© Wolfgang Kurt Schrickel, 29/8/1997
http://www.oocities.org/WallStreet/Floor/2311
Com efeito, as alterações introduzidas com a nova Lei das S.A.’s tratam majoritariamente de questões societárias, objetivando eliminar os resquícios das ações ao portador e das ações endossáveis, além de aumentar a proteção dos acionistas minoritários. À luz das aquisições, fusões e incorporações de empresas ocorridas nos últimos tempos, sobretudo no setor bancário, estas preocupações são importantes. Contudo, perdeu-se uma excelente oportunidade para uma revisão da questão da publicidade e, mais que isso, da veracidade intrínseca das demonstrações financeiras. Acredito que nos dias atuais, mais que nunca, acionistas, fornecedores, bancos e o público em geral, têm enorme interesse em poder ler e entender as demonstrações, objetivando poder avaliar a saúde financeira da sociedade. Os recentes exemplos da Casa Centro, Banco Nacional e Encol, para citar pouco, cujas demonstrações financeiras estavam muito longe de demonstrar a sua real situação econômico-financeira, são mais que eloquentes.
No tocante às Demonstrações Financeiras, a única alteração de relêvo introduzida pela nova Lei foi a desobrigação da publicação da Demonstração de Origens e Aplicações de Recursos-DOAR pelas companhias fechadas (ações não negociadas em Bolsas de Valores), cujo patrimônio líquido não ultrapasse um milhão de reais (art. 176).
Leasing, Garantias a Coligadas, Securitização de Dívidas e Derivativos
A globalização da economia tem estimulado, em grande medida, a formação de complexos conglomerados econômicos em todo o mundo, o que enseja uma melhor integração de atividades complementares e, sobretudo, a redução dos custos de produção e distribuição. Assim, não raro, empresas bem capitalizadas, ou mais fortes financeiramente, garantem os empréstimos concedidos a empresas recém-criadas ou, de resto, mais fracas financeiramente. Estas garantias, por meio de avais diretos em operações de crédito ou através de cartas de garantia (Guarantee Letter, Support Letter, Carta de Garantia, etc.) não são registráveis no passivo da empresa garantidora nos seus balanços no Brasil, limitando-se, mais uma vez, à mera referência nas Notas Explicativas (se for companhia aberta).
Embora as operações de empréstimos bancários garantidos pela caução de títulos de crédito (duplicatas a receber), comumente chamadas de Contas Vinculadas, sejam praticadas há muitos e muitos anos no Brasil, o conceito de Securitização é relativamente recente. A Securitização, entre outras formas possíveis, é a vinculação de garantias futuras, geralmente na forma de recebíveis (duplicatas a receber ou, em especial, saques de exportação futuros), a uma operação de empréstimo efetuada num dado momento. A empresa tomadora do empréstimo celebra o contrato com o emprestador, comprometendo entregar, em data futura, e por determinado período de tempo, os documentos comprobatórios de vendas futuras, cujos recursos serão utilizados pelo emprestador para o recebimento do seu crédito. Este compromisso não é registrado no balanço da empresa devedora, limitando-se, talvez, à mera citação nas Notas Explicativas (se empresa aberta). Atualmente, apenas as Duplicatas Descontadas são registradas no balanço, na forma dedutiva (conta retificadora) do Ativo Circulante, eis que a empresa já recebeu antecipadamente (em relação ao prazo concedido aos clientes) os recursos das suas vendas a prazo.
Toda e qualquer empresa precisa, obviamente, rentabilizar os recursos mantidos em Caixa, assim evitando a corrosão inflacionária. Durante muito tempo tal ocorria por meio das conhecidas aplicações no mercado aberto, as chamadas operações overnight. Muitas empresas e indivíduos limitavam-se à aplicação de recursos em depósitos a prazo (CDB-Certificado de Depósito Bancário ou RDB-Recibo de Depósito Bancário). Quando o mercado do dólar paralelo (o conhecido black) oferecia enorme atrativo, muitas empresas (e indivíduos) mantinham reservas monetárias na forma do dólar norte-americano. Contudo, paralelamente a questões tributárias específicas (IOF, CPMF, etc.), o mercado financeiro tem-se sofisticado de forma impressionante nos últimos anos, o que enseja, hoje, uma multiplicidade de opções de investimento envolvendo mercados futuros (fundos, índices, ouro, Bolsa de Mercadorias, dólar, etc.), os quais, no conjunto, configuram os chamados Derivativos. A questão crítica, é saber “como?” e “por quanto?” estas aplicações financeiras foram registradas na contabilidade da empresa. A questão é particularmente importante na análise das demonstrações das instituições financeiras. Ressalvadas estas últimas, que têm que seguir as normas do Banco Central, não existe na Lei das S.A.’s normas específicas relacionadas à escrituração das aplicações efetuadas na forma de Derivativos.
Tanto a Lei n° 6.404/76, quanto a Lei n° 9.457/97 previlegiam o aspecto temporal e não o aspecto operacional dos saldos das contas inclusas nas demonstrações financeiras (aquilo que efetivamente faz parte do ciclo operacional da empresa). A preocupação recai sobre a conversibilidade dos ativos ou exigibilidade dos passivos. Se tal estiver previsto para ocorrer ao longo do próximo exercício social (360 dias), o balanço tratará aquela conta como Ativo Circulante ou Passivo Corrente. Se não, a conta será incluída na parte reservada para o Longo Prazo. Em conseqüência, e sobretudo em demonstrações não auditadas, as empresas são extremamente liberais no tocante aos ativos, e essencialmente conservadoras quando se tratar de passivos (incluir o máximo de contas no grupo circulante do Ativo, e o mínimo possível no grupo circulante do Passivo).
Tomemos por exemplo, uma empresa que produz palitos de picolé. Digamos que a empresa possui um terreno e que deseja se desfazer dele, colocando-o à venda e que, em verdade, o imóvel está à venda há três anos, sem que tenha aparecido um comprador realmente interessado. Nada impede que este ativo, que nada tem de operacional (a empresa fabrica palitos de picolé), seja incluído no Ativo Circulante. Quem decide isso não é nem sequer o contador da empresa, mas o seu proprietário.
O mesmo ocorre, por exemplo, com as contas Adiantamento a Funcionários ou Almoxarifado (quando este registra os materiais utilizados nos serviços de manutenção, limpeza ou combustíveis para a frota de veículos). Os valores registrados nestas contas não reverterão, de fato, para o Caixa da empresa. Embora os adiantamentos aos funcionários sejam deduzidos da próxima folha de pagamentos, a realidade é que a empresa voltará a concedê-los no mês seguinte, tratando-se, pois, de uma imobilização permanente de recursos. Os valores registrados em Almoxarifado ou Combustíveis também não serão recebidos. Afinal, a empresa não vende materiais de limpeza ou combustíveis. Ela utiliza estes bens na medida das suas necessidades, apropriando os valores nas contas de despesas.
No tocante aos Impostos Faturados e as Despesas Financeiras, a legislação também deveria repensar o seu tratamento na Demonstração de Resultados do Exercício. O conceito de Receita Operacional Líquida (Vendas Líquidas) deveria contemplar tão somente a Receita Operacional Bruta, deduzidos os Abatimentos e Devoluções, mas incluindo os Impostos Faturados. Afinal, os impostos fazem parte do preço de venda e eles estão incluídos nas Duplicatas a Receber, caso as vendas sejam a prazo, ou diretamente no Caixa, no caso de vendas a vista. Tal decorre do fato de a empresa não repassar de imediato, no ato, os impostos para o Estado, permanecendo com eles no seu giro por algum tempo. E quantas empresas não existem que simplesmente calculam os impostos sobre as vendas, mas não os recolhem nos devidos prazos? Já no tocante às Despesas Financeiras, elas não são operacionais na sua essência. Se o negócio da empresa é produzir palitos de picolé, o seu objetivo certamente não é o de pagar juros a bancos. De outra parte, as Despesas Financeiras são conseqüência (a) da adequação do ciclo operacional ou (b) da estrutura patrimonial da empresa (recursos próprios x recursos de terceiros).
Por fim, a Demonstração de Origens e Aplicações de Recursos-DOAR deveria ser substituída pelo Fluxo de Caixa, tal como ocorre nos Estados Unidos, desde 1987, em decorrência do FAS 95. Esta demonstração seria muito mais elucidativa sobre a geração e utilização de Caixa pela empresa durante o período demonstrado. Em verdade, a DOAR mascara o fluxo de fundos da empresa por sua própria mecânica de construção (de baixo para cima, isto é, apresentando a variação das contas dos grupos não-circulantes, para evidenciar a alteração do Capital Circulante Líquido). Enquanto a DOAR meramente demonstra a variação do Capital Circulante Líquido por diferença entre dois exercícios, o Fluxo de Caixa demonstra todos os ingressos (origens) e todos os usos (aplicações) que efetivamente afetaram o Caixa da empresa no período, daí oferecendo uma melhor percepção sobre a habilidade gerencial de sua administração.
O fato é que todos estes aspectos podem introduzir profundas diferenças de avaliação e interpretação dos demonstrativos de duas empresas atuantes num mesmo setor econômico. Por exemplo, se uma destas empresas valer-se de operações de leasing, enquanto a outra atua com máquinas e equipamentos próprios, a comparação estará, de princípio, bastante comprometida. O mesmo ocorre em relação a garantias prestadas (que comprometem potencialmente o passivo da empresa garantidora), securitização de empréstimos, aplicações de recursos na forma de derivativos e a inclusão de ativos não essencialmente operacionais no Ativo Circulante. A comparação de empresas, nestas condições, passa a ser um exercício meramente acadêmico, tornando pouco eficazes as estatísticas setoriais. Isto é particularmente importante, tendo em vista as profundas alterações no modus operandi das empresas em geral ao longo dos últimos anos (terceirização, franchising, reengenharia, just-in-time, etc.).
Auditoria
Já de longa data os emprestadores, sobretudo bancos e fornecedores, baseiam grande parte de sua decisão de conceder crédito em demonstrações financeiras transcritas em autênticos “papéis de pão” (papel barato, de padaria), sem maior valor legal. Não raro, sobretudo em pequenas empresas, os balanços contém apenas a assinatura do técnico responsável por sua elaboração (técnico de contabilidade ou contador, com nível superior), não constando a identificação e assinaturas dos proprietários da empresa.
Ainda que os Conselhos Regionais de Contabilidade façam fiscalizações e autuações diuturnas, eles simplesmente não têm estrutura para estar em todos os lugares, em todos os momentos. Afinal, existem cerca de 4,5 milhões de empresas no Brasil.
A questão passa pela herança cultural (associação, indevida, da figura do emprestador, sobretudo quando for um banco, com a figura do fiscal de rendas do passado) e a expressiva parcela da informalidade existente em nossa economia (cerca de 50%, conforme estimativas), de índole nitidamente fiscal (sonegação). A coisa está, mais ou menos, na base de “faz de conta que eu recebo o seu balanço; faz de conta que eu analiso; faz de conta que eu empresto; faz de conta que você paga, e assim por diante”. Até quando isto pode perdurar? Mais uma vez, como inserido em outros artigos, ressalta a importância fundamental das reformas fiscal, tributária e da previdência, atualmente em andamento.
Recentemente, o mercado sofreu forte impacto por algumas “quebras” de empresas, cujos balanços pouco, ou nada, retratavam a sua real condição econômico-financeira. Isto afeta o mercado como um todo. Os grandes credores sempre têm meios para minimizar prejuízos em razão de seu maior poder de barganha, maior conhecimento, situação econômico-financeira mais forte, etc. Mas, e os pequenos credores? A rigor, são os grandes credores, e em especial, os bancos, que determinam o grau de perdas dos pequenos. É uma espécie de “cada um por si” ou, “quem pode mais, chora menos”. Infelizmente, ainda não existe no Brasil a cultura habitual do ”consórcio de credores” (sindication), a não ser em raríssimos casos isolados, em que os credores se reúnem para encontrar soluções criativas para sanear a empresa devedora e que está em situação de grave desequilíbrio financeiro. Isto é muito comum em outros países. Aqui, cada um procura receber o seu quinhão ou reforçar as suas garantias, dentro da mais pura “Lei de Gerson”. Se todos os credores quiserem fazer o mesmo, o devedor simplesmente não tem fôlego, e acaba quebrando de vez.
A propósito, é extremamente injusta a associação da idéia da “Lei de Gerson”, que nasceu de uma propaganda de marca de cigarro, com o grande meia-direita da fabulosa seleção tri-campeã mundial no México em 1970. Hoje, excelente comentarista de televisão, Gerson foi um dos mais talentosos jogadores de futebol em sua época, tendo sido um dos poucos capazes de efetuar lançamentos de 50 metros e irradiar motivação e garra para toda a equipe.
E qual é a realidade em outros países? Valemo-nos de um estudo de Charles Holland e Elso Raimondi, intitulado “Importância e Abrangência da Auditoria Estatutária na Ética dos Negócios”, Ernst & Yound Auditores, publicado na Folha de São Paulo em Agosto de 1995.
O quadro mostra países muito menores que o Brasil, em que o número de auditores independentes certificados é substancialmente maior do que em nosso país, e nos quais a obrigatoriedade da auditoria abrange todas as empresas.
Não chego ao exagero de cogitar de que todas, e absolutamente todas, as empresas sediadas em nosso país devam submeter seus balanços a uma auditoria externa compulsória, até porque uma esmagadora maioria dos empreendimentos existentes no Brasil são constituídos de micro e pequenas empresas. A auditoria externa implica num aumento de custos, e simplesmente não existem auditores suficientes. Contudo, é perfeitamente previsível que alguma coisa poderá vir a ser alterada neste sentido, já que, no âmbito do Mercosul, a Argentina já obriga a auditoria de todas as empresas sem exceção. Considerando que balanços incorretos (adulterados deliberadamente ou não) podem estar encobrindo questões fundamentais relacionadas a preços e custos das empresas brasileiras, isto pode eventualmente vir a afetar o grau de competitividade das empresas atuantes no Mercosul, com o que os parceiros do acordo de livre comércio da área poderão forçar alterações na legislação brasileira.
Como o artigo 176 da nova Lei das S.A.’s desobriga a publicação da DOAR das companhias fechadas com patrimônio líquido não superior a um milhão de reais, acredito que este mesmo patamar poderia ser a baliza divisora da obrigação da submissão dos balanços à auditoria externa. Assim, toda e qualquer empresa, com ações negociadas em bolsa ou não, na condição de S.A. ou Limitada, com patrimônio líquido igual ou superior a um milhão de reais teria, forçosamente, que submeter suas demonstrações a uma certificação por auditores externos. Posteriormente, tal obrigatoriedade poderia ser ainda mais ampliada. Com toda certeza, um expressivo número de empresas seria enquadrada na nova obrigação, daí aumentando a credibilidade de seus balanços.
O objetivo dessa medida não é a de aumentar os custos operacionais das empresas, pura e simplesmente, mas dar efetiva aplicação ao conceito atual de full disclosure (transparência) das demonstrações. Isto só viria contribuir para uma maior segurança dos agentes que se relacionam com a empresa, sejam eles fornecedores, bancos ou acionistas. Sob outra ótica, o que não pode continuar a ocorrer é a admissibilidade de “balanços de mentirinha”, que apenas objetivam atender requisições protocolares. Entendo que, da mesma forma que uma fotografia é peça fundamental para a identificação de um indivíduo, por exemplo, numa carteira de identidade, o balanço é instrumento primordial para a avaliação da saúde econômico-financeira de uma empresa. Ela se relaciona com o mundo exterior, fornecendo bens e serviços, e buscando recursos para desempenhar o seu objetivo social. Nada mais justo que seus balanços sejam, no mínimo, essencialmente verdadeiros e confiáveis. Espero que atinjamos este estágio em breve.
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