CAPÍTULO 9
OS ALUNOS
Quando o Seminário de São Roque foi inaugurado, em 1949, éramos perto de 120 alunos. Os novatos, do Admissão, eram 21 e uns outros 100 estavam divididos entre as quatro primeiras séries do curso. As classes do quinto e sexto anos somente foram formadas em 1950 e 1951, com a promoção dos mais adiantados. Quem concluísse o curso seria transferido para o Seminário Maior, no Ipiranga, em São Paulo.
Os seminaristas mais novos tinham desde 11 anos de idade e os veteranos tinham até 18 anos, embora houvesse, também, algumas vocações tardias.
Boa parte dos alunos era de São Paulo, havendo também colegas de outras cidades que faziam parte da Arquidiciose ou eram próximas. Por alguma razão, talvez a influência de professores do próprio Seminário, que tinham sido os titulares de paróquias das quais os alunos eram provenientes, havia vários colegas da zona leste de São Paulo e de cidades como Itu e Salto.
Os promovidos ao 5º ano passariam a usar batina e os demais vestiam um uniforme de brim amarelo, composto de calça e paletó, não havendo uma cor determinada para a camisa. Não era obrigatório o uso de gravata e as meias deviam ser pretas. Os sapatos eram pretos ou marrons. Ainda não havia surgido a moda dos tênis que, naquele tempo, só serviriam para a prática de esportes. Em 1949, os alunos da recreação dos Menores podiam usar calças curtas mas foram logo vetadas, sob a alegação de que ficávamos expondo muito o nosso corpo. Nos dias festivos, usávamos paletó azul marinho.
Nos domingos, para cerimônia litúrgica especial, os que ainda não haviam recebido oficialmente a batina podiam vesti-la, porém, com uma faixa azul, no lugar da tradicional faixa preta dos clérigos seculares.
Cortávamos o cabelo bem curto, sendo que os menores praticamente raspavam a cabeça, deixando apenas uma franja. A combinação desse corte de cabelo com os uniformes amarelos e meias pretas dava aos alunos um aspecto muito feio.
Alguns alunos eram ainda meninos e outros já eram homens feitos. Quando fiz minha primeira barba, não tinha mais que alguns pêlos no rosto. A pressa tinha uma razão. Cursei o primário na Escola Caetano de Campos, na Praça da República, em São Paulo, e lá havia um pequeno museu, onde estavam expostos objetos de uso do patrôno do colégio, inclusive uma toalha com bordados da Ilha da Madeira, pincel e navalha que teriam sido usados por Caetano de Campos, quando pela primeira vez se barbeou. Minha mãe costumava brincar, dizendo que iria fazer uma toalha igual para mim. Eu temia que ela cumprisse a promessa e, para impedir isto, assim que possível, corri ao lavatório, num domingo à tarde, e fiz minha primeira barba.
Não me lembro se havia no prédio algum pequeno bazar para adquirirmos esses objetos de uso pessoal. Também não me recordo se tínhamos um barbeiro fixo, residente. Havia uma farmácia, no andar de cima do prédio, numa saleta com divisórias de madeira e vidros não transparentes.
Não tínhamos um médico permanente. Um dia, eu fui a São Roque, fazer uma consulta. Outra vez, junto com alguns colegas, fui a São Paulo, consultar o oculista Dr. Jarbas Tupinambá. Era um consultório bem antigo, sem aparelhos modernos de aferição e exame, embora estes já fossem utilizados por quase todos os demais médicos. Dr. Jarbas, para verificar qual o grau a ser prescrito, mandava que colocássemos uns óculos, cujo aro não tinha a parte de cima. De um estojo, ia escolhendo lentes numeradas, que ia encaixando nesses óculos, até acertar as mais indicadas.
Engraxávamos os sapatos aos sábados, após o jantar. Guardávamos graxa e escovas em um armário que nos era destinado em um lugar coberto do pátio, onde ficavam as mesas de pingue-pongue. Também ficavam nesses armários as chuteiras e material esportivo.
Era nesse pátio que podíamos desenvolver nossas brincadeiras. Além dos jogos obrigatórios, improvisávamos algumas outras. Fazíamos pernas de pau bem altas, com sarrafos da construção em andamento. Os menores podiam rodar em um carrossel e também havia algumas balanças. Eu fabriquei, certa vez, uma espingarda, usando, para tanto, um pedaço de cano, ao qual agreguei algo semelhante a uma coronha. Funcionava com bolinhas de gude, que eram jogadas dentro do cano, onde eu já havia inserido uma bombinha de São João acesa. O tiro atingia mais de 10 metros de distância. Vários colegas resolveram me imitar. Atirávamos contra o barranco ou na direção das torres de transmissão da Light, que passavam pelos fundos da propriedade. O crescimento do número de atiradores foi o suficiente para provocar a proibição do uso dessas armas de brinquedo.
Ainda com pólvora de bombinhas de São João, certa vez, fizemos um petardo mais poderoso, para explodir no meio do pátio, que era coberto de cascalho. Abriu um espaço vazio bem grande, em forma de circunferência, no centro do campo de futebol. Serviu para levarmos um pito.
Não eram muitas as reinações que tínhamos a oportunidade de fazer. Houve uma época em que organizamos um jogo de mocinho e bandido, no bosque que descia até a piscina, onde havia muito mato, o que era um terreno excelente para nos escondermos do "inimigo". Os revólveres eram pedaços de madeira. Como aquilo não era brinquedo para seminaristas, logo houve uma proibição peremptória.
Quando a construção da ala nova do prédio ficou pronta, um dia, o Padre Ministro mandou que eu fosse até o anfiteatro, para buscar alguma coisa que havia sido esquecida lá. Havia umas janelas basculantes grandes e eu resolvi abrir uma delas. Um operário que dava os arremates finais à construção tinha colocado sua garrafa térmica do outro lado, para tomar um cafezinho no intervalo do trabalho. O basculante derrubou-a e o vidro refratário estourou. De dentro do anfiteatro, ouvi as reclamações do seu dono, mais pelo café perdido do que pela garrafa. Escondi-me para não ser pego em flagrante. Até hoje, ainda tenho um pouco de remorso, pelo prejuízo que causei ao pobre trabalhador.
O Seminário ficava em um sítio bem grande, com muitas alternativas de passeios, mas tínhamos que ficar confinados no pátio, sem poder desfrutar dessas atrações. Nem os caramanchões e o bosque nos era permitido freqüentar. Só nos dias de visitas. Restava-nos o consolo de ficar apreciando a paisagem, podendo ser vistos o pomar de pêras e uvas, um morro, no interior da propriedade, onde havia uma pedra grande da qual escorria a água de uma nascente, a chácara vizinha, de um dos funcionários do Seminário, e, bem ao longe, o inesquecível Saboó, destacando-se das demais elevações.
Como era proibida a conversa com os alunos das outras recreações, aos quais podíamos apenas cumprimentar e dirigir rápidas palavras, o confinamento no pátio do recreio acentuava-se bastante. Eu encontrei uns pedaços de canos, dos quais conseguia, assoprando, extrair alguns sons, como se fossem instrumentos musicais. Como estava sendo organizada uma banda, o Mauro, que era da turma dos Maiores, resolveu me convidar, para aprender a tocar pistão. Tive poucas aulas, que mal deram para eu "pegar a embocadura" do instrumento, pois, logo, o Padre Ministro proibiu esse aprendizado, porque ficávamos os dois sozinhos no salão de música e, para o padre, aquilo era inadmissível.
Também houve a tentativa de se formar um coral, com a participação de alunos Menores, Médios e Grandes, combinando vozes de variados timbres. Durou pouco, pois a mistura de alunos das três recreações sempre foi objeto de restrições.
Poucas eram, portanto, as atividades não rotineiras. Um dos regulamentos mais engraçados era sobre o banho. Era tomado durante a tarde, enquanto permanecíamos no salão de estudos. Havia "Turmas de Banho", cada uma com um grupo de alunos em número correspondente ao das cabinas de chuveiros, possivelmente umas 12, situadas na parte térrea do prédio. O Padre Ministro, no salão de estudos, chamava, a cada dez minutos, uma turma de banho. Quando a terceira turma era chamada, ou seja, vinte minutos depois, os alunos da primeira já tinham que ter retornado. Nesse intervalo, tínhamos que ser rápidos, com vinte minutos para sair do salão de estudos, atravessar o pátio, subir até o dormitório, pegar nossa toalha e sabonete, descer ao térreo, tomar o banho, retornar ao dormitório para acabarmos de nos arrumar, descer novamente, atravessar outra vez o pátio e estar de volta ao salão de estudos.
Como o tempo era curto, eu usava de um estratagema para não ter que ficar aguardando que uma das cabinas de banho ficasse livre. Havia uma delas cuja porta era meio encrencada, sendo preciso fazer força para abri-la. Quando eu vinha do salão de estudos, antes de subir ao dormitório, verificava se estava desocupada e batia a sua porta. Os que chegavam para tomar banho antes de mim, vendo que a porta não se abria, pensavam que a cabina estava ocupada e ficavam esperando que uma outra ficasse livre. Chegando ao local, eu dava uma safanão na porta, entrava tranqüilamente, enquanto os do lado de fora ficavam esbravejando. Alguns diziam que um seminarista não podia fazer coisas como aquela e que era "falta de caridade", uma expressão muito usada para condenar qualquer falha de relacionamento.
O banho era de água fria e, no inverno, chegava a ser insuportável. Diziam que as marcas feitas no chão de ladrilhos, pela água que saia forte dos chuveiros, eram causadas pelas voltas que os alunos davam em torno da ducha, sem ter coragem de enfrentar a água gelada. Contavam, também, os alunos que tinham vindo de Pirapora, que lá as coisas ainda eram piores: depois de alguns minutos de banho, um padre fechava o registro geral dos chuveiros e, aquele que não tivesse sido rápido, ficava com o corpo cheio de espuma.
Uma das cerimônias litúrgicas de que me lembro com saudades era a procissão de Semana Santa, em volta do prédio, com cânticos gregorianos e ladainhas. Quando a construção da ala nova do prédio ficou pronta, foi inaugurada uma Capela muito bonita, em substituição à provisória, tendo comparecido Dom Paulo Rolim Loureiro para a sua sagração. Foi um ato litúrgico que eu nunca tinha presenciado, parecendo-me muito interessante. Vários alunos foram convidados para participar desse ofício. Coube-me ficar segurando uma toalha branca de linho, dobrada, com os dois braços estendidos, durante toda a cerimônia. Nunca fiquei sabendo a utilidade que poderia ter aquela toalha para a sagração da capela, pois ninguém a usou, de forma que eu retornei com ela à sacristia, no final da consagração. Acho que os padres e o próprio bispo não estavam também muito certos sobre o que fazer com aquela toalha, pois, para todos, a sagração de uma capela era coisa rara.
Dessa capela, avistavam-se as casas dos empregados, que ficavam no alto de um barranco, no fundo do pátio do recreio. Enquanto, de manhã, antes da missa, o Padre Espiritual fazia a pregação da meditação, eu costumava ficar observando o movimento nessas casas, com as mulheres estendendo roupas e as crianças brincando com seus cachorros. Meu pensamento fugia até São Paulo, onde eu tivera uma infância livre e cheia de acontecimentos. Nessas horas, minha meditação começou a ser sobre o que eu estava fazendo naquele colégio interno. Comecei a sentir uma vontade crescente de ir embora, de dar um outro rumo à minha vida.
Não vou citar os nomes de todos os meus colegas, para evitar a deselegância de omitir alguém. Tinha amizade mais intensa com os que pertenciam à minha classe ou à recreação dos Menores. Lembro-me, com saudades, de todos eles, bem como de muitos alunos das outras recreações, mesmo os que ingressaram depois de mim, até 1953. Já se passaram quase cinqüenta anos e, por melhor que pudesse ser minha memória, sempre correria o risco de cometer alguma injustiça. Que fiquem apenas os nomes dos que foram mencionados ao longo dos capítulos, em homenagem a todos os demais. Éramos todos bons amigos e essa amizade foi o melhor proveito que tivemos daqueles anos de convivência. Prova disto é o fato de haver hoje uma espécie de associação de ex-alunos de São Roque, embora muitos hajam passado por outros seminários, também.
Poucos chegaram a se ordenar. Da minha turma, foram apenas sete. Muitos, depois de receberem a Ordem, voltaram à vida leiga. Seria a rigidez do sistema adotado que acabou abortando tantas vocações ? Ou será que o ingresso no Seminário, para muitos, foi apenas um entusiasmo incentivado por pais, professores, catequistas e vigários?
Não foram necessariamente os considerados mais piedosos que permaneceram. Dos que prosseguiram na sua vocação, nem sempre os postos mais altos do clero foram ocupados pelos que mais se distinguiam nos estudos, no tempo de Seminário. Na realidade, isto também acontece na vida secular. Nem sempre o primeiro aluno da classe é um profissional de sucesso.
Um fato interessante de ser observado é que, dentre os ex-seminaristas, destacam-se duas categorias bem extremadas: os que continuaram intimamente ligados à Religião, participando ativamente de funções religiosas, e os que adotaram uma posição quase que adversa, evitando qualquer relacionamento com a Igreja. Tenho procurado não fazer parte nem de um nem do outro extremo. Freqüento pouco as cerimônias litúrgicas mas continuo sendo um homem de fé, temente a Deus e respeitador do meu próximo. Procuro manter-me de acordo com o ensinamento de Cristo, de que os mandamentos se resumem basicamente a dois: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.
Faço deste pequeno trabalho a minha homenagem a todos os bons amigos do Seminário de São Roque.