JOÃO STECK
Foi com grande satisfação que recebi uma longa carta de João Steck, um ex-seminarista que também estudou em São Roque, em época posterior à minha saída, mas que passou por experiências muito semelhantes às minhas. Como ele próprio afirma, é possível que muitos outros colegas tenham vivido situações iguais, e o que torna ainda mais interessante seus comentários é que ele passou por três seminários, podendo comparar a vida dessas diversas casas.
Caro Paulo Toschi:
Acabei de ler o seu livro Palavra de Seminarista. Tão interessante foi para mim que, apesar de achar incômodo ler um texto grande em tela de computador a impressora estava com defeito não consegui parar a leitura. Ele prendeu a minha atenção tanto pelas descrições de fatos e ambientes quanto, principalmente, pelas coincidências que observei entre o que você passou e sentia e o que eu passei e senti. E, quem sabe, essas coincidências ocorreram com tantos outros colegas que conosco conviveram.
Sou João Steck e estive no Seminários de Aparecida e São Roque, de 1955 a 1958, no de Campinas de 1959 a 1961 e, novamente no de Aparecida (1o ano de Filosofia), em 1962. Sempre fiz questão de contar para minhas filhas as passagens que vivi no seminário, passagens tão bem descritas por você em seu livro. Elas ficavam espantadas e sempre terminavam o papo com perguntas como esta: "Pô, pai, precisava você passar por tudo isso para ser quem você é agora?" Minha esposa também se espantava, mesmo que alguns fatos ela também tinha vivido, lá em São Luiz, MA, com sua família extremamente religiosa, com um irmão quase foi frei franciscano no Ceará.
Como você, sou de família de imigrantes italianos (os avós paternos de Romagnano Trentino, tidos como tiroleses ou tedescos e os avós maternos de Maserada sul Piave/Treviso Veneto). Para todos meus familiares, principalmente os maternos, era de suma importância ter um padre na família. Diversas tentativas foram feitas, nenhuma com sucesso. Investiram em mim e quase deu certo. Acho - deve ser exagero meu - que a primeira palavra que falei foi padre, antes mesmo de mama e papa. Desde pequenino aprendi que à clássica pergunta: "O que você vai ser quando crescer?" eu deveria responder solenemente: "PADRE". Em troca, aplausos, carinhos, elogios, e mil manifestações de orgulho. Afinal, eles estavam aí, diante de um padre, ou melhor, de um cônego, ou de um monsenhor, ou de um bispo, ou de um cardeal, ou, porque não? diante de um papa! Mas principalmente diante de um membro da família que os ia colocar muito mais perto de Deus. Acho que eles pensavam assim. Sei lá!
Lembro-me bem que, quando tinha 5 ou 6 anos, um tio, irmão de mamãe, interrompeu uma brincadeira entre mim e meu primo, seu filho, fazendo a pergunta sobre o que eu ia ser. Respondi de pronto: "Padre". A mesma pergunta ele fez ao seu filho que, timidamente, respondeu: "Mecânico". Meu tio não teve dúvida; diante de todos deu um tapa no rosto do filho e disse: "Seu asno! Maledetto! Por que você não quer ser inteligente como o Joãozinho!? Ele sim é que sabe o que é bom na vida..." Palavra de seminarista que lembro desse fato, da frase dita pelo meu tio e de meu primo chorando. Sinceramente, não me lembro do que eu senti, se foi raiva da atitude do meu tio, se foi pena do meu primo, se foi medo de que meu primo ficasse meu inimigo ou se foi orgulho. Acho que foram sentimentos de orgulho. Há anos que não encontro esse meu primo. Nossas vidas tomaram rumos geograficamente distantes e hoje só temos notícias um do outro através de seus irmãos que ainda vejo anualmente. O fato é que, hoje, nem eu sou padre e muito menos ele é mecânico... Episódios como este, talvez não tão dramáticos, eu presenciei aos montes, sempre com os meus tios tentando mostrar que tudo faziam para que um de seus filhos fossem padre, mas não conseguiam. Portanto tinha que ser o Joãozinho, filho do Arthur.
Interessante este depoimento do João
Steck, pois, ao contrário do que aconteceu comigo e
do que tenho ouvido de vários meus colegas, ex-seminaristas, foram os pais dele e de
seus primos e não as mães que incentivavam os filhos a serem padres (Paulo Toschi).
Mas não eram só meus parentes que queriam que eu fosse padre. Era toda uma cidade. Sou de Louveira, um município paulista, entre Jundiaí e Vinhedo, que na época era uma pequena cidade de prósperos e até abastados chacareiros cultivadores de uva, figo, maçã, caqui e produtores iniciantes de frangos para corte. Embora fosse bem mais próxima de Campinas que da Capital, a paróquia pertencia à Diocese de São Paulo. Toda a comunidade sentia muito orgulho porque um filho seu seria padre. E me davam o maior apoio nesse intento. Desde cedo fui coroinha dos mais requisitados e dos mais respeitados. Minha vocação era tão respeitada que todos evitavam conversar assuntos pornográficos perto de mim. Até as blasfêmias, tão comuns entre os italianos, eram evitadas na minha presença. Porco Dio! Eu sabia que elas existiam e ainda hoje me lembro de tantas delas, porque muitas vezes não percebiam minha presença e soltavam a língua. Mas ao notarem minha aproximação, eu percebia que muito esforço era feito para que as palavras que saiam da boca fossem controladas. Eu me lembro nitidamente que odiava esse comportamento. Só não conseguia externar esse ódio porque, desde aquela época, eu tinha um medo danado de que, externando meus sentimentos, decepcionasse todo mundo.
Isso mesmo! O MUNDO todo ia se decepcionar comigo! Afinal de contas, Louveira não era apenas minha cidade. Era o meu mundo. Quando, no Grupo Escolar, estudávamos o rio Amazonas, ele passava lá em Louveira. O rio Capivari, que não tinha mais de 2 metros de largura, para mim era ele o Amazonas, com seus 2 quilômetros. O morro do Traviú, visto de Louveira, era o Pico da Bandeira com seus 2.900 metros. O vigário Pe. Herculano Casarin era meu Papa. O Dr. Otávio, diretor do Grupo Escolar, era meu Presidente da República. Enfim, o mundo estava aí em Louveira. O mundo era Louveira.
Falando em Grupo Escolar, até ali, eu era tratado de forma diferente porque ia ser padre. Eu podia chegar atrasado caso algum acontecimento especial em que fosse exigida a presença de um coroinha ocorresse na paróquia, mas os outros coroinhas não tinham esse privilégio. Eu sim. Eu chegava até a ser dispensado quando o vigário, com sua charrete puxada pela mula Mulata, ia atender alguma emergência numa fazenda distante e precisasse de um ajudante. Essas regalias também me desagradavam e até hoje sou fã da minha professora do quarto ano em 1954, Dona Julieta Giarolla Niero. Ela achou um absurdo tais regalias, convenceu o diretor a avisar meus pais, o vigário e outras pessoas que isso não deveria mais ocorrer. Talvez só ela tenha percebido que sua atitude foi um alívio para mim. Talvez ela tenha percebido que mais de uma vez eu tive vontade de pular no seu colo e cair de beijos. Afinal, ela passou a ser minha heroína, a Princesa Isabel de meu mundo! Pena que ela não me libertou totalmente. Ficou apenas na lei de proibição de tráfego. Tráfego de influências. Uma pequena abertura libertadora apenas. As forças escravistas eram muito mais fortes!
Novamente uma coincidência. quando eu
estudava catecismo, sempre que os alunos se
comportavam mal durante a aula, a catequista mandava que todos ficassem de castigo,
ouvindo
a aula, que era dada no recinto da igreja, de joelhos. O único que não tinha essa
penalização era eu,
que já era considerado um futuro seminarista. isto me trazia muito
constrangimento, pois
sempre
odiei ser tratado de forma diferenciada, em detrimento de meus colegas e amigos (Paulo
Toschi).
Vou relatar só mais um fato que mostra quão forte era a pressão para que eu fosse padre. Em 1954, quando eu tinha de 9 para 10 anos, foram as Bodas de Ouro de meus avós Angelo Steck e Domenica Carbonari. Toda pompa, toda honra, toda glória, toda circunstância! Estavam presentes padres, cônegos, monsenhores, freis, frades, superiores, irmãs, freiras, superioras e o Bispo, Dom Paulo Rolim Loureiro. As dezenas de crianças, obviamente mantidas à distância. Dos adultos e dos acontecimentos. Todas as crianças separadas, vigiadas, controladas. Com uma exceção. É claro! Só podia ser eu, o futuro padre, com direito a ficar perto do Bispo e a outras regalias.
(Andei revendo todo esse trecho que falo sobre meus pais, meus parentes, meus amigos, enfim sobre o povo de Louveira e parece que deixo escapar mágoas profundas. Na verdade a coisa não era tão opressiva assim. Se algum louveirense lesse esse trecho certamente comentaria: "Puxa, esse cara exagera..." Mas é assim que eu sentia as coisas. Na verdade, nada era tão opressivo assim. Ou era? Duma coisa tenho certeza; não havia maldade da parte de ninguém. Sei lá, às vezes acho que era eu que assumia com muito vigor o papel que me destinavam. É claro, que em algum momento da minha vida eu tive mágoas, curti até ódio. Mas nada que umas boas sessões deitado num divã não resolvesse. Afinal, tanta coisas boas me aconteceram na vida! Devo a esses acontecimentos quase tudo de minha formação e do meu caráter. Enfim, ao ler partes de seu livro lembrei que, também comigo, aconteceu que a decisão de ir estudar num seminário foi mais uma imposição que uma escolha.)
Informo aos louveirenses que fui
autorizado por João Steck a publicar na Internet a íntegra
ou um resumo da carta que ele me mandou, bem como a dar cópias da mesma a nossos
colegas de São Roque. Não o considerem exagerado. A maneira de os adultos tratarem as
crianças, há 50 anos atrás, causou marcas profundas. Eu nunca procurei o divã de um
analista mas, se fosse escrever mais profundamente sobre esse tema, estou certo que
os Freuds e Jungs teriam muito material para seus estudos (Paulo Toschi).
Finalmente, em janeiro de 1955, fiz o tal exame de seleção no seminarinho da Rua Albuquerque Lins em São Paulo. Tive que começar pela admissão, um curso equalizador de conhecimentos e preparatório para as séries ginasiais. Só que, nessa época, já funcionava o Seminário Menor de Aparecida do Norte. Numa madrugada de fevereiro saí de Louveira com meu pai e seu irmão mais novo, tio Orlando, que dirigia o Ford 48 do meu avô. Enxoval feito, tudo exatamente como solicitado. Nada a mais, nada a menos. Tudo marcado, em pontos de cruz ou em pontos de marca, com o número 12, meu número de matrícula. Se eu não me engano, quando mudei para São Roque, tive que mudar esse número para 42.
Meu pai e meu tio ficaram pouco tempo comigo. E meu corpo ficou em Aparecida. Mas meus pensamentos não conseguiram sair de Louveira. Acompanhando meu corpo, ficou um veterano. Todos os novatos tinham um veterano que deveria servir como guia e era chamado de anjo. Pois o meu anjo, mais velho e maior que eu, explicou-me tudo, mostrou todas as instalações, discorreu sobre as regras, etc., etc.. Enfim, cumpriu dignamente o seu papel de anjo. Eu é que não estava nem aí. Estava lá. Em Louveira. À noite, após o jantar, o Padre Ministro (custei a entender o que era esse tal de Pe. Ministro...) reuniu todo o pessoal, separou-nos em 3 grupos ou divisões: os menores, os médios e os maiores. Com meus 10 anos, fiquei entre os menores. Não percebi isso, mas lá fiquei. O Pe. Ministro falou muito das regras disciplinares, principalmente sobre a tal divisão de recreações entre menores, médios, e maiores. Falou da proibição de comunicação entre os indivíduos de divisões diferentes. Mesmo que fossem irmãos. Não entendi nada. Ou melhor, não ouvi nada. Como já disse, só meu corpo estava ali. O resto estava em Louveira, inclusive o sentido da audição. Não me lembro como dormi nesse dia. Se é que dormi. Eu estava acostumado no meu pequeno quarto e agora estava aí num enorme dormitório com dezenas de camas. Eu, que quase nunca havia saído de Louveira, a não ser para algumas idas a Jundiaí e 2 ou 3 viagens com o vigário que ia até à Cúria Metropolitana em São Paulo. Lembro que nós, eu, o Pe. Casarin, e outros coroinhas, íamos de trem até a Praça da Luz, e ele fazia questão de nos mostrar o Edifício Martinelli e o Viaduto do Chá. Uma vez, ele nos levou até uma exposição de canários no Parque Água Branca. Ele era criador de canários belga e roller, além de ser um apicultor modelo. Ele se considerava, com orgulho, um bom roceiro. Bem diferente do intelectual vigário e padrinho que você teve.
Meu padrinho era um historiador sacro
muito reverenciado mas não passava
de um bom brasileiro nascido em Cabreuva, perto da terra do João Steck, com
todas as boas características de uma pessoa criada no interior. Ouvi muitas
histórias contadas por ele, sobre sua infância no sítio de seus pais. O verdadeiro
intelectual é sempre um homem simples (Paulo Toschi).
Mas, voltando à Aparecida, na manhã seguinte, logo depois da missa e do café da manhã, no imenso pátio, comecei a ter uma vontade danada de fazer xixi. Embora em Louveira eu fizesse mais xixi em tronco de árvores que em instalações sanitárias, sabia que ali, naquele bruta predião deveria haver muitos mictórios. Procurei, não achei. Fui atrás de meu anjo: "Por favor, onde fica o mictório?" Como resposta ouvi um solene: "Olha a divisão!!" Isto dito meio de soslaio, como se algo estivesse errado. Não entendi e novamente fiz a pergunta. A resposta foi a mesma: "Olha a divisão!!". Caramba! que divisão? Nova pergunta: "Por favor, onde fica essa tal divisão que tem o mictório?" Agora a resposta foi outra: "Olha a comunicação!!" Mais uma vez fiquei sem entender. Só vi que meu anjo tratou de bater asas e voar para longe de mim. Pobre anjo! Até hoje escuto o tom da sua voz, de quem tinha uma vontade imensa de ajudar, mas tinha medo que alguém o visse, ele, um maior, conversando com um elemento da divisão dos menores! Uma falta gravíssima! Só que eu não sabia nada disso.
Claro que existia esse mictório no andar térreo, mas, palavra, que eu não vi. E o aperto foi aumentando, aumentando tanto que não vi outra solução a não ser fazer o que eu fiz. Lá no fundo do pátio, havia um eucaliptal com árvores de tronco bem grosso. Não tive dúvida. Fui atrás de um eucalipto e fiz o que talvez um menino da cidade jamais fizesse. Soltei, tranqüilamente, o xixi. Que alívio!! Tentei sair de fininho detrás da árvore e eis que deparei com uma cena que me acompanha por toda vida. Na minha direção vinha o troncudo Pe. Ministro, vermelho, bufando como um touro dos pastos louveirenses. Atrás dele, um bando de crianças excitadas, barulhentas, parecendo um bando de maritacas lá das matas louveirenses. Uma cena que nem Fellini conseguiria reproduzir... Percebi que tinha mijado fora do penico. Quando o touro chegou perto de mim, tentei explicar. Não deu tempo nem de abrir a boca. Senti um coque ou um cascudo, aquela pancada na cabeça com os nós dos dedos da mão fechada. Uma dor terrível. Mas muito mais me doeu o que eu ouvi e nunca consegui apagar de minha memória: "Seu caipira! capiau! Você pensa que está na roça, em Louveira? Você não sabe que aqui tem mictório?? Nunca aprendeu que lugar de urinar é no mictório?? Só podia ser da roça." Ia perguntar onde era o mictório, mas vi o meu anjo, absolutamente compadecido e constrangido me fazer um sinal para que eu o seguisse. Fui chorando atrás do anjo até que ele apontou falando timidamente: "A entrada do mictório é ali".
Obviamente, se estou lhe escrevendo isso com tantos detalhes, é porque esse fato ocorrido no meu primeiro dia de seminário me marcou muito! Com o fato de ele me repreender por ter feito xixi fora do lugar correto talvez eu não me importasse tanto. Mas ele não precisava humilhar a minha Louveira! Ah! isso não! Humilhar o meu mundo?!? Isso jamais perdoei. Nem muitas sessões deitado em divã tiraram essa da cuca. Naquela época, odiei o Pe. Ministro, odiei o seminário. Todo aquele castelo que me ofertaram para sonhar durante 10 anos ruiu por terra! Só encontrei como recurso de desabafo o meu pobre travesseiro, que amanhecia sempre como se tivesse passado a noite na chuva.
Nunca tive uma viva alma com quem desabafar. É claro que fui fazendo amizades. Mas sempre era alertado para o perigo das amizades particulares, conforme você bem lembrou no seu livro. Não entendia direito o que isso significaria, mas percebia que quando ia fazendo um amigo, logo vinha a admoestação de um superior para evitar essa amizade. Mais tarde, a gente mesmo se policiava e ficava tudo com um relacionamento superficial. Até brincadeiras comuns em nossa idade, brincadeiras que implicam o uso lúdico das mãos, eram imediatamente reprimidas com uma sentença que me marcou muito: "Brincadeira de mão é brincadeira de cão". Tive que escrever isso 500 vezes num caderno, como forma de castigo. Como tive que escrever outras tantas vezes frases como: "Não devo conversar na fila" ou "O bom seminarista não se distrai na capela". Esta última frase eu tive que escrever porque realmente não curtia nenhuma atividade da capela. Passava a maior parte do tempo sem rezar. Meu pensamento, como diria Lupicínio Rodrigues, mais parecia coisa a toa, como é que eu voava quando começava a pensar... A bem da verdade, ficava criticando todas aquelas orações. Criticava, em meus pensamentos, cada frase da oração da manhã, da oração da noite, da missa, de qualquer oração. Essa era a minha meditação diária. Achava tudo aquilo aborrecedor e falso. Achava que Deus não estava nem aí para aquele palavreado todo. Deus, depois de 7 dias cuidando da evolução, descansou e continuava descansando. E tudo isso eu sentia e pensava, sem discutir com ninguém.
Também nunca falei nada com meus familiares. Nem aquele episódio do meu primeiro dia eu não ousava contar pois seria uma decepção muito grande para eles. Certamente eles não iriam acreditar que um padre pudesse ofendê-los assim. Só poderia ser invenção minha. Exagero meu, mas assim eu achava. Para os colegas de Grupo Escolar e outras pessoas da cidade, só falava de maravilhas do seminário. É verdade que meus contatos com eles eram poucos.
Como você bem lembra no seu livro, a gente ia para casa, nas férias, com aquela série enorme de recomendações. Também, como no seu caso, o vigário não dava muita importância para aquela carta. Quando eu entregava o questionário sobre meu comportamento nas férias ele dizia que eu informasse no seminário que ele encaminharia pelo Correio. Até hoje não sei se ele respondia. Contudo, em casa, a coisa era totalmente diferente. Meu pai seguia à risca as recomendações que recebia, inclusive aquelas que recomendava evitar contatos com amigas das minhas irmãs. Quando elas vinham à minha casa eu era convidado para ir ao meu quarto ou para a igreja. Até hoje acho que os casamentos de 4 das minhas irmãs mais velhas foram realizados em época que eu não estava em férias para que eu não me empolgasse com a idéia. Já conversei isso com elas, que riem e dizem que não. Mas eu desconfio que sim. Enfim, meu pai, um tirolês, tido pelos italianos como um tedesco, era muito convicto e de uma religiosidade muito autêntica. Mais autêntica que a dos italianos. Estes admitiam alguns deslizes, porque depois Deus perdoava. Ainda mais se tivessem um padre na família. Aí, Deus ficaria sempre de bem com eles. Já meu pai era muito rígido, não admitia deslizes. Para ele: dura lex sed lex e em matéria de religião: Roma locuta, causa finita. Uma qualidade, aliás, que eu sempre admirei no velho.
Lembro-me muito bem das recomendações sobre leituras e sobre cinema. Acho que nas primeiras férias queria ver o filme "Marcelino Pão e Vinho" que estava em cartaz em Jundiaí. Qual o quê! Um absurdo eu querer ir ao cinema! Depois vi esse filme ad nauseam lá no Seminário. Noutra ocasião, após consultas ao vigário, meu pai me levou ao cinema para ver um filme sobre a vida de São João Bosco. Fiquei impressionado com a vida desse santo. Tão impressionado que minha mãe me dizia que meu nome João era homenagem a ele. Era não. Nasci em 27 de junho, próximo ao dia de São João Batista. Mas acreditei e passei a me interessar pela sua biografia. As que li só tratavam de pieguices. Nenhuma mostrava os aspectos revolucionários da obra desse educador e de sua mãe Margarida que, em meados do século XIX, insistiam em provar que filho de operário também era gente, tinha capacidade e direito de estudar. Algo como a luta de pessoas de hoje em dia que acreditam que meninos e meninas de rua têm um potencial imenso e não são necessariamente futuros bandidos. Depende das oportunidades que lhes dão. O filme, fiz questão de revê-lo mais tarde, não continha somente pieguices. Mostrava as lutas de Dom Bosco e sua mãe contra a elite econômica e religiosa de Turim que não admitia o seu trabalho. Mostrava até um São Domingos Sávio bem diferente daquele que eu conhecia. Corajoso, que apesar de sua fragilidade física comandou, junto com Dom Bosco, uma cruzada de atendimento à população carente atacada pela peste, mesmo tendo que enfrentar o descaso da Prefeitura de Turim. Na época que revi o filme, fiquei revoltado ao constatar como as instituições se transformam e se acomodam em um conservadorismo doentio. Há muito que os salesianos já eram professores dos filhos da elite econômica. Pobres?!? Irque.!! Espero que hoje tenham se transformado novamente e voltado às origens. Pelo menos, minha esposa e filhas conheceram, aqui em Brasília, um salesiano bem porreta.
Voltando às minhas origens, nem todos eram tão entusiasmados com minha vocação. Tinha o tio Ricardo, irmão mais velho de meu pai também autêntico, mas mais liberal, mais flexível. Acho que mais de uma vez teve vontade de me dizer: "Joãozinho, cai fora dessa, larga o seminário". Mais de uma vez me chamou para ir com ele, em sua Kombi, até seu sítio em Indaiatuba. Meu pai relutava em deixar, pois eu ia ficar impossibilitado de cumprir as obrigações estabelecidas pelas recomendações de férias, mas cedia diante do argumento de que meu tio me deixaria passando uns momentos na igreja do Mosteiro de Itaicí, pertinho de seu sítio. E lá ia eu, passando sempre por Helvetia, onde o tio Ricardo parava para bater um papo com velhos amigos. Ali sim eu conhecia umas suissinhas lindas, de famílias bem conhecidas da gente: Amstalden, Banwart, Sigrist... Na viagem o diálogo começava sempre com assuntos referentes à paisagem, às fazendas pelas quais a estrada margeava. Quando o momento era propício para um papo mais pessoal, até hoje não entendo porque vinha um silêncio. É ai que eu acho que o tio queria me aconselhar a sair do seminário. É ai que eu queria dizer que não queria mais ficar lá. Mas, quem poderá explicar? não saía uma só palavra a respeito. Na igreja do Mosteiro de Itaicí meu tio me deixava ficar bem pouco. Acho que ele me esperava no carro e logo vinha me buscar dizendo que tinha que ir à cidade para resolver um assunto qualquer. E lá, na mesa de um bar-sorveteria a gente ficava tomando sorvete vendo o movimento da praça. Nada de especial. Mas tudo de especial, para mim. Tio Ricardo morreu num acidente numa dessas viagens de Louveira a Indaiatuba e cedo acabou-se a tão benéfica válvula de escape. Pela primeira vez chorei muito a morte de alguém. Pela segunda vez foi a morte de Che Guevara. Pela terceira e última, a morte de meu pai.
Interessante que minha mãe também nunca foi uma entusiasta de minha vocação. Nunca me desencorajou, mas também nunca incentivou. Muito pouco, até hoje, a gente conversou coisas relacionadas à vocação sacerdotal e ao seminário. Só uma vez ela se manifestou, dizendo que não me escrevia cartas, mas apenas bilhetes, porque sabia que os padres liam as cartas enviadas e ela achava isso um absurdo. Eu também achava isso um horror. Ficava com vontade de pular na mesa e esganar o Pe. Ministro, que ficava na frente do salão de estudos lendo as cartas enviadas e abrindo e censurando as cartas recebidas. Por isso, também escrevia bem pouco.
Com todos esses percalços, fui tocando em frente. Cada volta de férias era um choro constante no travesseiro. Aquelas conversas com o Pe. Espiritual, que você lembra no livro, eram para mim um sacrifício que gostava de evitar. Ia, escutava, entendia ou não, nada questionava. Àquela pergunta: "como vai de pureza?" eu respondia que estava tudo bem. E eu lá sabia o que era essa tal de pureza? Só conhecia a Dona Pureza, esposa do Sr. Scharamel, nossos vizinhos lá em Louveira. Uma vez o Pe. Espiritual me perguntou: "Você tem pensamentos impuros"? Respondi: "Tenho sim". Ao espanto dele, continuei: "Outro dia eu desejei que Deus desse um tombo no padre professor de latim e que quebrasse os dois braços dele. Assim ele não poderia me dar aqueles cascudos só porque eu estava distraído." O Pe. Espiritual riu e depois, sério, me aconselhou a não mais pecar, evitando esses pensamentos impuros. Afinal, a gente pecava por ações, palavras e pensamentos.
Mas nem tudo era dissabor lá em Aparecida. A folga semanal de aulas era na quinta-feira e não no sábado e, se o clima permitisse, nesse dia era organizado um passeio a pé até a fazenda do Seminário. Dela é que provinham as verduras, leite, manteiga, frutas (principalmente banana) e outros suprimentos. A fazenda ficava a uns 3 quilômetros de distância, depois da atravessar a Via Dutra, então com mão única, que ficava logo após o eucaliptal atrás do pátio. Eu me sentia em casa nessa fazenda. Chegava até a fazer xixi atrás do mata, escondidinho, sem repreensão. Mas a atividade que mais eu fazia aí era mariscar guaru (barrigudinho) para criar em latas de marmelada ou manteiga que a gente mantinha nos armários do salão de jogos do seminário. Eles são tão resistentes à pouca oxigenação da água que a sua ausência em um rio significa que foi atingido o grau máximo de poluição. Hoje em dia, selecionaram uns barrigudinhos desses com uns rabos maiores e coloridos e eles viraram artigo de luxo em lojas de aquários. São uns guarus metidos a besta que atendem pelo nome de lebistes. Muitos eram os pescadores de guaru. Eu tinha um colega que era meu parceiro inseparável nessa atividade. Era o Sérgio Mamede, de Guararema cidade próxima a São Paulo, que eu não conheço, mas que pelas identidades de gostos que tínhamos eu e o Sérgio, sempre imagino que é uma cidade igualzinha à Louveira.
Outra atividade que eu adorava executar no Seminário era o de programador musical e locutor do serviço de alto-falantes que funcionava nas horas de recreio de domingos e dias festivos. Não sei por que cargas dágua me deram essa tarefa. No ano de 1956, eu era um dos encarregados do serviço de alto falante que ficava no primeiro andar, embaixo da escadaria central, em frente à portaria. A discoteca era composta de duas ou três centenas de discos de 78 RPM. Totalmente composta de músicas instrumentais ligeiras: valsas, marchas, polcas, rancheiras, dobrados, trechos de óperas e de outros clássicos. Nada de samba, baião ou marchas carnavalescas. Eu gostava muito de programar a seqüência musical, anunciar a próxima atração, bem como chamar algum colega para se dirigir à portaria para receber a visita que tinha chegado. Lembro que, no segundo semestre de 1956, a música que mais dava Ibope era "Pobres de Paris". Orquestrada. Existia uma versão com coro e orquestra, que eu ouvia nas férias, e que começava com o refrão: "Com os pobres de Paris Aprendi uma lição A fortuna encontrar No meu coração."
Eu não era um indivíduo bagunceiro, mas também não era um santo. Levava cascudos adoidadamente. Mas era mais por viver no mundo da lua que por bagunça. Ah! cansei de levar cascudo por estar na fila com as mãos no bolso. Certamente porque, literalmente, estava coçando o saco. Nos estudos, era um aluno regular. O meu boletim, ou melhor Certidão de Estudos que solicitei em 1962 para matrícula na Universidade, vem assinado pelo então Reitor Mons. Constantino Amstalden e o Diretor de Estudos, Pe. Tarcísio G. da Silva (será G. de Geraldo?). Nesta certidão tenho média geral de 7,8 na Admissão, 7,7 na 1ª série, 6,0 na 2ª e 8,0 na 3ª. Me surpreendo com um 9,5 em Português e um 9,7 em História. Não tinha um pingo de gosto por estudo. Mas se um dia a gente se encontrar, posso lhe lembrar a Aguía Maria ou então lhe contar a fábula de Phedro, O Corvo Doente: Kórax nossön éphe thé Metrí: Méter, euke toú Theoú kai me trêne ... Kekaritoménen!!!
Gozado, mas eu não tenho certeza em que ano que eu fui para São Roque. Não me lembro se foi em 1957 na segunda série ou se foi só em 1958 na terceira série. Na referida Certidão de Estudos consta que cursei Admissão e as 3 primeiras séries ginasiais no Seminário Metropolitano Imaculado Coração de Maria, Caixa Postal 20 Telefone 205 São Roque, SP. A admissão e a primeira série foram, com certeza, em Aparecida.
Pelos registros da Turma do Ibaté, o João esteve em São Roque em 1958 (Paulo Toschi).
Sempre me lembro do lugar maravilhoso onde ficava o Seminário de São Roque. Depois que de lá saí, nunca mais voltei, mas nunca perdi da memória o morro Saboó. Fizemos uma vez uma excursão até o topo do morro. Nada de especial, mas curti muito. Sempre tive vontade de voltar lá. Uma vez, viajando de S. Paulo ao Rio, tentei rever o Seminário de Aparecida. Fui tão mal recebido e tão desencorajado que nunca mais tive coragem de retornar também a São Roque.
Uma coisa interessante é que eu não lembrava do nome do bairro onde ficava o Seminário. Fiquei surpreso, depois do contato telefônico de Wilson Mosca, em receber a publicação "Echus do IBATÉ". Nem me lembrava de Ibaté. Lembrava sim, e muito, do morro do Saboó. Lembro também muito de uma janela no fundo do corredor, perto da entrada do anfiteatro. Nessa janela eu ia muitas vezes contemplar as constelações. Até hoje identifico perfeitamente qualquer constelação do Zodíaco, e outras como Orion, Hidra, Navio, Centauro, Lira, etc. Uma habilidade aliás, que deu orgulho às minhas filhas que, nas noites tão lúcidas do Planalto Central, também aprenderam a identificar algumas delas. É bem verdade que ao passar o conhecimentos para seus colegas, estes só conseguem identificar Escorpião. De fato, para as demais, é preciso muita imaginação. Coisa que não nos faltava nos idos de São Roque.
Lembro dos jogos e eu também era um péssimo esportista. Jogava, quando havia vaga, um tal jogo cujo nome não me recordo. Era um poste com uma corda grande em cuja extremidade havia um objeto inflado em forma de uma grande pêra. O objetivo era enrolar a corda no poste dando empurrões na tal pêra. Um tenta de um lado, outro tenta do outro. Podia-se jogar individualmente ou em duplas. Agora também lembro da morte de um colega. Se não me engano foi de ataque cardíaco, jogando esse jogo ou vôlei. Não lembro o nome dele.
Você faz referências, no seu livro, a muitas coisas que ocorriam com você e que ocorriam também comigo. Porém, no capítulo referente às visitas dos pais, a coisa foi totalmente diferente. Eu recebia uma só visita por semestre. Além da dificuldade de meus pais se deslocarem de Louveira para Aparecida ou São Roque, eles diziam que eram aconselhados a não fazerem muitas visitas para não causar muita dissipação. (Esse termo você me fez ir buscar lá no fundo do baú. Palavra que já o havia esquecido. Tirei muito pó e ele reapareceu resplandecente...). Nada de guloseimas. Quando muito uma lata de manteiga Poços de Caldas. Aos meus reclamos, meu pai sempre dizia que era uma justa recomendação de meus superiores. Afinal eu tinha optado por uma vida que exigiria sacrifícios e era bom ir praticando desde então. Como você vê, meu pai era mais espartano que tirolês, ou mais realista que o rei. Talvez por constrangimento de não ter como retribuir, dificilmente eu aceitava as guloseimas que tinham que ser repartidas pelos felizardos que tinham recebido visita. Só às vezes eu não resistia ao sabor maravilhoso de uma margarina Saúde. Que chique! Margarina!! Muito melhor que manteiga... nem dúvida.
Outra diferença entre sua época e a que eu lá estive, é que já tinham sido construídas as cabinas de trocar roupa junto à piscina. Embora a gente fosse à piscina poucas vezes na verdade, o frio naquela região era pouco estimulador para atividades aquáticas eu tenho a impressão que a gente demorava bem mais que os 15 minutos que você relatou. O fato é que eu gostava tanto dessa atividade que, se eram só 15 minutos, para mim esses minutos tinham 6000 segundos. Eu tinha aprendido a nadar no rio Capivari, e ali, na piscina, estava no meu terreiro. Atravessava aquela piscina diversas vezes, nadando sem parar. Coisa de fazer inveja. E no final não tínhamos aquele inconveniente de vestir calça comprida sobre o calção molhado.
Quando você relata esse fato, embora não tenha passado por isso, eu juro que acreditei, que entendi e até que achei perfeitamente normal... Mas daí eu fiquei pensando: Isso é algo que só nós que participamos, que vivemos, que estávamos lá, só nós mesmos para acreditar, entender e achar normal. Só nós mesmos para saber como é que se troca de roupa debaixo das cobertas! É ou não é!?! Só nós mesmos para saber das emoções de almoçar ouvindo a leitura das aventuras de Winetou. Só nós mesmos para fazer aquele silêncio e ficar naquele suspense em certas passagens da leitura de O herói do Alcácer, mesmo que já fossem velhas conhecidas nossas. Ninguém mexia uma palha! Me irritava ouvir uma mosca voando! Só nós mesmos para entender aquela explosão e aquela algazarra que se seguia, quando, em um dia especial, talvez de uma visita importante, o Pe. Ministro resolvia dar o Deo gratias na hora do almoço. Só nós mesmos para responder com aquele grito: Deeeooo graaatiiias!!!
Vou fazer um parêntesis. Minha esposa sempre trabalhou em atividades que envolvem menores carentes, abandonados, etc. Claro que lida muito com menores dependentes de drogas. Ultimamente, quando uma criança ou jovem deseja largar o vício, ela os encaminha para uma entidade de origem italiana chamada Comunidade Encontro. Fica no Distrito Federal, quase na divisa com o município de Unaí, MG, bem isolada, a uns 100 km de Brasília. Sempre eu a acompanhei nas visitas mensais que faz, pois alguns meninos não têm família que se preocupem com eles. Lá é uma grande fazenda, num local muito parecido com o de São Roque, também com belíssimas instalações prediais. Lembro-me muito do seminário. Não só pela paisagem, mas principalmente pelo clima ambiental. A disciplina é muito rígida, parecida com a do seminário. A postura dos internos, a existência de um vocabulário próprio, comportamentos próprios, etc. Coisas que minha esposa talvez perceba, talvez entenda, mas tem coisas que ela nem percebe. Eu sim, porque mutatis mutandis, aquilo é uma cópia do seminário. Aí eu fico pensando... de que será que a gente era dependente?!?
Voltando à São Roque, lá existia um museu de ciências naturais. Acho que era junto ao laboratório de física a que você se referiu, localizado no andar inferior do pavilhão do lado oposto ao do refeitório e do dormitório. Cacei muitas borboletas, gafanhotos, lagartas, besouros e outros coleópteros para enriquecer o acervo do museu. Os insetos, depois de aplicado o formol eram catalogados e colocados em gavetas, se eu não me engano, pelo padre que você citou, o Pe. Kulay. Aliás, agora me lembrei que o Pe. Kulay era irmão do Dr. Luiz Kulay, médico cirurgião de minha família e de muitas famílias de Louveira. Ele clinicava em São Paulo, atendia aos chamados emergências e operou muita gente de Louveira, inclusive minha mãe. Talvez tenha sido por isso que eu me tornei um colaborador assíduo do museu.
Suprimi um trecho da carta do João
Steck em que ele relata a expulsão
de um aluno, por razões semelhantes à que eu descrevi em meu livro,
e no qual o João faz vários comentários sobre a forma errônea como era
conduzida a educação sexual dentro do seminário.Não tenho vocação
para censor nem considero impróprios esses comentários de nosso amigo
e colega nem o conteúdo de suas observações é tão grave como possa parecer.
Apenas, estou reservando a presente seção como um fórum de debates sobre
aspectos mais leves da vida em um seminário. É possível que eu venha a
desenvolver um outro trabalho, em outra seção específica da home page,
em que se possa discutir as influências do seminário na vida dos seminaristas,
antes, durante e depois de sua passagem pelo seminário, principalmente do
ponto de vista psicológico. Se o João Steck permitir, irei incluir os seus
comentários, muito oportunos, nesse novo estudo (Paulo Toschi).
Você lembrou das reuniões do Círculo Literário. Eu me lembro nitidamente das peças de teatro. Não sei como os padres conseguiam peças só para atores. As mães, as tias, as irmãs só apareciam no texto como referências. Esposas só mortas. Namoradas jamais! Lembro-me que fui ator de uma dessas peças. Eu aparecia só no primeiro ato. Só umas pontas. Uma ou duas frases. Eu era o filho de um cavaleiro, religioso, poderoso, riquíssimo. Era um pajem ou príncipe com direito a roupagem de veludo de manga fofa, boina com pena de ganso e principalmente um medalhão dourado que a mãe tinha colocado no meu pescoço, antes de morrer. Apesar de minha participação ser mínima, era de uma importância fundamental. Afinal, já no fim do primeiro ato eu crescia, era substituído por outro maior. No segundo ato, aprontei com a família, com a religião, com o mundo, para no terceiro ato entrar em confronto com um velho e combalido cavaleiro, meu pai. Que só foi me reconhecer nas últimas cenas, quando me venceu, ao ver o medalhão no meu pescoço! E me perdoou. Não me lembro do nome dos atores. Lembro-me sim do garbo do jovem que me substituiu, da imponência do meu pai, consolando-me após a morte de nobre mamãe e de sua grandeza no terceiro ato, mesmo depois de velho. Lembro-me de detalhes dessa peça. Mas agora estou em dúvida se eu participei mesmo dessa e de outras peças. Mas deve ser realidade sim. Acho que lembro de detalhes porque, depois de minha participação, ficava nos bastidores acompanhando bem de perto o desenrolar da trama. Os ensaios, para mim, eram bem poucos. Porque minha participação era pequena e eu não podia ficar muito tempo no meio de tantos maiores.
E por falar em nomes de atores, eu fiquei como uma inveja de você, que ainda se lembra dos nomes dos colegas e ainda esnoba dizendo que não cita muitos para não ser indelicado com quem esqueceu. Eu, pelo contrário, lembro de poucos nomes e quase nenhuma fisionomia. Agora que estou recebendo o Echus do Ibaté vou relembrando de pessoas cujos nomes e fotos vão aparecendo na publicação. Antes, só me lembrava de Ênio Tomazini, Rolando (ambos de Salto), Martini (de Itu), Baroni (do Belenzinho), Martinelli (de Jundiaí), Sérgio Mamede (de Guararema), do anjo e dos dois (o fulano e o beltrano) daquele desastrado episódio que culminou com a expulsão do fulano. Como se vê, bem poucos. Mesmo dos padres e professores, lembro-me muito pouco. Lembrava bem do Mons. Constantino, mais porque ele era de Helvetia, bairro de Indaiatuba onde haviam muitas famílias, inclusive a Amstalden, conhecidas das famílias louveirenses. Do Mons. Luiz Gonzaga de Almeida que também foi reitor em Aparecida e do Cônego João de quem me lembro como uma figura folclórica. Lembrava do Pe. Noé que foi meu professor de matemática. Eu tinha uma dificuldade grande de aprender matemática. Quando fui transferido para o Seminário de Campinas, em 1959, na quarta série, eu era tão cru em matemática quanto você era quando entrou no colégio fora do seminário. Só que eu tive a sorte de encontrar lá um professor que viu potencial em mim, investiu em aulas particulares durante os quatro primeiros meses. Resultado: no final da quarta série eu estava disputando o primeiro lugar com dois colegas portugueses, o Arnaldo e o Custódio. Fiquei em terceiro lugar na média geral, mas em matemática fiquei em primeiro, junto com eles dois. E olha que a gente já estudava trigonometria e outros quejandos na quarta série ginasial. Livro do Oswaldo Sangiorgi.
Fiquei pouco tempo em São Roque. No final de 1958, não sei por quais motivos, Louveira passou a pertencer à Diocese de Campinas. Então, em 1959 fui transferido para o Seminário Menor Metropolitano de Campinas. Eu e os outros seminaristas de Louveira: o Wilson Coletti, o Luiz Humberto Verardo, o Bruno Verardo, o Orlando Cavali. Não me lembro se eles passaram por São Roque ou se só estiveram em Aparecida. Sei que eles entraram no Seminário depois de mim.
Bem, lá em Campinas, começa uma nova história. Nessa época, o Seminário de Campinas já havia passado por uma transformação, deixando atrás toda aquela rigidez, falta de diálogo, etc., que também tinha, igualzinhas ou piores que Aparecida ou São Roque. Era já o terceiro ano dessa transformação. Na verdade, as mudanças não eram assim tão grandes, principalmente quanto às regras disciplinares. Mas logo eu percebi que eu era tratado como uma pessoa normal que queria seguir uma vida que exigia muita entrega, muita doação. Logo fui tendo com quem conversar sobre minhas dúvidas vocacionais. Não desisti logo, porque ainda tinha medo que meu mundo louveirense caísse em cima de mim se eu desistisse. E, como comecei a ser tratado como um ser inteligente, fui pegando gosto por tudo, por estudos, por música, por artes, e até pelo sacerdócio. Agora eu não era mais tratado como um anjo assexuado, mas como um rapaz sexuado e que estava fazendo uma opção pela castidade, pela pobreza e pela obediência. Ser casto, pobre e obediente eram condições cujas vantagens e desvantagens eram discutidas e analisadas. Eu deveria fazer uma escolha para essas condições e não simplesmente aceitá-las porque eu tinha sido escolhido para isso e pronto. Quantas vezes eu tinha ouvido coisas do tipo: "Você foi escolhido. A messe é grande e poucos os operários escolhidos". Ai de você se você não aceitar essa escolha que lhe fizeram. Em Campinas, as coisas eram diferentes porque essa escolha era discutida. Lembro-me que eu não aceitava de jeito nenhum o celibato sacerdotal obrigatório. Discutia isso, deixei um ou outro padre até puto comigo, porque eu duvidava da possibilidade de se manter casto a vida inteira. Ai eu tinha que responder aquela pergunta: "Então, você não acredita em mim?". Então, quem ficava puto era eu. Como você vê, em Campinas virei gente. Gente que gostava de estudar, discutir história, conhecer gente e lugares, conhecer Beethoven, Schubert, Vivaldi, Vila Lobos, Stravinsky, Lupicínio Rodrigues, Dorival Caymi, Noel Rosa, Lamartine, Paul Anka, Neil Sedaka, Elvis Presley. Conhecer e gostar de cinema, de Vitorio de Sicca, Visconti, Godard, Elia Kazan, Marlon Brando, James Dean, Nathaly Wood, B. Bardot, J. Moreau, Claudia Cardinale, conhecer Eça de Queiroz, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado. Enfim conhecer a vida e viver. E lá eu também tinha a companhia das constelações: Orion, Escorpião, Leão, Virgem, Gêmeos, Centauro, Touro e das estrelas Sirius, Canopus, Antares, Spiga, Regulus, etc.
Saí do Seminário no final de 1962. O mundo não desabou sobre mim. Meus pais aceitaram numa boa. Na verdade, estavam preparados e esperando isso. Nunca meus pais ou outra pessoa, nunca ninguém teve uma atitude de cobrança porque não realizei o sonho deles. Pelo menos nunca diretamente a mim. Soube, mais tarde, que um tio do lado italiano (e eram muitos...) cobrou de meu pai uma explicação. Ele não se conformava porque eu tinha entrado na Universidade. Dizia que meus pais tinham me mandado para o Seminário só para que eu aproveitasse os melhores estudos. Chegou até a querer de volta o dinheiro que ele tinha doado às Obras das Vocações Sacerdotais. Eu e os outros seminaristas de Louveira éramos custeados por essa entidade paroquial, que por sua vez era mantida quase que totalmente com as doações dos pais e parentes dos seminaristas. Mas meus pais me pouparam do dissabor de saber desse episódio. Soube disso muito tempo depois, através de minhas irmãs.
Quando eu saí do seminário, nunca ouvi
uma palavra de reprovação de meus pais ou
familiares nem mesmo de meu padrinho, monsenhor paulo. Contudo, uma vizinha de minha
mãe, cujo sobrinho se tornou jesuíta, e dois colegas de trabalho de meu pai, muito
religiosos,
vieram me procurar e passaram-me pesadas descomposturas, pelo fato de eu ter causado,
na opinião deles, um desgosto grande aos meus pais, não colaborando para realizar o que
seria um grande sonho deles. Esses críticos não pensaram em mim e não tiveram a
sorte
de viver o suficiente para conhecer a opinião de meus pais a meu respeito (Paulo Toschi).
Acho que para mostrar que não estava chateado comigo, meu pai me deu, pela primeira vez formalmente, um presente, um belo, discreto e valioso relógio de pulso. Logo no início de 1963 entrei na Universidade. Mas tive que servir o Exército. Teria que ser o NPOR, um núcleo para estudantes de nível superior que funcionava aos sábados e domingos, durante 2 anos. Quando cheguei lá, descobri que o Capitão Comandante desse grupo era um senhor, colega da Faculdade. Tive alguns privilégios. Realmente, conforme você disse no seu livro, o ambiente do quartel era, no aspecto disciplinar, muito semelhante ao do Seminário. Com muitas diferenças, entre as quais vou relatar uma. Apesar de ter vivido em um ambiente mais aberto no seminário de Campinas, eu saí do seminário ainda muito inocente, mocorongo para certas coisas do mundo lá fora. Imagine que no primeiro dia de quartel, antes de dormir, deixei o meu relógio em cima do armário e fui tomar banho. Ao voltar, cadê o relógio? Tratei de perguntar em voz alta: "Alguém, por engano, pegou um relógio aqui de cima de meu armário?" Como resposta, só ouvi risadas. Fui ao sargento responsável pelo grupo e disse a ele que se alguém devolvesse um relógio tomado por engano, que possivelmente era o meu. Ele também riu e depois, sério, perguntou-me se eu realmente acreditava que o relógio tinha sido tomado por engano. Surpreso, respondi que sim. Ele me explicou o que havia acontecido, que haviam roubado meu relógio. Eu continuei não acreditando. Roubo??, desonestidade?? Isso não existia na vida real. No dia seguinte fui até o capitão comandante e expliquei tudo. Ele percebeu e, com muita paciência, me convenceu que eu havia sido roubado. Esse capitão, em 1964 ficou preso em um navio no Uruguai. Nunca mais tive notícias dele. Foi um grande superior, colega e amigo.
Difícil foi convencer meu pai. Ele ficou absolutamente arrasado. Não porque eu tinha ficado sem o relógio, mas porque o mundo estava caminhando para a perdição. Imagine que a desonestidade não era mais só uma coisa de livros e filmes do neo-paganismo, sem o nihil obstat. Era uma realidade bem próxima da gente!
Assim é que eu comecei a minha vida aqui fora. Muita desonestidade tive que enfrentar. Mas, tenho certeza que nunca fui desonesto. Afinal de contas honestidade foi a maior riqueza que meus pais me legaram e que o Seminário me mostrou. Porque eles podem ter errado muito! E como erraram! Mas por uma coisa a gente bota a mão no fogo: Tudo o que eles fizeram foi com a honestidade de quem queria o melhor para nós. Palavra de seminarista!!!
Pô cara!!!
Acabei escrevendo quase um livro. Me desculpa
de importuná-lo com essa catilinária. Você me encorajou. Li seu livro no início da
noite. Termino de escrever isso, 8 horas da manhã do dia seguinte. Culpa sua. Agora,
agüenta!!
Um grande abraço de um amigo seu que nunca o
conheceu, mas que sempre viveu junto com você.
João Steck
jsteck@solar.com.br
SQS 203 Bloco D Apto. 406
70233-040 Brasília, DF
Fones: (061) 223-5309 e 321-0946
Convido todos os demais colegas que
tenham interesse em fazer comentários sobre os anos
vividos no seminário para que mandem sua contribuição, por e-mail, para minha caixa
postal.
Podem mandar arquivos de textos, gravados normalmente no Word. Serão bem recebidos,
também, comentários de outras pessoas que nunca hajam passado por um seminário.
Se desejarem fazer observações curtas, não se esqueçam de usar o meu livro de
visitas.