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Conto do livro Perfil do Entardecer
Naquele dia, a detentora de mansidão absoluta e harmonia nos gestos e palavras, vem entrando em casa alegre e, ao mesmo tempo, agitada. Acomodados ao redor da mesa do almoço, todos a esperam: o marido, um sobrinho e dois filhos. É verdade, ela se envolvera com um certo atraso. Ainda bem que dispunha, no momento, de empregada responsável, com a qual podia contar numa hora dessas. O importante é que a mesa estava bem posta e o almoço sendo servido. A sua presença, portanto, não fora assim tão insubstituível.
Frente a todos, escancara a bolsa, remexe-a e, do seu fundo, retira um bracelete luzido, de ouro, cravejado com inúmeros brilhantes. Exibe-o a todos, afirmando, praticamente, aos gritos:
--Pessoal, veja o que eu encontrei... Estava bem no meio de uma calçada... Já o levei à Caixa Econômica e o examinador garantiu que é ouro e os diamantes... todos verdadeiros.
--Puxa, mãe, que história é essa? -- admira-se o filho mais novo. -Já outro dia, a senhora achou um anel... E disse que era de ouro...
--Fora o maço de dinheiro que encontrou jogado na sarjeta - intervém o seu simplório marido.
E a história da mulher que vive achando as coisas ganha asas e sobrevoa um longo trecho da rua onde mora, instigando a dúvida e a maledicência de grande parte dos moradores:
--Aí tem coisa!... Essa história é muito estranha! - dizia um, cheio de dúvida. -Por que eu não encontro nada?
-- Nem eu. Será que a virtuosa Amanda faz parte de alguma quadrilha? -insinuava outro.
--Ou tem banqueiro na linha? - questionava uma moça velha, conhecida como grande fofoqueira do quarteirão.
E o nome da mulher vai construindo, no ideário da vizinhança, muitas insinuações.
Numa bela tarde, a ausência de nuvens deixa bem azul, a visão encantadora do céu, enquanto uma brisa morna, aqui e ali, com jatos de poeira, sopra as ruas e as casas. Dona Amanda formula, então, um convite à solteirona a fim de se entregarem ao burburinho de preces, numa igreja próximo ao local onde as duas moravam. Queria orar um pouco, encontrar-se com Deus. A moça velha deixa-se contagiar pela idéia do convite e, prontamente, aceita-o. Ambas liberam o passo, na direção do recinto sagrado do templo.
No caminho, meio a uma conversação acirrada, um grito é arrancado, pela surpresa, do peito da solteirona. Bem visível, no rés- do- chão, avulta um pacote. Um pacote artisticamente embrulhado com um papel de presente, do tipo laminado.
--Meu Deus, um pacote! -exclama. Mas não vamos apanhar!... Quem sabe aí dentro não se encontra alguma bomba...
--Mas... que história é essa, Donata? Uma bomba no meio da rua? Não tem perigo! Vamos é abrir... e aqui mesmo!
Assim o fizeram, projetando uma grande curiosidade sobre o seu conteúdo que era um corte de tecido, uma bela seda importada.
--E agora, Amanda, quem será a dona desta linda seda?
--Pode ficar! Esta é a primeira vez que você encontra algo!...
E desta forma, a pobre e ingênua amiga de Amanda põe a sua mão, na certa pela primeira vez, num corte de seda assaz rico, com divina estamparia.
Já de volta ao recinto da sua casa, Donata promove uma constante exibição do seu achado. Por causa disso, alguns se convencem, de fato, da amiga de Donata ser uma senhora prestigiada pela sorte, transferindo-a, inclusive, para as outras pessoas.
--Hum!-estranha um dos vizinhos mais experientes. --Ainda coloca a bobalhona da Donata nessa história tão esquisita!
Numa tarde, a achadora de objetos valiosos e até mesmo de dinheiro rega, despreocupadamente, as plantas do seu bonito jardim. Seus olhos não escondem o brilho de ações travessas. Súbito, impõe-se, assobiando, o vulto de um rapaz o qual ela conhece da mais tenra idade. Este manifesta cumprimentos à dona da casa. Ela retribui e lhe faz interrogações a respeito do seu mais recente emprego, e este a responde entre o crítico e o gracejo:
--Agora, estou na empresa de um português unha-de-fome. Nem um simples lanchinho, serve aos funcionários... E o salário... a senhora pode imaginar... Mas... mudando de assunto, Dona Amanda, andei sabendo da sua grande sorte... Ah, se eu fosse a senhora!.. Jogaria sempre na loteria!
Ela abre um sorriso, meio desconfiada, como se o jovem dominasse algum dos seus segredos mais recônditos. O jovem, então, murmura um até breve e segue o seu caminho.
No outro dia, sempre assobiando, chega o rapaz à sua sala, na empresa. Percebe a esposa do português, no escritório do marido. O velho, naquele instante, não se encontras ali, e ela remexe, uma por uma, as suas gavetas.
--Que será isso, meu Deus, que coisa mais estranha! E acomoda-se no seu birô. Nada tem a ver com essa história. Nada mesmo! E liga o computador.
De repente, ela apanha o telefone e faz ligação para uma pessoa conhecida. Ele escuta toda a conversa. Isso é inevitável, as salas são contíguas. Depois, ela não faz questão de falar baixinho:
--O Leonardo é um grande irresponsável... Perdeu as minhas jóias que pedi para empenhar na Caixa... Meu bracelete...meu anel... Até o dinheiro do juro da minha poupança... Me deixou na onça, quase sem nada...
O rapaz ficou deveras espantado. Associou, por isso, a história do português aos "achados" da mulher do seu bairro.:
--Mas não é possível!! Será verdade o que estou imaginando?? A Dona Amanda e o velho ... Agora me lembro da minha avó. Que velha mais sábia! Quando alguma mulher achava algo ou um homem o perdia, ela sorria filosofando: "Mulher que acha e homem que perde... cada qual o mais esperto! Esperto e enganador - ele complementa, no seu rosto se formando espasmos de decepção.
O cérebro do jovem, naquele instante, torna-se um redemoinho e principia a traçar maquinações. Logo, uma idéia de contorno satânico começa a ganhar corpo na sua imaginação:
--Ah, vou tirar proveito desta situação! Sugerir a esse ranzinza que sei de toda a verdade. Só assim, melhorarei o meu salário nessa espelunca e, quem sabe, de posição! Na primeira oportunidade, darei o meu certeiro bote! Ah, homem que perde, mulher que acha, cada qual o mais esperto! Mais esperto ainda é quem sabe e age em nome de todo esse saber!