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Maria Antonieta Figueiredo Mello |
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Tem coisa que a gente aprende cedo. Se aprende pra sempre.
Que o leite quente queima a língua. Que a tesoura corta o papel e o dedo.
Que injeção dói na bunda como palmada de arte. Que palmada injusta dói na alma.
Que a gente tem alma mas não sabe onde está.
Que a noite é escura e quanto medo ela dá. Que jogar ping-pong é só começar. Andar de bicicleta sem nunca parar. O dente está mole até a gente arrancar. Decorar tabuada com o papai pra tomar. Nos 7x8 você vai empacar.
Tem coisa que se aprende que não serve pra nada. Mas ensinamos pros outros.
Coluna dórica, coluna jônica, coluna coríntia. Não são nenhum time não. São mesmo gregas lá da Grécia Antiga.
E todas as capitais? Tem uma Sofia em Praga? Você decorou e o mundo todo mudou. Puseram Palmas no Tocantins que saiu de Goiás. Até o Rio de Janeiro mudou para Brasília. Tudo para atrapalhar a sua Geografia.
Tem as placas tectônicas. Aquelas que mandam nos terremotos da Terra. Aprendemos que existem vulcões extintos, animais extintos mas que animais agem por instinto. E gente não? É sempre racional? .
Descobriram o DNA, o genoma, pra você ter mais o que estudar.
Os planetas continuam os mesmos. Só que já estamos chegando em Marte. Não nos contentamos só com a Terra. Queremos nos meter em toda parte.
Você aprendeu as guerras púnicas e também as guerras médicas. Mas não se lembra mais, não é mesmo? Quem foi o tal de César que atravessou o Rubicão e falou: "a sorte está lançada"? E o dia do "Fico" o que era mesmo?
Depois veio o dia D e os aliados acabaram com Hitler. Inventaram a Guerra Fria, isolaram Cuba do mundo. Falaram do Mao que não era do bem. Depois derrubaram o Muro de Berlim e todos ficaram amigos de novo.
Não somos mais subdesenvolvidos porque a palavra foi censurada pela ditadura militar. Tem países alinhados. São elegantes?
Não lembro nem dos logarítmos, dos senos, dos cosenos e da tal de hipotenusa e dos catetos do triângulo. O professor de matemática apavora tanta gente com a trigonometria, mais parece um palavrão. E a tabela periódica de química?
Muita coisa sem explicação. Como se explica "enchente" com ch e "enxurrada" com x se tudo vem da chuva e das cheias com ch? Sempre cai no ditado. Mais exceções do que regras. Lembra da oração coordenada assindética? Não era reza não, era análise. Nada a ver com Freud que todo mundo diz que explica tudo. Tanta teoria que faz cem anos que estudam o coitado e todo mundo continua deitado no divã, inclusive eu.
Também estudamos Filosofia pra entender "quem sou eu, de onde vim, para onde vou". Sócrates falou o "só sei que nada sei". Adorei quando ouvi isso porque vi que não estava sozinha e que um cara tão famoso sentia toda essa ignorância. Maquiavel veio com a história "os fins justificam os meios". Em que contexto? Galileu tentou convencer o mundo que a Terra girava e quase morreu queimado. Não respondia mais nenhuma pergunta e contam que morreu dizendo: "ela move". Dá pra responder tudo?
Mas vá perguntar a seleção de 58 e os jogos que jogou. Tem gente que sabe até se jogou de amarelo ou de azul. Contra a Suécia foi de azul. Quem marcou os gols...
Pergunte as músicas que ganharam o festival da Record em 66. Empataram "Banda" e "Disparada". Torci pelo Chico e aqueles olhos verdes.
Tem coisa que se aprende e continua aprendendo. Não tem idade nem hora. Aprendi com minha filha que os verbos "aprender" e "ensinar" em muitas línguas são um só. Em russo, alemão e outras línguas nórdicas, se ensina aprendendo e se aprende ensinando.
Dar risada sem piada. Um beijo sem ser despedida. Um abraço num filho como quem não quer nada. É preciso motivo pra amar?
Porque só se aprende o que ficou gravado nesse arquivo do coração.
É o que chamam "aprendizagem significativa". Só fica o que tem valor.
O resto a gente "deleta" como arquivo de computador. Vai para a lixeira.
De repente aparece aquela ampulhetinha na tela da nossa memória e o que pensava esquecido, estava apenas descansando. Esperando a hora certa de voltar.
Diz o dicionário: órgão semelhante a um cordão, que liga o feto à placenta e lhe assegura a nutrição por meio de vasos sanguíneos durante a gestação.
E o que diz a vida ? O cordão invisível liga mãe e filho para o resto da vida.
Vínculos eternos, bélicos ou não. Umbilical ou umbelical ?
Nutrir vem do latim nutrire. Dar alimento. Desenvolver, educar, instruir.
Proteger, aumentar, alentar.
Alentar é dar ânimo, coragem, dar fôlego.
No útero quente e escuro tudo parece em paz.
Nove meses para se formar, crescer, ser amado.
Um amor incondicional. Nada pede em troca.
Dá fôlego para romper o escuro, abrir pulmões, gritar, descobrir o mundo.
Nunca mais o aconchego de antes. Tudo claro e barulhento.
Uma tesoura corta as duas vidas que eram uma.
O mundo novo, uma voz suave canta, embala.
Um seio quente nutre. Colostro único na vida nova. Tudo parece perfeito.
Um ser tão pequeno sabe quem é a mãe. Ninguém nasce mãe, já nasce filho.
As mãozinhas seguram o dedo enquanto mama. Uma maneira de dizer não me solte, não me deixe. Um sono manso no colo quente. Um novo aconchego.
Choro de fome, choro de falta, de perda. Aprende a sorrir, reconhecer as vozes. Aprende a ver. Começa a enxergar seu mundo.
O tempo passa devagar e tudo muda tão depressa.
O ser humano é único. Dependente, frágil. Precisa ser protegido sempre.
Isso é ser racional ? Pedir amor e proteção a vida inteira ? Mas aí já não é condicional ? Tem que chorar pra comer. Tem que agradar pra ser amado.
Mundo cheio de regras cruéis. Opções impossíveis. Omissões tão possíveis.
Lei do mais forte. Do mais belo. Do sábio. Do esperto.
Instinto maternal. Esse irracional. Não mede perigos e riscos.
Aprendemos com a vida. Aprendemos com os filhos que nascem.
Antes dentro de nós. Um pulsar de vida maravilhoso, inesquecível.
Cada dia aprendemos mais. Amor que transborda nas lágrimas do primeiro choro.
Transborda no leite escorrendo do seio. No segundo e terceiro e tantos choros.
Aprendemos a reconhecer todos eles. Sons de amor e de alegria.
A primeira palavra, o primeiro engatinhar, o primeiro passo.
Queremos ser os primeiros a ver e ouvir.
A primeira história, a primeira música, o primeiro gol, o primeiro mergulho.
Descobertas todos os dias. A primeira dor, a primeira perda, o primeiro amor.
Filhos nos ensinam sempre. Cada um mestre diferente. E todos do mesmo ventre.
Ensinam a olhar pra frente. Sofrer contentes. Soltar amarras. Mostrar as garras.
Não ter mais medo. Guardar segredos.
Cordão invisível. Umbilical. De amor eterno. Incondicional. Amor materno.
Eu tinha cinco anos. O terraço da fazenda parecia enorme.
Os pés para fora da rede davam o primeiro impulso.
Depois era fazer um jogo de corpo e os pés encostavam lá no teto deixando marquinhas dos dedos sujos de terra como prova do crime.
Um voar livre. Os pensamentos junto com a rede. Num ir e vir ritmados.
O preto simpático João Mole pintava as janelas do terraço.
Também no ritmo dos seus pensamentos moles, daí o apelido.
O pincel subia devagar. O pincel descia devagar.
No chão os pingos de tinta manchavam as folhas de jornal velho. Que todo pintor adora um jornal velho.
No ritmo da rede eu cantava a única música que sabia em inglês: " my bonnie lays over the ocean, my bonnie lays over the sea". Estava aprendendo a ler e já sabia escrever muitas palavras mas a música era mesmo de ouvido.
João Mole na sua voz mansa se admirou. Eu gosto do verbo admirar. "Dona Chica admirou-se". Soa bonito. João Mole admirou-se: "Mas a menina fala ingrêis?".
"É claro" respondi muito séria. Era em inglês aquela música, não era?
Eu não sabia o que queria dizer "last night I lay on my pillow, last night I lay on my bed" mas que era inglês era.
"Então fala que eu estou pintando a janela" desafiou João.
"Oh bring back, oh bring back, oh bring back my bonnie to me, to me"
"Meu Deus e não é que ela fala mesmo ingrêis..."
Minha alegria ia e voltava no ritmo da rede. Orgulhosa com minha arte inocente.
A notícia correu a fazenda. A menina fala inglês.
No dia seguinte na hora do almoço, vovó perguntou: "Que história é essa que você anda falando inglês por aí, minha filha?"
"Vó, eu só brinquei com o João Mole, o pintor"
"Pois agora ele pinta as janelas cada vez mais devagar e não pára de falar: oh bring back, oh bring back, oh bring back my bonnie to me, to me..."
Anos mais tarde os Beatles gravaram essa música, um belo rock na voz do Paul MacCartney inconfundível. Toda vez que eu ouvia lembrava dos pingos de tinta no jornal velho do João Mole pintando as janelas vermelho e brancas da fazenda do vovô.