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MÔNICA SOLON
A MÚSICA

A alma se entrega. A música atravessa paredes de pedra e janelas de vidro, invade seu corpo e o atrai como um ímã. O vento penetra por dentro da roupa, joga seus cabelos contra o rosto. A melodia remete a lugares distantes, que tem a sensação de conhecer de outras vidas. O dedilhar do piano é um fraseado melancólico, grave, que nasce da rocha, do asfalto úmido, do vento e reclina-se sobre ela como o céu cinza-chumbo.
Não há ninguém ao redor. O descampado verde ondula e não se pode ver outras construções além da estrutura cinza, cercada por uma mureta de ardósia. A torre e o arco da entrada denunciam a função religiosa da construção, embora não haja símbolo que a identifique como tal. A mão pousa sobre o portão de madeira, de onde pende um cadeado aberto que não desencoraja intrusos.
Uma emoção desconhecida se apropria da sua razão. Quer ficar dentro daquela música que imprime uma ordem, uma convocação irrecusável, à sua alma. Mas ao atravessar a mureta, o silêncio encobre a paisagem e a desintegra, como uma pintura se dissolve sob a onda derramada do solvente.
Joana abre os olhos. A igreja, a madeira, o frio, são nítidos. A música está impregnada na tessitura dos seus nervos, entranhada no cérebro. Está deitada no sofá, as costas torcidas e o pescoço dolorido. Ergue-se, se reposiciona no tempo e no espaço. Lá fora, o sol brilha num azul de verão.
Depois de um passar de horas vazio, tratando da louça, de esfregar o óleo do corpo no banho e de decidir onde pediria o almoço, o domingo se esvai. Joana escurece o quarto onde se trancara, trocando o canal da tv a cada fração de segundo. Fecha os olhos para descansá-los das imagens intermitentes e seu cérebro entorpece.
Aproxima o rosto da pedra, recostando a testa contra a superfície irregular da parede da igreja. Uma nova excitação agita sua mente e atravessa o arco da entrada principal, adentrando o salão como um espírito atormentado invade um santuário. A claridade que atravessa as janelas não ilumina. O negro das roupas e do piano revela um par de mãos muito brancas e a curva do nariz surge por trás da cortina de cabelos lisos que lhe cobrem o rosto. A música é interrompida. O homem se volta e a observa com curiosidade.
“Em que posso ajudá-la?”, pergunta, em inglês.
“A música... me trouxe aqui...” diz, um tanto sem graça.
Ele mantém um esboço de sorriso. A onda que parte de sua testa faz um contorno e os cabelos caem ao redor do queixo, em fios inteiros, castanho-claros. O rosto se assemelha ao dos felinos, com expressão de caçador, e olhos escuros, pequenos, se escondem entre as faces e a testa, marcadas por rugas suaves. Fios brancos talham a barba rente à face.
“É comum as pessoas se perderem e virem buscar refúgio aqui... Mas isso não é uma igreja nem um lugar público. É propriedade particular”, ele explica. Diante do silêncio atônito dela, ele se ergue e caminha em sua direção, para lhe indicar a porta. Ao se levantar, exibe um corpo esguio, forte. Passa tão rente que pode sentir sua temperatura e ouvir o roçar da lã do suéter preto sobre a camiseta de algodão. A roupa escura lhe dá um ar de mago, de criatura sobrenatural. Mas é um homem real como a consciência de si mesma. Como Joana permanece imóvel, ele retorna ao piano, resignado.
“Você mora aqui?”, ela indaga, num impulso.
“É meu estúdio. Como é o seu nome?”
“Joana.”
Ele recomeça a tocar e o tempo deixa de existir.
“Fique, Joana.”
Uma alegria a invade ao ouvi-lo pronunciar seu nome. Estende o braço na direção do seu rosto, mas ele contém a respiração, os olhos incendeiam, e uma sensação de angústia, de desespero, que antes só existia nos acordes, lhe toma todo o ser. Assustada, ela detém o gesto.
O despertador se esgoela ao seu lado. Ergue-se com dificuldade para alcançá-lo. Não está mais na igreja, mas em seu quarto. É como se tivesse passado a noite em claro.
Tem que tomar banho para trabalhar. Move-se como sonâmbula pela casa, se veste sem interesse. Guia até o escritório, onde a rotina se instala. Abre seu terminal e é assolada pela habitual torrente de e-mails. Alguém vem perguntar sobre o andamento do projeto. E se está se sentindo bem. Segue trabalhando, sem estar ali, ouvindo comentários cochichados ao redor, talvez a seu respeito. Não tem fome. Ao final do expediente, volta para casa. Come, toma uma aspirina e cai na cama, exausta.
Segue mais uma vez pela estrada salpicada de poças d’água que ainda não evaporaram e entra na igreja, sem cerimônia, como se a casa fosse sua. Atravessa o salão, sentindo o contato das tábuas lisas contra os pés nus. A camisola de seda verde-água é fina demais para suportar a temperatura gélida do interior. Ele continua tocando enquanto volta o rosto para acompanhar sua trajetória, como um caçador satisfeito com o sucesso da armadilha. Há apenas o piano, uma mesa de madeira sob a janela, coberta por partituras empilhadas sem cuidado. A música se choca contra seus sentidos vulneráveis com ainda mais força. Os acordes se enroscam ao redor de lembranças rememoradas, afloradas no terreno inóspito do seu coração.
“Eu te assustei ontem. Desculpe” ele murmura. Suspende, por um instante, as mãos do teclado. “Virá todos os dias?”
“Sim”, responde, como um juramento.
Ele recomeça a tocar, concentrando-se nas teclas, fazendo renascer a melodia que a seqüestra de si mesma.
“Há quanto tempo a está compondo?”
“Você sabe...” diz, sorrindo, como se a resposta fosse óbvia. “Você gosta?”
Joana respira fundo. Tem a impressão de já ter respondido àquele questionamento. A resposta que ele busca, e ecoa no silêncio do salão, pertence a outro tempo, mas está cristalizada naqueles acordes.
“Amo sua música”, verbaliza, fiel como fora antes.
Ele a encara, procurando um sentido oculto naquelas palavras.
“Me diga o que você é...” demanda. Ergue-se e contorna o piano que se interpõe entre os dois. “De onde vem? Como chega aqui?”
A proximidade a assusta. Avança mais. Seu calor a atinge. Seu cheiro a envolve. O raciocínio lampeja produzindo uma torrente de impulsos nervosos em seu cérebro, lutando contra a certeza absoluta de que aquilo não podia estar acontecendo.
“Você me chama” ela sussurra, atordoada. O ar lhe falta. “É você quem me chama...”
As mãos dele a alcançam, mas se fecham sobre o vazio.
Seu corpo se projeta para frente. Joana se segura nos lençóis. Anestesiada, cai nos travesseiros outra vez. Como pode deixá-lo agora? Olha as paredes brancas da prisão para a qual retorna. Lágrimas quentes escorrem dos olhos enquanto fita o teto chapado, a aurora se insinuando entre as cortinas. A luz nunca foi tão inconveniente e, o dia, tão mal-quisto. Deixa um recado na secretária eletrônica da empresa, simulando uma voz de gripe. Precisa voltar imediatamente. Tem que voltar ou o perderá, mais uma vez.
Dia após dia revira na cama até dormir, sem conseguir reconectar o sonho e acorda para outra manhã sem sentido. Abandona o trabalho e a vida, que prossegue indiferente do lado de fora do quarto. A música que a impelia silenciara, deixando-a mergulhada numa solidão nova, desconhecida, imersa num ecoar melódico e vazio.
Por fim, a falta de banho, a fome, a pele seca, os músculos e ossos doídos, a obrigam a sair da cama. A vida se impõe com suas exigências corriqueiras e ela a retoma, mecanicamente, retornando a uma rotina insípida. Aos poucos, a vivacidade das imagens esmaece, a música se confunde com outras melodias e os traços do rosto dele se tornam imprecisos. Seu coração desiste de reclamar sua presença e mergulha na indiferença de sempre.
Deita-se na cama, ainda com a roupa do trabalho, e aciona o controle da tv, que passa a emitir luzes intermitentes em seu rosto. Barulho e imagens inócuas preenchem o espaço do quarto escuro. Até que, entre um clicar e outro, uma imagem se destaca.
Joana se senta, num sobressalto. Seu corpo estremece. O coração dispara. Joana... ela capta. Ela se chama Joana... Uma alegria a invade ao ouvir seu nome. O músico sorri enquanto os olhos pequenos encaram o entrevistador, depois se perdem, perseguindo uma visão que só ele pode ver. A curva suave dos cabelos castanhos desce sobre suas faces. Olha em seus olhos, através do vídeo.
“É a você que dedico esse disco. Onde quer que esteja...”
Naquele instante, a vida recomeça.

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