em grandes torres de arenito avermelhado. Mas havia também histórias de horror sobre pitons duramente martelados que, depois, saíam com um simples puxão; histórias de Friends que eram arrancados da parede durante uma queda, deixando canaletas esculpidas no lugar onde as abas se apoiavam na rocha. Quando chegamos a Red Rock Canyon, no estado americano de Nevada, em Outubro de 1996, Bel Prado e eu estávamos decididos a testar com nossas próprias mãos a solidez do arenito da região e a qualidade das suas vias de escalada.

Red Rock Canyon fica a 20 minutos de carro da cidade de Las Vegas. O lugar é seco e muito quente, como era de se esperar de um parque no meio do deserto de Mojave. Suas montanhas de cumes arredondados têm cores que vão do amarelo claro ao vermelho, em geral dispostas em belas faixas horizontais. A área tem mais de mil vias de escalada, com extensões que vão desde alguns poucos metros até quinze ou vinte enfiadas de corda (grade V). Em sua maioria, são vias de escalada livre clássica. Há também vias esportivas (mas não espere encontrar muitos grampos nelas) e algumas que combinam escalada livre e artificial, em estilo big wall.

Angel Food

Depois de um reconhecimento inicial, decidimos entrar na Tunel Vision, via clássica graduada como III 5.7 R. Foi conquistada em 1974 por Joe Herbst e Randy Grandstaff. Tunel Vision fica na Angel Food Wall, uma parede de várias centenas de metros de altura, na área conhecida como White Spring. Esse é o nome de uma nascente de água existente nas redondezas. Para os humanos, a água que goteja de White Spring não é potável. Mas ela é suficiente para sustentar uma microcomunidade de animais e plantas do deserto. A caminhada de aproximação levou pouco mais de uma hora, primeiro por uma trilha e depois procurando caminho por entre pedras, arbustos e muitos cactos que arranhavam nossas pernas. Atravessamos dois riachos secos e fizemos o trepa-pedra de aproximação, percorrendo uma faixa de rocha bem avermelhada que se estende horizontalmente na base do paredão.

A via começa com uma fenda larga (entalada de punho), que sobe vertical até bater num teto uns 6 metros acima. Nesse ponto, fiz uma primeira costura num Camalot #3 e atravessei para a direita, escalando dois metros na horizontal, por baixo do teto e acima de outro negativo. Bel ficou impressionada com essa transversal, que é bem exposta. É uma passagem elegante, que deve ser feita com certa decisão, mas não chega a ser difícil. Depois, subi por um sistema de fendas gêmeas no fundo de uma chaminé rasa. Mais acima, blocos entalados me obrigaram a sair da chaminé e progredir pela parede. Naquele dia, Bel e eu havíamos demorado várias horas para encontrar a via. Além disso, tentamos escalar com as mochilas, o que depois nos pareceu impraticável por causa das passagens estreitas existentes acima.

O resultado é que ficou tarde e, depois de subir apenas 20 metros, percebemos que não daria tempo para terminar a escalada. Armamos rapel, abandonando uma fita num bico de pedra, e voltamos para a base e para o conforto do hotel em Las Vegas. No dia seguinte, fizemos a caminhada de aproximação em 40 minutos, escondemos a mochila da Bel perto da base e entramos na via. Guiei a primeira enfiada, que eu já conhecia, com facilidade, mas a costura embaixo do teto começou a provocar um enorme atrito na corda. Além disso, a corda se prendeu várias vezes nas fissuras, obrigando-me a descer em rapel para soltá-la. Por causa desses contratempos, gastamos um tempão para subir esses primeiros 40 metros.

Huecos

Tunel Vision Na primeira parada, tivemos que abandonar um nut, que eu instalei numa fenda como parte do sistema de ancoragem e Bel não conseguiu tirar. Ao longo dessa e de várias outras escaladas que fizemos nos Estados Unidos, encontramos uma impressionante quantidade de material abandonado nas fendas, em geral, pelo mesmo motivo - alguém colocou a peça e não conseguiu removê-la. No início, a rocha nos provocava um certo temor. Os buracos e saliências pareciam prontos a se quebrar se eu pisasse ou segurasse neles com força. Mas, conforme progredíamos, íamos ganhando confiança. No final, estávamos adorando aquele arenito esburacado. Na segunda enfiada, a via entra numa chaminé estreita onde, depois de subir uns 40 metros, montei a parada numa fissura vertical. Em geral, há boas fendas para a colocação de proteção. A única exceção é a 5ª enfiada, que o catálogo de vias gradua como X (sem proteção).

Na terceira enfiada está o lance-chave da via. Subi pela chaminé até o ponto em que ela se transforma numa fenda off-width. Passei a escalar, então, pela parede, usando a fendas apenas para colocar a proteção. Nesse trecho, o arenito está coberto por uma camada preta e brilhante. É o que os americanos chamam de rocha envernizada. Nela, há uma enorme quantidade de buracos conhecidos como huecos (ocos). Dentro deles, enxerga-se a camada de rocha clara e esfarelante que existe embaixo do verniz. Os huecos facilitam bastante a ascensão e ainda permitem alguma colocação de proteção. A terceira parada fica num grande patamar, onde montei a ancoragem com três Camalots, todos instalados em huecos.

Tunel Vision A quarta enfiada de corda começa contornando um teto, para a direita. Depois, um belo lance negativo com ótimas agarras leva a uma parede exposta com mais rocha envernizada. Nesse trecho, há uma fenda à esquerda, mas a tentação de escalar pelos huecos me fez afastar-me dela e, assim, abrir mão da possibilidade de proteção. Estiquei uns 20 metros sem nenhuma costura, um sintoma inequívoco de que eu estava começando a confiar (talvez demais) na rocha. Mais algumas costuras e outros 20 metros de parede envernizada me levaram à quarta parada, na entrada de uma caverna.

O Túnel

Nesse lugar começa o túnel que dá nome à via. Essa enfiada se inicia com dez metros em diagonal para a esquerda, num lugar muito escuro e praticamente desprovido de agarras. A escalada é feita em aderência e, como não há fendas, não é possível colocar proteção - daí a classificação X no catálogo. A caverna passa por trás de uma laca gigante, que lembra um pouco os túneis entre as chaminés Stop e Gallotti, no Pão de Açúcar carioca. O início da travessia é bem exposto. Mesmo com a lanterna de testa, eu não conseguia enxergar o fundo da caverna. Depois da diagonal inicial, um patamar horizontal oferece caminho fácil à esquerda, em direção à luz do dia. Nos últimos cinco metros, o patamar acaba, mas a passagem se torna estreita o bastante para permitir uma escalada com técnica de chaminé.

Tunel Vision Fora do túnel, uns 20 metros de ascensão fácil num sistema de fendas me levaram a um confortável patamar. Temendo que a corda se enroscasse ou que houvesse muito atrito na hora de recolhê-la, só costurei quando já estava a poucos metros da parada. Isso também evitaria que Bel pendulasse muito se ela caísse no túnel. Quando ela chegou ao patamar, o sol já estava se pondo. Tínhamos deixado nossos cantis na mochila. Como resultado, o calor e o ar seco do deserto de Mojave faziam com que sentíssemos muita sede. Mas não havia tempo para lamentar. A escuridão viria em menos de uma hora.

Guiei a última enfiada quase sem costurar, escalando tão rápido quanto o cansaço permitiu. Estava tomado pela síndrome do cume, a pressa que acomete alguns escaladores depois de um longo tempo na parede e que já foi causa de muitos acidentes graves. Felizmente, nesse trecho, a via segue o caminho natural das fendas, sem maiores dificuldades. O catálogo indicava uma rota de fuga no meio dessa enfiada, mas eu preferi prosseguir até o final, 20 metros acima. Tunel Vision termina no alto de um grande pilar, ainda mais de uma centena de metros abaixo do cume. De lá, vimos o horizonte tingir-se de uma intensa cor avermelhada, enquanto o céu escurecia e as luzes de Las Vegas começavam a aparecer à distância.

Infringindo a Lei

Tunel Vision Era um visual belíssimo, mas não havia tempo para contemplação. Começamos a desescalar para a esquerda em busca do caminho de descida indicado no catálogo. No início, o caminho segue por uma sucessão de grandes patamares. Procurando com cuidado as melhores passagens, íamos perdendo altura aos poucos. Alguns lances são muitos expostos. Como estávamos desencordados, tínhamos que ser muito cautelosos para não cair. Depois de descer algumas dezenas de metros, chegamos a uma ancoragem de rapel - algumas fitas e um mosquetão presos a uma árvore - no alto de uma grande canaleta vertical. O catálogo mencionava a possibilidade de rapel nesse lugar, mas o autor não recomendava essa opção.

Passamos uns dez minutos procurando caminho. Acabei achando uma passagem que levava a outra canaleta, íngreme mas desescalável. Descemos uns 50 metros por ela até encontrar novamente a primeira canaleta, aquela do rapel. Agora, já não havia dúvidas quanto ao caminho. Era só descer pelas pedras soltas para chegar ao riacho seco no fundo do vale, atravessá-lo e procurar nossa trilha no outro lado. Acendemos as lanternas e, depois de avaliar a situação, decidimos abandonar a mochila da Bel e voltar para buscá-la no dia seguinte. Seria bem difícil encontrá-la na escuridão, mesmo com lanternas.

Chegamos ao carro às 20 horas, uma hora depois do horário de fechamento do parque. O regulamento local diz que todos os carros (e seus ocupantes) têm que sair antes das 19 horas. Já haviam nos alertado de que os guardaparques detestam ficar esperando escaladores atrasados. Ao lado do nosso carro, havia um veículo do parque com os faróis acesos - provavelmente com a intenção de sinalizar a direção a seguir para nós. Com certo constrangimento, pedimos desculpas ao guardaparque pelo atraso e iniciamos nosso caminho de volta para Las Vegas. Como sempre, chegamos acabados fisicamente, mas felizes. Foi uma escalada tranqüila, muito bonita e agradável - um verdadeiro passeio pelo arenito de Red Rock Canyon. Nenhuma agarra se quebrou e, desde aquele dia, Bel e eu entramos para o time dos apaixonados pelo deserto de Mojave.

Maurício Grego -- São Paulo, 5 de Maio de 1997

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© - Esta página foi criada por Maurício Grego. As fotos são de Isabel Prado. Seus comentários e sugestões são bem vindos. Atualizada em 5/mai/97.