CAPÍTULO 3
ESTUDO E RECREAÇÃO
Não só de oração é a vida no Seminário. O estudo é a segunda atividade, sempre presente no dia-a-dia do seminarista. Sobra pouco tempo para a recreação.
Tínhamos aulas de manhã e à tarde, umas cinco ou seis, de quarenta a cinqüenta minutos cada. Além disso, várias horas de permanência nos Salão de Estudos, repartidas entre a manhã, a tarde e a noite.
Como eram muito poucos os momentos de recreação, pode-se dizer que, quando não estávamos rezando, estávamos estudando.
Silêncio, muito silêncio, durante a maior parte do dia, o que resultava em uma explosão de alegria, nos momentos de recreação. Até as refeições eram tomadas em silêncio, acompanhadas de leituras feitas por um dos alunos, o que não deixava de ser um estudo, também.
Nos cinco anos que fiquei em São Roque, tive aulas de Latim, Português, Francês, Italiano, Inglês, Grego, Matemática, Religião, Corografia, História do Brasil e Geral, História Natural e Ciências.
O ensino do Latim e do Português era muito bom. O Italiano, nosso bom professor Padre Paschoal justificava ser necessário, porque ouviríamos muitas confissões de imigrantes italianos, que mal falavam o Português. Creio que este não fosse o motivo principal. Muitos de meus colegas, mais tarde, estiveram em Roma, freqüentando cursos de pós-graduação e aperfeiçoamento, e devem ter tirado bom proveito dos ensinamentos de Italiano do Seminário de São Roque. Eu sou de família italiana, meu avô paterno era nascido em Sanza, na província de Salerno, no sul da Itália, porém, em minha casa, nunca se falou o Italiano. Até hoje eu tenho bastante facilidade em dominar essa língua, graças aos ensinamentos do Padre Paschoal.
O aprendizado de Inglês era péssimo. Tive o mesmo professor para o Latim e para o Inglês. Se, na primeira língua, ele soube transmitir conhecimentos que foram de grande ajuda ao longo de toda a vida, como apoio não só para o Português como para matérias que dependem de raciocínio lógico, em Inglês ele conseguiu criar um bloqueio tão grande que, até hoje, eu não consegui resolver plenamente. Saí do Seminário sem saber nada de Inglês, entrei no Colégio, onde os alunos já tinham maior conhecimento que eu, e isto criou um obstáculo difícil de transpor. Lembro-me de uma aula em que o nosso professor de Inglês do Seminário disse literalmente o seguinte: -"Meu irmão, que é engenheiro e fala muito bem o Inglês, disse que tal palavra se pronuncia assim." .... Às vezes, fico pensando se teria sido bom aqueles padres terem aprendido um pouco mais de Inglês, a língua de grande parte dos protestantes, para entenderem um pouco mais do marketing religioso e não terem sofrido tão grande influência da penetração de seitas não católicas no país. Enfim, Deus sabe o que faz e muitas vezes escreve certo, por linhas tortas.
As aulas de Francês também eram boas. De Grego, não posso falar nada, pois só aprendi no último ano em que lá estive, quando eu já estava com a cabeça voltada para outros pensamentos. Eu, que fui um bom aluno em quase todas as matérias, consegui ser o pior aluno da classe, em Grego, para desgosto do Padre José que, no dia em que soube da minha saída do Seminário, reclamou: -"Agora eu sei porque você não ligava para o Grego". ..... Só me restaram algumas frases da Ave Maria em Grego, que eu até hoje repito, pesaroso de ter esquecido o trecho final.
Das demais ciências exatas e humanas, saí prejudicado na Matemática. No Seminário, eu havia aprendido a equação de primeiro gráu. Quando saí, o estudo não era reconhecido pelo Governo e eu fiz os exames de madureza, do artigo 99, para validar meus estudos correspondentes ao ginásio. Entrei num colégio estadual que, na época, era um dos melhores de São Paulo, o Roosevelt. Lá, os alunos já sabiam a equação do segundo grau. Mesmo fazendo o curso clássico, onde as ciências exatas não eram tão "puxadas", como se dizia, eu enfrentei grandes dificuldades para acompanhar os demais alunos. Basta dizer que, a única vez na vida em que eu repeti o ano, foi exatamente em Inglês e Matemática, as duas matérias que o Seminário de São Roque não soube ensinar. Quando deixei o Seminário, meu sonho era fazer um curso de engenharia, ligado à eletrônica, para voltar-me ao trabalho em comunicações. Isto não foi possível, por razões diversas, mas uma delas foi o fato de eu não estar preparado para cursar o científico e ter sido levado a permanecer no clássico, durante o Colégio.
No Seminário, o Salão de Estudos (o ESTUDO, como nós falávamos), tinha escrivaninhas individuais para todos os alunos, alinhadas como as carteiras de uma sala de aulas. À frente, o Padre Ministro ou algum outro, sempre presentes, controlando, vigiando, dando ordens, chamando as turmas de banho. Sim, porque o horário de banho era durante o período de Estudo, na parte da tarde, como, mais para a frente, irei descrever.
Estudava-se tanto que, nos dias de prova, muitas vezes, não era necessário repassar a matéria a ser examinada logo na aula seguinte, de tal forma que, minutos antes da prova de Latim, por exemplo, o aluno estava estudando Matemática, que seria sabatinada em algum dia seguinte.
Durante as horas de estudo do período noturno, quem tivesse dúvidas sobre algum ponto ensinado naquele dia, podia pedir licença para ir até o quarto do professor e, com ele, esclarecer a matéria que não ficara muito clara durante a aula. Todavia, o rigoroso Padre Ministro anotava, minuciosamente, essas visitas, de modo que, se algum aluno fizesse essa solicitação com mais freqüência e, principalmente, se fosse várias vezes ao quarto de um mesmo padre, logo era impedido de faze-lo. O Padre Ministro tinha verdadeiro pavor de qualquer deslize. Para evitar que pudesse vir a acontecer, não tinha dúvida em tomar medidas drásticas, inclusive coibir as visitas dos alunos aos professores, mesmo que se tratasse de um aluno exemplar e de um santo sacerdote.
Dentre outras medidas, que comentarei mais tarde, controlava a correspondência recebida ou remetida. Todo aluno devia escrever para os seus pais a cada 15 dias, nem mais, nem menos. Avós podiam ser cumprimentados nos seus aniversários. Tios, em ocasiões muito especiais. Irmãos, também. Fora disto, as carta escritas pelos alunos simplesmente não eram enviadas. E as recebidas eram todas censuradas. Sua distribuição era feita enquanto estávamos no Salão de Estudos. Também lá, nos fins de semana, escrevíamos as nossas cartas. O Salão de Estudos, no sábado e domingo, era o local adequado para leituras, trabalhos manuais e correspondência.
Os livros tinham que conter o "nihil obstat" do Padre Ministro, para poderem ser lidos. Ganhei de meu padrinho, que era um Monsenhor, o livro "A Alma de Todo Apostolado". Dele, só me lembro da primeira frase: - "Apanágio da natureza divina é ser sumamente liberal". Fui simplesmente proibido de ler o restante. Somente quando eu estivesse no Seminário Maior, disse o Padre Ministro, que não teve coragem de omitir o "nihil obstat" mas me impediu a leitura. Nunca estive no Seminário Maior e nunca li o restante do livro. Alegou que eu precisava ter conhecimentos de teologia para ler aquele livro. Não era assim que pensava o meu padrinho, Vigário da minha paróquia que, muitos anos depois, aquele Padre Ministro veio substituir, como Vigário-Auxiliar.
Minha avó deu-me um livro sobre a vida de Santo Agostinho. Não podia ser outra a decisão do Padre Ministro: expressamente proibido ler a vida desse santo que, em sua juventude, algum desgosto deu à sua mãe, Santa Mônica, pelos namoricos e romances que tinha. O livro, como tive a curiosidade de verificar muitos anos mais tarde, nada tinha de mais expressivo sobre essa fama do preclaro fundador dos Agostinianos. Mas, na dúvida, era melhor proibir. Não ocorreu ao nosso disciplinador que suas proibições, além de aguçarem a curiosidade, causavam marcas indeléveis em nosso espírito, muito mais prejudiciais que qualquer conteúdo das cartas ou dos livros.
Seis anos de muito estudo, entremeados por alguns folguedos: jogos, futebol, vôlei, piscina, passeios pelas estradas das vizinhanças, para comprar frutas no sítio do português amigo, caminhadas até a cidade de São Roque, distante cinco quilômetros, subida do morro para, lá de cima, vislumbrar um panorama deslumbrante.
Cinema, esquetes de teatro, coral, banda, malhação do Judas, fogueira de São João.
Fugir da boiada que corria atrás dos alunos, quando estávamos andando pelas estradas.
Passeio ao bosque, visitas ao pomar para recolher pêras.
(Brincar de mocinho e bandido no mato, atrás do campo de futebol, até que os padres o proibiram)
Andar de perna de pau.
(Fazer espingardas com pedaços de cano fixados a uma tábua, inserir bombinhas de São João e atirar com essa arma bolinhas de gude, até que os padres o proibiram).
Rodar o carrosel que não tinha motor, brincar na balança.
Uma infância e uma adolescência felizes.
Recordação inesquecível dos anos vividos no Seminário Menor Metropolitano do Imaculado Coração de Maria.
Os colegas, amigos queridos que não se esquece jamais.
Os padres, com destaque para o Reitor, o Ecônomo, o Ministro, o Orientador Espiritual e demais professores.
As Irmãs de Jesus Crucificado lavando roupas, cuidando da limpeza, cozinhando.
Funcionários de limpeza, manutenção e trabalho na horta.
Este o nosso pequeno mundo.
As horas de recreação não eram tão livres como poderia insinuar a descrição acima. Segregados em "recreações", nós, os Menores, éramos proibidos de ficar conversando com os Médios ou com os Grandes. Se formássemos grupinhos, éramos advertidos de que eram vetadas as "amizades particulares". Conversar com os colegas somente era possível, na realidade, nos quinze minutos de recreio da manhã e da tarde, durante os jogos do "post prandium" ou, no recreio da noite, quando tínhamos que nos organizar em filas, andando em formação, de um lado para outro do pátio, pois era proibido ficar parado ou formar rodinhas. Eram quatro alunos, um ao lado do outro, fazendo frente para mais quatro alunos, também arrumados lado a lado, caminhando os 4 primeiros de frente e os outros 4 de costas, de um canto a outro do recreio. Lá chegando, o grupo voltava ao contrário: os que tinham ido de frente retornavam de costas e os que tinham ido de costas voltavam de frente. Caso o grupo fosse de maior número de alunos, logo um dos padres se introduzia entre eles, para participar da conversa.
Certa vez, eu e mais dois colegas fomos chamados pelo Padre Ministro, que nos repreendeu, principalmente pelo fato de estarmos falando com um aluno dos Médios, que tinha quase a mesma idade que nós e com o qual seria perfeitamente natural termos amizade. Alegou o padre que havia anotado em sua caderneta que nós, durante um passeio pela estrada, tínhamos quebrado o regulamento, pois íamos caminhando ao lado desse aluno dos Médios. E nos proibiu de termos "amizade particular", também.
Sim, porque ele andava com uma pequena caderneta, onde tudo anotava, para depois reprimir e aplicar penalidades. Cada "recreação" tinha um encarregado (um aluno da própria recreação), liderados pelo Prefeito (um aluno dos Grandes), que auxiliavam o Ministro nessa árdua tarefa de perseguir os faltosos. A penalidade preferida era proibir o banho de piscina, nos dias de folga. Todos perfilados, o Ministro puxava do bolso da batina a sua caderneta e anunciava a lista de punições.
Para quem lê, fica a impressão de que esses banhos de piscina eram um divertimento prolongado e descontraído. Na realidade, não duravam mais que 10 ou 15 minutos. Cada recreação ia para a piscina separadamente das demais. Vestíamos os nossos calções de banho (compridos até os joelhos) e tínhamos que voltar a colocar as calças compridas, por cima deles, pois não era permitido fazer o trajeto até a piscina, usando apenas os calções ou sem a camisa. Mal dávamos uns mergulhos e o padre logo usava o seu apito para interromper a diversão. Íamos nos enxugar e trocar de roupa nas cabinas de banho, para retornar ao prédio principal. No primeiro ano de existência do Seminário, essas cabines ainda não haviam sido construídas. Por esta razão, e para não subirmos até o prédio principal apenas com roupas de banho, tínhamos que vestir a calça comprida por sobre o calção molhado.
Até a ginástica matinal era feita com roupa comprida. Nada de calções. Da forma como saíamos da Capela, de paletó inclusive, parávamos em formação, no meio do pátio, e seguíamos as instruções daquele que comandava a ginástica sueca. Depois, as filas de alunos prosseguiam a marcha até o refeitório, para o café-da-manhã.
Futebol também era jogado com calça comprida e camisa. Não eram 11 contra 11, como mandam as regras do esporte bretão. Metade da recreação jogava contra a outra metade, ou seja, mais ou menos uns 20 contra outros 20, todos embolados em um campo pequeno de futebol. Eu sempre fui péssimo jogador e me escalavam sempre na defesa, de modo que, ao que me lembre, fiz pouquíssimos gols. Minha especialidade era pular com o adversário, para cabecear a bola. Um dos professores (hoje bispo diocesano) costumava jogar com os Menores (os padres jogavam de batina arregaçada). Ele era o que se poderia chamar, na gíria futebolística, um jogador pesado, sempre provocando choques com os seus oponentes. Eu não deixava por menos: como era um pouco maior que os outros meus colegas, especializei-me em marcar esse padre, no qual, na hora de pular para cabecear, sempre que possível, eu dava umas boas caneladas (de propósito). Jamais confessei este pecado, faço-o agora. Perdão, Sr. Bispo. (Esse padre era originário da mesma paróquia que eu e nossas famílias sempre tiveram ótimas relações mas jogo é jogo).
Às vezes, organizávamos uns torneios de futebol. Cada equipe tinha o seu nome, que podia ser uma cor ou uma cidade, pois era proibido denominá-las Palmeiras, São Paulo, Juventus ou qualquer outro nome de clube esportivo que pudesse ensejar rivalidade entre os alunos. Um dia, minha equipe jogava contra a do Marcos Mazetto. Numa disputa mais renhida, eu escorreguei e ele, sem querer, acabou dando um pontapé em meu olho. Fiquei, por um ou dois minutos, enxergando tudo em duplicata. Como não podíamos perder o lance, eu tapei um dos olhos com a mão e continuei disputando a bola com o Marcos.
Um bom jogador era o Edgar, uma espécie de Edmundo dos dias de hoje, muito briguento mas bom goleador. Cabia sempre a ele escalar quem jogava de cada lado e em qual posição.
Um dos alunos era nomeado encarregado de cuidar do material esportivo. Cabia-lhe conservar as redes e as bolas. Estas eram de capotão, com bico, e tínhamos que costura-las com umas agulhas especiais, de dentro para fora. Eram engraxadas com sebo, o que as tornava imundas e grudentas, pois o chão do pátio era coberto com cascalho. Araçariguama, a pequena vila próxima ao Seminário, fora, no passado, sede de uma mina de ouro. Já exaurida, suas rochas eram usadas como cascalho. Era comum encontrarmos algumas pedras com pequenos pontos brilhantes, remanescentes dessa mina de ouro, no chão de nosso campo de futebol.
Os jogos de vôlei eram o esporte preferido para o recreio após o almoço. Também se jogava o pingue-pongue.
No próximo capítulo falarei sobre as férias.