Alexandre Barbalho - "O Estado pós-64: intervenção planejada na cultura" - P & T 15 - set/1999

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Política e Trabalho 15 - Setembro / 1999 - pp. 63-78


O ESTADO PÓS-64:
INTERVENÇÃO PLANEJADA NA CULTURA

Alexandre Barbalho (1)


Observando as relações entre Estado e cultura no Brasil é possível localizar o momento de nossa história no qual ocorre, pela primeira vez, a intervenção sistemática e planejada do Estado no campo cultural: o período do regime militar instaurado no país com o Golpe de 1964.

Preocupadas em garantir a integração da Nação, as elites dirigentes percebem a cultura como elemento central na garantia da nacionalidade. Outro motivador da presença estatal na cultura é a existência, principalmente a partir dos anos 70, de uma forte indústria cultural em crescimento no país.

Esses elementos interferem profundamente na forma como o Estado lidará com os intelectuais, o que resultará na tentativa de planejamento das intervenções culturais em planos nacionais.

No entanto, a sistematização das políticas culturais não implica que o Estado tenha alcançado o pleno controle sobre a produção cultural, ou muito menos imposto sua ótica a esta. A presença dos governos militares na cultura é marcada pelas relações de força entre intelectuais e artistas dentro do campo cultural. Ou seja, entre aqueles que participam, direta ou indiretamente, da política cultural do Estado, os que a rejeitam e conformam-se com o mercado privado e os que, além de rejeitarem o espaço estatal, negam também o privado, propondo um circuito alternativo de produção, circulação e consumo cultural.

O resultado de todas essas inter-relações está bem longe da homogeneidade e do imobilismo, o que exige do observador um olhar atento às constantes transformações da situação, fugindo de leituras reducionistas e estereotipadas.

INTEGRAR A NAÇÃO, INTEGRANDO A CULTURA

A partir do Golpe Militar, em 1964, ocorre uma reorganização econômica e política do país, na qual o Estado procura operar dentro de uma lógica cada vez mais planejada. Num primeiro momento, percebe-se esse planejamento na política econômica. Depois, ele se estende a outras áreas da ação do Governo.

No plano da cultura, a preocupação do regime militar passa pela perspectiva de um mercado de bens simbólicos unificado e de uma nação integrada cultural e politicamente. De fato, o Estado brasileiro preocupa-se em criar uma rede de comunicação ligando todo o país, ao mesmo tempo em que a indústria cultural cresce num ritmo vertiginoso, principalmente nos anos 70. Com isso, pretende alcançar uma uniformidade nas informações que circulam no território nacional, padronizando a cultura e seu consumo diante das diversidades regionais.

Nesse momento, adequa-se à sociedade brasileira a caracterização da sociedade autoritária, trabalhada por Chauí (1986: 53). Ou seja, uma sociedade [fim da página 63] que produz uma ideologia da união nacional como forma de neutralizar as contradições. Com isso, a cultura popular, elemento central dessa ideologia, é apropriada pela classe dominante através de determinada visão do nacional-popular que remete à representação de uma sociedade unificada. O nacional reforça a identidade diante do que vem do exterior, enquanto o popular atua nesse mesmo reforço, no interior do país. A junção das duas instâncias ocorre através do Estado. Compreende-se, então, porque a consolidação nacional se constitui, no regime militar, em políticas culturais do "Estado para o Estado" (2).

Uma forma encontrada para viabilizar a unificação da política cultural é a promoção de encontros nacionais de cultura, nos quais participam representantes culturais de todos os Estados da Federação. No Encontro de Secretários de Cultura realizado em julho de 1976 em Salvador, por exemplo, o tema central é "Política Integrada de Cultura". Os encontros nacionais de cultura estão inseridos naquela busca pelo poder de alcançar o monopólio de interpretação do país, apontada já na época por Octavio Ianni (1978: 217). A cultura passa, então, a ser estimulada, desde que sob o controle do poder nacional.

O CONSELHO FEDERAL DE CULTURA
E O PENSAMENTO CONSERVADOR

Após o Golpe, o Governo necessita de uma política para tentar impor sua posição às outras forças atuantes no campo cultural. Nesse sentido, é preciso lembrar a grande efusão intelectual, marcadamente de esquerda, pela qual passava o país no início dos anos 60. Como apontam Coutinho (1979: 41) e Hollanda & Gonçalves (1986: 20), o período populista de 1945/1964 permitiu a formação de uma geração de intelectuais e artistas engajada nas questões do desenvolvimento e da emancipação nacional. De modo que, em 1964, os militares encontraram um ambiente intelectual profundamente hostil e de oposição ao regime, que era preciso neutralizar.

Por outro lado, o Estado militar não pretende restringir-se a uma ação repressora na cultura. Há o interesse em atuar na área, como forma de colocá-la sob sua orientação, justamente por perceber a dimensão e a força política da produção simbólica. Dessa forma, é criado em 1966 o Conselho Federal de Cultura (CFC). O CFC reúne intelectuais renomados, de perfil conservador, e escolhidos entre instituições consagradas, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Academia Brasileira de Letras. Intelectuais bastante próximos ao poder e que participam ativamente, inclusive, da criação do Conselho. A criação do CFC corresponde à necessidade do regime de elaborar uma determinada visão de cultura mais adequada aos seus interesses. Em outras palavras, a sua função pode ser entendida como a de defesa da "cultura legítima", segundo a ótica estatal, contra seus concorrentes capazes de motivar práticas contestatórias.

[fim da página 64]

Os intelectuais reunidos em torno do CFC optam por trabalhar dentro de um plano nacional, entendido como a melhor forma de divulgar a "cultura legítima" para todo o país, como aponta a elaboração das Diretrizes para uma Política Nacional de Cultura em 1973. As Diretrizes foram fundamentais no longo processo de gestação que resultaria na Política Nacional de Cultura (PNC) dois anos depois, como veremos.

Sobre o papel do CFC, elaborando uma política cultural adequada ao regime, Cohn afirma que o Conselho representava as forças de retaguarda do Estado na luta do campo cultural da época, enquanto "na linha de frente se travava uma batalha mais árdua para desbaratar as forças adversárias e neutralizar a sua produção, com vistas a assumir o controle do processo cultural no passo seguinte" (Cohn, 1984: 88).

Estudando o CFC, Maria Madalena Quintella (1984: 121) percebe nessa instituição uma formação que a caracteriza como grupo social, ou seja, pessoas reunidas não só burocraticamente e aleatoriamente em torno de um trabalho, mas que possuem unidade e coesão interna. Nesse sentido, o principal elemento unificador do CFC é a reverência ao passado, legitimando e explicando a ação presente e respaldando a posição desses intelectuais dentro do Conselho. O forte apelo ao passado, com um viés conservador, é fundamental na própria direção que o CFC dá à sua concepção de política cultural.

Com isso, o Estado alcança também uma continuidade com o passado, e o golpe apresenta-se não como uma ruptura, mas como a continuação com as raízes de um pensamento já estabelecido sobre a cultura nacional (3), principalmente nos anos do Estado Novo. Ou seja, é função desses intelectuais traçar um passado brasileiro propício ao regime militar e transformá-lo em "tradição".

Podemos perceber, assim, a responsabilidade do CFC dentro do Ministério da Educação e Cultura. Espaço que se mantém mesmo com a entrada de novos agentes no campo cultural estatal, os técnicos culturais, que vêm resolver o problema da relação entre Estado, cultura e desenvolvimento, entre governo, arte e mercado.

O ESTADO, A CENSURA E O MERCADO CULTURAL

Antes de observarmos a atuação dos técnicos culturais, temos que compreender a especificidade do mercado cultural e sua relação com Estado, pois há uma diferenciação entre mercado de bens materiais e de bens simbólicos, que reflete-se nas políticas estatais. Como esclarece Ortiz (1989: 114), o mercado de bens culturais traz consigo uma dimensão simbólica que remete a elementos ideológicos, presente nos próprios produtos veiculados, o que os difere dos outros bens. O controle dessa espécie de mercadoria era feito, principalmente, através da censura.

Durante o regime militar, portanto, os bens de consumo material são estimulados sem restrições, enquanto que os bens culturais crescem nos limites [fim da página 65] impostos pelo pensamento autoritário. Isso porque a censura não possui apenas o aspecto negativo. Ela não caracteriza-se por inviabilizar o produto cultural em si. A censura age de forma seletiva, ou seja, incidindo sobre aquela mercadoria, nas mais diversas áreas culturais, que vai de encontro aos interesses ideológicos do Estado. A produção que não apresenta "riscos" pode circular normalmente.

Por outro lado, a tentativa de orientar a cultura no país durante os vinte anos do regime militar não conhece somente a censura como linha de atuação. Ela é bem mais complexa, como veremos. Vale adiantar que a diversidade de estratégias não significa que o Estado tenha conseguido o controle total sobre os produtores culturais. Isso nunca ocorreu, nem mesmo nas instituições governamentais de cultura que foram, em muitos momentos, locais de resistência e denúncia ao governo. Mário Machado (1984:10), por exemplo, afirma que no período do regime militar existia uma certa autonomia por parte dos órgãos culturais do governo. Autonomia ampliada através de alguns setores, que perceberam nesses órgãos campos de luta política, possibilitando a conquista de espaços.

Paralelo ao papel do Estado e em ligação com este, ocorre o desenvol-vimento da indústria cultural, que corresponde à necessidade de um crescente mercado consumidor de bens simbólicos. A partir dos anos 60, o volume de produtos simbólicos se multiplica. Ao mesmo tempo, passa por um processo de diferenciação, acompanhando a crescente segmentação do público. Como aponta Ortiz (1989: 121), durante o regime militar se consolidam as grandes empresas de comunicação de massa e da indústria cultural, empresas marcadas pelo capital estrangeiro, configurando-se numa área quase exclusiva das multinacionais. Temos, assim, os dois grandes investidores na cultura pós-64: o governo e as multinacionais.

Fixar essa dimensão econômica é necessário para compreendermos o outro lado da presença estatal na cultura. Presença que não tinha somente o sentido estritamente ideológico, mas que também estava interessada no desenvolvimento econômico do país, do qual o mercado de bens simbólicos representava uma falta considerável e em expansão.

A indústria cultural assume, por sua vez, papéis que transcendem o meramente econômico. Ela reforça, como mostra Certeau, o postulado de passividade das massas, necessitadas de uma elite dirigente:

"Atenho-me aqui somente a um 'modelo' cultural: a idéia (...) de que um fenômeno de massa se explica pela ação de uma elite; de que a multidão é por definição passiva, arregimentada ou vítima, segundo os 'líderes' desejem seu benefício ou dele se desinteressem (...) A partir de então, a política do mass media parece ampliar, mas não modificar, essa concepção social da relação entre a elite e a massa" (Certeau, 1995: 166-167)

No caso brasileiro, como observa Moniz Sodré (1984: 140), a indústria cultural serve para forjar um controle sobre as massas, e é oferecida às diferentes camadas sociais na forma de "democratização" do acesso à cultura. A idéia de "organização pela cultura de massas" vai influenciar diretamente a política [fim da página 66] cultural do Estado, quando essa começa a valorizar a massificação e o consumo dos produtos culturais promovidos pelo governo. A industrialização da cultura e seu planejamento, segundo valores econômicos, transformam-na em espetáculo, e o "povo", em "público".

No campo da cultura, portanto, o Estado desenvolve o papel fundamental de organizador e dinamizador. Flora Sussekind (1985) aponta no mínimo três estratégias diferentes de atuação cultural utilizados pelo Estado: a "estética do espetáculo", com o expansionismo da televisão controlado pelo Estado levando às massas entretenimento e lazer; a repressão e a censura, acompanhadas de um plano de cultura; e a cooptação dos intelectuais e artistas. Longe de se excluírem, as estratégias se completam e são utilizadas em conjunto. No entanto, em determinados momentos, uma pode receber mais incentivo que as outras.

Na medida em que investe de diversas formas na área, a política estatal assume uma presença inquestionável na produção e no mercado culturais. Como sugere Heloísa Buarque de Holanda (1980: 91), o Estado, que até então não tinha fornecido alternativas para a produção cultural, passa a financiar as "manifestações de caráter nacional" dentro das exigências do mercado.

A "onipresença" do estado na cultura, de certa forma, levou a um conflito com o setor privado. Mais do que no papel de investidor cultural, as divergências ocorrem quando das outras funções do Estado, que são as de regulamentador e de censor. O Estado implementa a censura, bem como a repressão, para viabilizar uma política de livre empresa, porém são essas instituições que, num determinado momento, dificultam a ação dos investidores. Estes, em várias ocasiões, vêem seu investimento inviabilizado, total ou parcialmente, pelos órgãos censores. Ou seja, o conflito, quando ocorre, quase nunca é por questões políticas, mas por motivos econômicos - o produtor cultural que fica impossibilitado de vender seu produto. Acatar, dentro de certos limites, a censura, é o preço pago pela iniciativa privada para atuar no mercado cada vez mais promissor dos bens simbólicos.

Dessa forma, o confronto entre setor privado e estatal nunca vai às últimas conseqüências, pois o primeiro sabe o quanto o segundo promove o mercado. Até porque o Estado procura investir na esfera da cultura popular ou de elite, deixando o setor mais lucrativo da cultura de massas para os empresários. Ou, então, atuam em conjunto. Devemos lembrar como o Estado garantiu a infra-estrutura para a instalação das redes nacionais de televisão.

Ou seja, a "construção institucional" do Estado militar na cultura ficou quase que limitada às áreas de mercado restrito e dependentes de uma produção artesanal (música erudita, artes plásticas, teatro etc.). Como aponta Miceli (1984 b: 102), motivado por uma tendência "conservacionista" ou "patrimonialista", o estado assume o papel de protetor do acervo histórico e artístico nacional e dos gêneros que só conseguem sobreviver com o apoio governamental.

Contudo, com uma atuação mesmo que limitada na indústria cultural e participando indiretamente do setor, o governo precisa de especialistas para atuar neste campo, que foge à competência dos intelectuais conservadores do CFC. Nesse momento, entram em cena os técnicos culturais que citamos anteriormente.

[fim da página 67]

O INTELECTUAL CONSERVADOR E O TÉCNICO CULTURAL:
DUAS VISÕES DE POLÍTICA PARA A CULTURA

Os intelectuais do CFC, por sua formação tradicional, viam com desconfiança o discurso tecnocrático defendido pelo governo e a atenção concedida à indústria cultural. Para tentar livrar-se da massificação inerente à técnica, os intelectuais do CFC procuram diferenciar a personalidade cultural brasileira através da valorização da cultura popular, em detrimento da cultura de massa.

Porém, o confronto entre cultura e técnica é sinal de descompasso entre os intelectuais tradicionais e o regime militar. Apesar da afinidade ideológica em torno do conservadorismo, o golpe de 64 não é apenas um movimento político. Ele propõe profundas mudanças na organização do capitalismo brasileiro. O humanismo dos intelectuais do CFC não encontra muito espaço num Estado preocupado em planejar a economia. Diante do fato, o regime procura filtrar as idéias desses intelectuais, adotando algumas, como é o caso do popular como paradigma da cultura brasileira, e descartando outras.

No momento de elaborar um plano nacional de cultura, o Estado convoca um outro tipo de intelectual, que apresenta uma ligação mais orgânica com a ideologia do regime: os administradores. A presença desses técnicos garantiria para o plano um olhar "econômico" ao lado do olhar "humanista" dos intelectuais do CFC. A esse respeito, cabe lembrar a observação de Gramsci:

"...cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência de sua própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político." (Gramsci, 1985: 03-04)

Dessa forma, podemos compreender, tal como ocorrera em outros setores governamentais, a constituição de um grupo de dirigentes para a atividade cultural que, apesar de incluir alguns intelectuais ligados ao CFC, é formado basicamente por administradores profissionais e será o principal responsável pelos projetos no setor. Estes técnicos-intelectuais, defensores dos interesses do estado, formam a elite burocrática que se contrapõe aos intelectuais conservadores, que pecam pelo "intelectualismo em demasia".

Podemos ver, na separação entre intelectuais conservadores e técnicos culturais, os dois tipos de intelectuais apontados por Noberto Bobbio (1996: 73): os "ideólogos" e os "expertos". Os primeiros legitimam as ações estatais, conformando-as aos princípios "guiadores" da nação. Os "expertos" indicam os meios mais adequados para alcançar os fins, racionalizando a ação.

Podemos perceber também, nesses especialistas ou técnicos culturais, a caracterização do que Marilena Chauí (1989: 07) denomina de "discurso competente". Segundo Chauí, o "discurso competente" é aceito como verdadeiro porque perdeu as referências de suas origens. É um discurso instituído, ou seja, indissociável da posição legitimada do enunciante: alguém fala algo a outro alguém em determinado local e circunstância, onde toda essa cadeia é [fim da página 68] devidamente autorizada por esse poder.

Contudo, é possível argumentar que essas são características de todo discurso que fala em nome de um poder constituído. Nesse ponto, os intelectuais do CFC em nada diferem dos administradores culturais. Eles também possuem um discurso competente. Porém, ele não corresponde a determinados desejos nutridos pela tecnocracia governamental - as metas desenvolvimentistas.

Aí é que os dirigentes culturais entram em cena. A diferença está no lugar do poder de onde falam, qual sua força dentro do projeto estabelecido. E esse poder, em nome do qual falam os administradores culturais, representa o poder predominante na nova ordem instalada pela ditadura, o da burocracia amparada pela idéia de organização. Em outras palavras, a presença desses administradores representa a chegada, na cultura, do processo de racionalização, que implica numa tecnoburocracia em busca de organizar e sistematizar as ações estatais na área, com vistas ao mercado.

São os administradores que irão valorizar aquelas áreas sempre desprezadas pelo CFC: a distribuição e o consumo. Enquanto os intelectuais tradicionais pensam uma política de cultura baseada na preservação do patrimônio, os técnicos envolvidos com os órgãos culturais procuram pensar dentro da lógica do mercado. É o que Miceli (1984 a: 59) denomina de luta entre a visão "patrimonial" e a "executiva".

Para os técnicos culturais, era necessário uma política de promoção, produção e distribuição de novos bens culturais, possibilitando o seu consumo. Nesse ponto, a lógica do mercado se une ao discurso da "democracia", uma vez que, estabelecido o mercado cultural, coloca-se à disposição do público vários bens possíveis de ser consumidos. Para o Estado, "democratizar a cultura" passa a significar o consumo de bens culturais. O resultado é que o nível quantitativo desta consumação, independente da qualidade dos produtos, passa a ser critério de avaliação da própria política cultural.

Porém, Edgar Morin depõe contra o "desenvolvimento" e a "democratização" culturais, via cultura de massa, e aponta seu caráter mitificador:

"O saber sobre o qual se funda a cultura de massas é aparentemente um 'mosaico'(...) é constituído por um agregado de informações não ligadas entre si (...). O código é pobre, porque se trata, para a indústria cultural, de comunicar-se com o público mais vasto possível (...).
Aqui, vamos desembocar no problema do desenvolvimento cultural. Se este desenvolvimento visa a estender quantitativamente o setor de influência da cultura ilustrada, isto restringe singularmente a política e o desenvolvimento culturais (...).
É, pois, uma simbiose parasitária antagônica a que se constitui hoje em dia entre a cultura e seu amigo-inimigo protetor-sufocador que lhe dá vida e asfixia: o estado-providencial, os grandes poderes constituídos.
No estado-providencial, as camadas dirigentes tecnocráticas hoje têm necessidade de considerar em seus programas de desenvolvimento material um desenvolvimento perfumado de espiritualidade que seria
[fim da página 69] o da cultura." (Morin, 1981: 101-102)

Assim, dentro desse "desenvolvimento perfumado" da cultura, o CFC teria uma função normativa de elaborar um pensamento que desse conta da especificidade do "Ser Brasileiro". Aos administradores cabia a função de criar programas de ação cultural legitimados por esse pensamento, porém viáveis dentro da lógica do mercado.

De qualquer modo, a presença dos intelectuais, tradicionais ou técnicos, é que permite a ligação entre a "cultura do povo", em sua essência diversificada, e a "cultura nacional", que precisa ser unificada, para cumprir seus papéis ideológicos de identidade e integração da nação. Não há um conflito radical entre os dois tipos de intelectuais e suas atuações. Na realidade, ambos apresentam propostas que são, no fundo, partes de um mesmo sistema.

Como lembra Bobbio (1996: 74), a realidade não é uma esfera onde podemos criar dois pólos que se excluem totalmente. Dessa forma, conclui, a divisão entre "ideólogos" e "expertos" não é tão clara, como também não é fácil distinguir as discussões concretas de cada um.

POLÍTICAS NACIONAIS DE CULTURA

A preocupação do governo militar com a cultura, como podemos observar, vem desde os primeiros momentos de sua instauração, ao contrário dos governos imediatamente anteriores, mais preocupados com a área da educação. O presidente Castelo Branco afirmava que a "revolução" não seria completa se não tocasse nos "problemas da cultura nacional".

A presença do regime na cultura tem várias motivações: integração nacional de acordo com a ideologia de Segurança Nacional; questões de mercado; preocupação em neutralizar a produção crítica do meio intelectual; e, ao mesmo tempo, promover uma outra mais adequado ao regime. Todas elas apontam para a necessidade dos militares de legitimar o governo não apenas através da coerção, mas também pelo consenso. O que implicava um ordenamento da sociedade inteira. Na definição de Canclini (1985: 158), o Estado pós-1964 amplia sua interferência na sociedade civil de modo "quase gramsciano".

Na tentativa de exercer o controle sobre o campo cultural, o Estado necessita construir espaços onde possam ocorrer suas promoções. O que se comprova com a criação do Conselho Federal de Cultura e do Instituto Nacional do Cinema, ambos em 1966. Contudo, essa estruturação ganha nova dinâmica no governo Geisel (1974/1979), durante a gestão de Ney Braga no Ministério de Educação e Cultura (MEC). Esse período representa o ápice da busca em adequar uma ação cultural às pretensões políticas do regime.

É quando a área da cultura passa por um amplo desenvolvimento com a implantação do Conselho Nacional de Direito Autoral e do Conselho Nacional de Cinema, o lançamento da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, a reformulação da EMBRAFILME - Empresa Brasileira de Filmes, a criação da FUNARTE - Fundação Nacional de Artes, a expansão do Serviço Nacional do Teatro, entre outros acontecimentos. Em 1975, é lançada também a Política Nacional de Cultura (PNC), primeiro plano de ação governamental no país que [fim da página 70] trata de princípios norteadores de uma política cultural (4).

Antes da PNC, ocorreram, no mínimo, duas tentativas de implementar uma política cultural no país. Em 1969, Afonso Arinos de Mello Franco, membro do CFC, foi autor de um trabalho contendo propostas para uma política nacional de cultura entregue ao Ministério da Educação pelo CFC. O trabalho acabou retido - e depois reprovado - no Ministério do Planejamento. Em 1973, foram elaboradas e rapidamente descartadas as Diretrizes para uma Política Nacional de Cultura.

Apesar de não terem sido concretizadas, as Diretrizes apontam alguns elementos que estarão presentes na PNC. Um confronto entre esta e as Diretrizes demonstra uma continuidade ideológica entre os dois projetos. Há, na realidade, um conjunto de questões comum a todos os planos de cultura lançados no regime militar. Marilena Chauí, Antonio Candido, Lélia Abramo e Edélcio Mostaço (s/d: 37) destacam algumas permanências entre as diversas políticas culturais de Estado pós-64: 1) centralização das decisões culturais nos Ministérios e Secretárias de Educação e Cultura; 2) vínculo entre cultura e segurança nacional; 3) vínculo entre cultura e desenvolvimento nacional; e 4) vínculo entre cultura e integração nacional, isto é, o uso da cultura como fator de unificação nacional.

Contudo, apesar das continuidades, as políticas culturais possuem diferenças, importantes por demonstrarem as modificações de orientação do poder estabelecido. No plano administrativo, por exemplo, o documento de 1973 propunha a criação de um Ministério da Cultura. Além da competência administrativa adquirida através do CFC, a criação do novo Ministério é justificada, com argumentos baseados na ideologia da Segurança Nacional, através da conservação do caráter nacional. Por sua vez, na PNC não existe qualquer referência a um ministério autônomo para a cultura. Pelo contrário, ela reforça a atuação do MEC na área.

Na parte conceitual, as Diretrizes apontam para um conceito amplo de cultura, resultado de toda criação humana e da qual todos participam ("idéias e ideais partilhados pelos brasileiros"). A criação é universal e, portanto, não apresenta problemas. Ela, em si, não é discriminatória nem contraditória. Contudo, o acesso final à criação é restrito e diferenciado, o que resulta na necessidade de intervenção junto às classes menos favorecidas.

Tem-se, portanto, a idéia conservadora do espontaneísmo cultural, que recusa o acesso elitista aos produtos culturais. Atrás da "democratização", da recusa à produção cultural "erudita", e da valorização da "cultura do povo", está a percepção de que grande parcela dos intelectuais se opõe ao regime, identificando-se com os setores de oposição. Assim, valorizar a "cultura espontânea" e as "fontes populares" é uma forma de poder descartar aquela [fim da página 71] produção de elite, pelo menos na sua versão contestadora. A "elite" da qual se trata é aquela formada por intelectuais e artistas de esquerda, que agita o cenário cultural do país e que tanto interessa ao regime neutralizar. Analisando o destaque dado à cultura popular nos planos de governo, conclui Teixeira Coelho:

"(...) isto tinha um objetivo político: combinar a produção cultural da elite intelectual e artística, que no Brasil tem sido em sua quase totalidade de esquerda, a qual, por sua vez, tem detido a hegemonia dessa produção, apesar da direita instalada no poder. Esse combate sempre foi promovido em duas frentes: diretamente, através da censura, e indiretamente, negando apoio econômico à produção, já que a prioridade ia para 'o povo' e para a 'cultura popular'. Nunca foi, está claro." (Coelho, 1986:102)

A presença, na política cultural do governo, de um discurso aparentemente crítico, de valorização daquilo que vem do povo, pode ser vista como a capacidade do regime capitalista em apropriar-se de concepções as mais diferentes, inclusive opostas ao capitalismo, segundo apontou Walter Benjamin (1987:128). Alfredo Bosi constata essa elasticidade no contexto brasileiro, exemplificando, inclusive, com as propostas culturais lançadas em 1975:

"O sistema parece ter uma certa margem de indulgência para com tudo quanto não fira, a rigor, a sua autoconservação econômica (...) E é próprio da ideologia da modernização trocar às vezes de aparência para vender melhor. Daí, aquela inconsistência das normas que regulam a expressão verbal, forma por excelência de nossa cultura; daí também a prática de incorporar ao discurso oficial o jargão da cultura crítica (...) Um exemplo probante dessa facilidade de assimilação retórica vê-se na linguagem meio sociológica meio dialética que permeia o último Plano Setorial de Cultura (1975-9) (...).
O exemplo foi aduzido apenas para acentuar a tese principal destas páginas, que afirma a existência de correntes díspares (especular e crítica), a sua coexistência e, mais ainda, o caráter centrípeto do sistema cultural. Este consegue, às vezes, trazer para o seu discurso as cadências da oposição, tendo, naturalmente, o cuidado de diluí-las em um ideário progressista e desenvolvimento vago herdado da situação anterior (1946-64)."
(Bosi, 1992: 318-319)

Seguindo a concepção generalista de cultura da qual falávamos, as Diretrizes definem a cultura brasileira como resultado da miscigenação de várias influências e o sincretismo final como o próprio retrato do "Ser Brasileiro". São essas "raízes sociais de um povo" que torna-se necessário conservar e promover, pois só assim será mantida a identidade nacional. Nesse momento, tem-se a interligação entre política cultural e política de segurança nacional.

Na PNC há uma continuidade conceitual e temática em relação às Diretrizes. Contudo, as condições são mais propícias à implementação de uma política pública para a cultura. Dessa forma, apesar das semelhanças nos fundamentos ideológicos, a PNC não precisa mais legitimar o plano para os [fim da página 72] militares e tecnocratas, preocupação bem visível nas Diretrizes, pois ela soma à visão essencialista do anteprojeto de 1973 uma visão instrumental, o que aponta para a participação dos técnicos culturais. A base do argumento deixa de ser somente o conjunto das questões de segurança nacional e engloba a necessidade de desenvolvimento, visto não só como econômico, mas também como social, incluindo-se aí o cultural.

Conservar (visão essencialista) e desenvolver (visão utilitarista) passam a ser os dois pólos onde tramita a política nacional de cultura. Essa dubiedade, segundo a análise de Cohn (1984: 92), acaba por inviabilizar a PNC. Mesmo com poder de atuação limitado, a Política Nacional de Cultura representa um marco nas relações Estado-cultura no Brasil. Sua existência aponta para as diversas motivações da presença estatal na cultura, nem todas alcançadas, mas indicativas do campo político-cultural brasileiro no período.

AS RAZÕES DA POLÍTICA NACIONAL DE CULTURA - PNC

Mesmo que a PNC não tenha alcançado plenamente seus objetivos, ela se torna importante porque representa uma iniciativa, e não uma mera reação por parte do Estado a pedidos ou projetos particulares dos artistas e intelectuais. Tomar a iniciativa nunca foi a prática predominante das ações governamentais no campo da cultura, campo sempre desprestigiado em relação a outras áreas de investimento social.

Dessa forma, podemos compreender a PNC como uma tentativa de ampliar esse investimento na trilha aberta pelo "milagre econômico". Para Miceli (1984 a: 57), a PNC significou a incorporação da cultura nas metas da política de desenvolvimento social do governo, primeiro momento da nossa história em que o governo formaliza diretrizes de atuação no setor, prevendo colaborações de outros setores do poder federal, dos poderes estaduais e municipais, além do setor privado.

À ampliação da política de desenvolvimento, além da importância estratégica conferida à política cultural, somam-se a influência e a capacidade de pressão por parte dos grupos a que pertencem o ministro Ney Braga, e sua equipe no MEC, para explicar o investimento cultural pós-1975. Nesse sentido, é fundamental o papel dos dirigentes na ampliação da ação cultural. Ou dos parentes de figuras poderosas dentro do Governo, que usam de suas influências para apoiar artistas e intelectuais. Isso demonstra que mesmo com um plano de cultura, a atuação é muito aleatória e baseada em critérios personalistas, mantendo as relações de clientelismo e assistencialismo.

A incorporação da cultura nas preocupações oficiais faz parte de um movimento geral do sistema capitalista contemporâneo. A sociedade produtivista requer esse tipo de investimento por diversos motivos, como mostra Michel de Certeau:

"A importância crescente dos problemas culturais está inserida em um amplo contexto. Em primeiro lugar, ele se caracteriza pela lógica de uma sociedade produtivista que correspondeu às necessidades elementares da população contribuinte e que, para se ampliar, deve analisar, desenvolver e satisfazer necessidades [fim da página 73] 'culturais' de sua clientela (...).
Acrescenta-se a isso a inadequação das ações ou das planificações econômicas para responder verdadeiramente ao mal-estar que, depois de um certo limite, é gerado pelo próprio progresso."
(Certeau, 1995:192)

A razão do maior investimento na cultura a partir de 1975 está, também, no desgaste político da ditadura. O regime não pode manter-se no poder apenas através da força. Torna-se necessário alcançar algum tipo de hegemonia. Procura-se, então, novas bases de apoio. É o que pensa, por exemplo, Margarida Autran (1980: 94). Para Autran, com a crise do "milagre econômico", a partir de 1973, o regime perde a razoável credibilidade que possuía, obrigando-o a buscar outras formas de aproximação da sociedade civil, principalmente da classe média.

A intensificação no projeto de obter o controle sobre a produção cultural resulta, segundo Cohn, do descompasso entre o Estado e seus opositores na área:

"A busca de uma política nacional de cultura realmente existe nessa fase crucial dos anos 70, e seu objetivo era bem definido: a codificação do controle sobre o processo cultural. Tudo isso tem a ver, sem dúvida, com a posição de desvantagem em que o regime se encontrava nesse terreno, visto que as posições mais importantes ainda estavam ocupadas pelos 'adversários'. Continuava válido naquela etapa aquilo que Roberto Schwarcz apontara em 1969 (...) (5). O regime pode não ter logrado alcançar a hegemonia cultural, mas certamente a buscou e lhe deu importância, à sua maneira." (Cohn, 1984: 88)

Como falamos anteriormente, o regime, em nenhum momento, consegue atrair toda a intelectualidade para seus projetos, muito menos alcançar a hegemonia no campo cultural. Os setores de esquerda continuam produzindo em oposição ao sistema. Pécaut (1995) aponta três fatores que ajudam a compreender a permanência dessa produção crítica em plena ditadura. Primeiro, o surgimento de novas instituições intelectuais e a permanência das existentes; segundo, uma certa coesão mantida pelos intelectuais de esquerda, uma vez que o campo cultural acaba funcionando como um "subsistema político", possuindo instâncias próprias de poder e, portanto, de cooptação; terceiro, a própria dubiedade do regime militar em relação aos intelectuais, aplicando simultaneamente a repressão e a promoção culturais.

Se a PNC aponta para uma abertura na área da política cultural pública, o resultado é o apoio de parte da categoria ao projeto governamental, cuja adesão mais ruidosa foi a de alguns dos artistas ligados ao Cinema Novo, com Gláuber [fim da página 74] Rocha (1986: 37) à frente, chamando o General Golbery de "gênio da raça". De uma maneira geral, no caso do cinema, o apoio relaciona-se com o reconhecimento que os cineastas têm da necessidade da Embrafilme. Sua importância, segundo Roberto Pereira (1984: 231), está em fortalecer os mecanismos para a criação de uma "hegemonia cultural brasileira nas telas". Apesar disso, a produção cinematográfica brasileira, segundo Pereira, não teria sofrido de "grosseira 'normalização ideológica' ".

Por suas fortes ligações com o Estado, surge entre os cineastas o debate em torno da "patrulha ideológica" exercida pela esquerda, que depois espalha-se por todas as outras áreas artísticas. É por isso que a difícil relação Estado-cultura encontra, na área cinematográfica brasileira, um ambiente propício ao debate, como sugerem Heloísa B. de Hollanda e Carlos Alberto M. Pereira (1980: 09). Por outro lado, a Embrafilme é vista como um meio de retomar o cinema nacionalista do início dos anos 60, o que aponta para a utilização da máquina estatal na produção de filmes que, eventualmente, são contrários ao ideário do regime. Para José Mário Ortiz Ramos (1983:95), os cineastas procuram, nesse momento, desvincular a questão econômica e política da cultural, tentando alcançar o máximo de autonomia e controle sobre seus produtos.

Devemos dizer, contudo, que a adesão às verbas oficiais não é geral e nem tranqüila. O movimento é visto como uma faca de dois gumes por alguns cineastas. Ao mesmo tempo em que permite a concretização de certos planos, por outro limita, em grande parte, as críticas ao regime. Essa posição dúbia da intelectualidade brasileira pode ser entendida de acordo com sua posição no campo social. A ambivalência do intelectual em relação ao "povo" e às "elites" relaciona-se com a posição dominada que o campo cultural ocupa no campo mais amplo do poder, como lembra Bourdieu (1996).

Segundo Alberto Guerreiro Ramos (1982: 531) nunca, na história brasileira, uma parcela significativa de nossa intelectualidade ficou fora da estrutura social vigente. Análise próxima é a de Miceli (1985: 129), que aponta a prática dos intelectuais brasileiros, de pensar o Estado acima das classes. Dessa forma, permanecem imaculados, ao servirem para este como "fiadores da ordem social" ou "futurólogos".

Não há, portanto, nenhuma anomalia na constituição de espaços de atuação em comum entre o Estado e os intelectuais em pleno regime militar. Com uma política baseada em posições amplas e ambíguas, são estabelecidas alianças entre as duas partes. Alianças, como apontam Hollanda e Gonçalves (1980: 37), "politicamente desejáveis", transformando o Estado no grande mecenas do período.

A relação entre o produtor cultural e o Estado não se restringe ao apoio deste às iniciativas do primeiro. Durante o regime, porém com mais força na década de 70, os órgãos oficiais de cultura empregam uma grande quantidade de intelectuais e artistas. O Estado transforma em seus funcionários, inclusive, os opositores e ex-perseguidos políticos. A relevância do empreguismo, enquanto cooptação, aumenta quando se observa o período de recessão no país com o fim do "milagre econômico". Sem condições de sobreviver com seu produto artístico, inclusive com a retração na indústria cultural, o artista vê no emprego público a solução para continuar produzindo.

[fim da página 75]

Ou seja: se, por um lado, o regime censura e promove as artes - o que já é uma atitude ambígua - por outro, encontra grande receptividade entre setores intelectuais e artísticos, motivada por razões as mais diversas, como podemos deduzir das colocações dos diversos autores aqui citados. Na realidade, a relação Estado-cultura, no Brasil, foge a qualquer olhar reducionista ou simplista, e traz as marcas da contradição. Tanto as marcas presentes no campo político quanto no cultural, resultado das questões internas a cada um, quanto as específicas, que surgem do contato entre ambos.

A atuação de alguns dos personagens envolvidos nesse processo, como não podia deixar de ser, está carregada de ambigüidade e ilustra o contexto: como funcionários públicos, a participação ativa nos projetos governamentais, do lado de fora, como artistas e intelectuais, uma produção crítica e de denúncia ao autoritarismo.

Por outro lado, a década de 70, ao mesmo tempo em que assiste ao crescimento do Estado na área da cultura, observa uma grande parcela de intelectuais e artistas negando esse espaço e o grande esquema de produção montando pela indústria cultural. É o que se denominou, comumente, de arte marginal ou alternativa, com presença forte no cinema, na literatura, no jornalismo, no teatro etc. Os artistas, criando um circuito independente do espaço estatal ou industrial, subvertem o modo de produção cultural dominante. A produção cultural alternativa, influenciada pelas idéias da contracultura, teve como antecessor imediato o movimento Tropicalista (1967/69). Depois, espalha-se por todo o país, principalmente pelas mãos dos poetas e jornalistas (6).

Diante de fatos como esse é preciso, sempre, relativizar a aproximação nos anos 70 entre produtores culturais e governo. Não podemos esquecer que o Estado brasileiro é autoritário, que se vive em tempos de ditadura, sem liberdades e em plena vigência da censura. Esses elementos são constantemente lembrados pela categoria dos intelectuais e artistas. De modo que, por maior quer fosse o investimento estatal na área, em momento algum o Estado consegue aglutinar em torno de si toda a categoria ou, ao menos, sua parte mais significativa.

Como aponta Roberto Pereira (1984: 231), ex-diretor da Funarte, ocorrem diversas tensões na relação dos produtores culturais e o Estado no período. Tensões alimentadas pelo temor da cooptação ideológica e do dirigismo cultural, mas também pela crítica dos intelectuais e artistas a aspectos da política cultural, como os critérios de favorecimento regional.

A não participação de vários e importantes produtores culturais acaba por limitar a atuação governamental na área. Apesar da "construção institucional" na cultura, vários projetos não se concretizam, por interferência da censura ou por decisão dos artistas. Essas circunstâncias vão, aos poucos, limitando a atuação do Estado na cultura.

Como podemos concluir, o projeto cultural do regime não se concretiza de acordo com o que foi planejado. Desde as dificuldades econômicas até o boicote de parte significativa da intelectualidade, passando pela complexa relação com aqueles que participaram do projeto, o controle estatal sobre a cultura fica muito aquém do que esperavam ou desejavam os militares.

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NOTAS

1) Professor do Departamento de História da Universidade Estadual do Ceará.

2) Observamos como o nacional-popular, segundo a visão oficial, apontada por Chauí, em nada se refere ao conceito como foi trabalhado por Gramsci (1978). Como lembra Martin Cézar Feijó (1983), o pensador italiano não se referia ao "nacionalismo" enquanto visão patriótica e reacionária e nem ao "populismo", referência ao povo pelo sistema dominante. O conceito em Gramsci era visto como um instrumento para a elaboração de uma "política cultural transformadora, democrática e popular" por parte das classes subalternas na luta pela hegemonia.

3) A continuidade é um dos traços do intelectual tradicional, resquício de contexto anterior da formação social, como aponta Gramsci. Assim, estes intelectuais "sentem com 'espírito de grupo' sua ininterrupta continuidade e sua 'qualificação'"(Gramsci, 1985: 06).

4) A PNC surge dentro de um contexto internacional de promoção de políticas estatais de cultura incentivada pela UNESCO. Na avaliação de Benedito Silva (1977), no contexto mundial, os anos 70 serão marcados pelo desenvolvimento cultural. Para a América Latina, a orientação da UNESCO assume a busca de uma suposta identidade latino-americana, segundo Felipe Herrera, então Presidente do Conselho Administrativo do Fundo Internacional de Promoção da Cultura: "A verdadeira definição da América Latina é ter sido o cadinho ativo da absorção cultural recíproca do ibérico, do indígena e do africano durante os três últimos séculos"(Herrera, 1977:23).

5) A observação de Roberto Schwarcz (1978), comentada por Cohn, aparece no ensaio "Cultura e política, 1964-1969". Nele, Schwarcz aponta que, apesar da ditadura militar, a esquerda continua com uma certa hegemonia no que se refere à produção artística e intelectual no país. Isso porque a repressão foi, pelo menos até o AI-5, seletiva, ou seja, incidiu sobre as lideranças que estavam em contato direto com os movimentos de massa, deixando a intelectualidade com certo espaço de atuação.

6) Ver, a esse respeito, Bernardo Kucinski (1991) e Carlos A.M. Pereira (1981).

RESUMO
O ESTADO PÓS-64: INTERVENÇÃO PLANEJADA NA CULTURA

Este artigo procura discutir as complexas relações entre Estado e cultura no Brasil durante o regime militar. Apesar destas relações acontecerem desde o Império até hoje, é possível caracterizar o período pós-64, em especial a década de 70, como o primeiro no qual ocorre uma intervenção sistemática e planejada do Estado no setor. O artigo analisa as diversas motivações e estratégias de tal intervenção, os atores envolvidos, a ambigüidade e o alcance real da política de cultura dos governos militares.
PALAVRAS-CHAVE: política cultural; governo militar; anos 70.

RÉSUMÉ
L'ÉTAT BRESILIEN DEPUIS 1964: INTERVENTION PLANNÉ A LA CULTURE

Cet article cherche à discuter les rapports complexes entre l'État et la culture au Brésil pendant le régime militaire. Même si ces rapports existaient depuis l'Empire jusqu'à nos jours, on pounait affirmer que la période post-64, en particulier les années 70, a été la prémiére où on remarque une participation systématique de l'Etat dans le secteur culturel. En plus, il analyse les plusieures motivations et stratégies de cette intervention les acteurs touchés, l'ambigüité et le vrai rôle de la politique culturelle, des gonvernements militaires.
MOTS-CLEFS: politique culturelle; governemet militaire; l"années 70.




Índice Principal  |  Normas Para Publicação
Número 15 - setembro de 1999  |   Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


Este site foi modificado pela última vez em 01 de setembro de 2001, por Carla Mary S. Oliveira.

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