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“...O rio parecia imóvel, calado, sereno. Envolveu-me o silêncio da noite, o silêncio da vegetação ribeirinha, o silêncio da lua e das estrelas, do céu inteiro na água refletido, como que a me contemplar e perscrutar os insondáveis mistérios do meu coração. Pesquei enfim o meu peixe: um peixe grande e bonito. Seu porte impressionou-me. Além de gigantesco e digno de todo e qualquer troféu, ele era um peixe diferente: Falava.
Até aí, nada de extraordinário. Qualquer peixe fala. Meu peixe, porém, tinha um quê de especial. Falava, mas não falava exatamente como falam os peixes comuns. Comunicou-se comigo numa linguagem cifrada. Não bastasse isso, ele tinha o dom de entrar de mansinho, nadar e mergulhar fundo nas revoltas e poluídas águas do Grande Rio.
Depois que se apresentou a mim, cuidadosamente retirei o anzol da sua boca. Tinha entrado rasgando, bem no canto, à direita. Tive a impressão de que doía muito, porque ao sorrir para mim, ele sorriu torto. Pela primeira vez, sentia-me mal por ter ferido a boca de um peixe. Não mais considerei peixe um ser insignificante...”
( In Fragmentos da Estrada, Conto Pescaria, 2005, obra não publicada).
"Enquanto eu revirava a bolsa à procura das chaves, o agente que me conduziu até ali informou ao colega de trabalho porque eu havia sido detida. Explicou que eu já havia trabalhado irregulamente nos Estados Unidos, retornado ao Brasil e estava voltando para trabalhar mais uma vez na mesma situação irregular. E concluiu dizendo: She´s all for you! Ela é toda sua. Teria sido melhor se eu ainda não entendesse inglês. Aquele "ela é toda sua", perfurou meus ouvidos como uma bala e atingiu em cheio meu cérebro. Doeu. Como doeu.
( In Memórias da América, Ibis Libris, 2006, capítulo Deportação)
A RUA ONDE MORO sem nenhum lote vago a rua onde moro é repleta de casas bonitas e de prédios enorme terreno baldio é a rua onde moro as casas da rua onde moro apartamentos também são cheios de portas e grandes janelas são sem portas janelas não têm casas e apartamentos da rua onde moro os muros das casas e prédios da rua onde moro são altos e para entrar e para sair solitários abrem-se os portões ninguém entra ninguém sai são intransponíveis os muros da rua onde moro a rua onde moro mais parece quadra de festa está sempre cheia de gente nela acontece de tudo o vai-vem é contínuo é vazia nela nada acontece deserto é o nome da rua onde moro na rua onde moro à minha direita mora José à esquerda fica a casa de Maria no prédio da frente do outro lado da rua superpostos vivem homens mulheres vivem muitas crianças nascem no prédio na rua elas brincam ninguém nasce não morre ninguém ninguém chora não brinca ninguém na rua onde moro no deserto vi chegar vi partir ambulância polícia carro da funerária não vi chegar partir não vi não vi nada acontecer na rua onde moro macabra é a cidade onde moro de ruas todas iguais ( In Vida na poesia na Vida, 2005, obra não publicada)