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Política e Trabalho 15 - Setembro / 1999 - pp. 167-177


ESPAÇO, PODER E VIOLÊNCIA
EM CENTRAL DO BRASIL (1)

José Ernesto Pimentel Filho (2)


INTRODUÇÃO

O filme de Walter Salles Jr., Central do Brasil, foi lançado no mesmo ano que registrou o sucesso da indicação ao Oscar de O que é isso, companheiro?, dirigido por Bruno Barreto. Embora lançado em 1997, um ano antes de Central, a aparição de O que é isso, companheiro? como concorrente ao Oscar, em inícios de 1998, levou a inevitáveis contrates e comparações, por parte de críticos(3) e mesmo do próprio Salles Jr. O diretor, de cara, já marcava a diferença entre um e outro filme.

Antes de 1998, Walter Salles Jr. era um diretor sob o qual pousava uma referência de grande insucesso e outra de um filme razoavelmente bem dirigido. Sua estréia no cinema, em 1991, com A Grande Arte, foi considerada um completo fracasso. Outro, porém, foi o destino de Terra Estrangeira (1995) que, contando com a co-direção de Daniela Thomas, mostrou a personalidade cinematográfica daquele que viria a compor o documentário Socorro Nobre e, depois, Central do Brasil.

Do filme Terra Estrangeira a crítica de Amir Labaki (1998: 188), publicada na Folha de São Paulo em setembro de 95, já destacava a fluência com que a direção passava de um gênero a outro: melodrama, policial e road movie. Apesar de concluir pela esquizotimia cinematográfica da obra, o crítico assegurava seu valor:

"É um filme de rara sofisticação visual e sonora, com planos milimetricamente construídos, extraindo sempre o efeito dramático mais contundente e uma sutil trilha de estréia de José Miguel Wisnik."

Em seguida veio Socorro Nobre, um curta enfocando a vida de uma ex-presidiária. A pessoa real de Socorro aparece nas primeiras imagens de Central.

Em abril de 1998, o filme de Walter Salles já havia passado pelo Sundance [fim da página 167] Festival e pelo Urso de Ouro. Os olhares nacionais, ainda divididos com os enfoques sobre O que é isso, companheiro?, já comentavam a novidade estética, artística e cultural apresentada naquela narração fílmica. Central apontava um caminho autônomo de inserção internacional. Associado a isto, recolocava a temática do cinema brasileiro num plano esteticamente novo (mesmo em relação à tradição cinemanovista, na qual está parcialmente calcado) e diferenciava-se da cinematografia tarantinesca, imputada ao filme de Bruno Barreto.

Helène Romano, na revista Jeune Cinéma, destacou com propriedade a originalidade estética e artística de Central:

"Causa surpresa descobrir um Brasil novo, não-épico, sem pitoresco, inteiramente cotidiano e humano, distante da incandescência das histórias de cangaceiros, de camponeses pobres ou da selva urbana e política que fizeram o sucesso do cinema brasileiro. O tom é dado desde o início, com esta descrição da estação central do Rio e todos os dramas que aí podem ser representados, violência e solidão misturadas. E a cativante história zarpa: esta mulher empobrecida, antiga professora primária que se fez escritora pública, capaz de todas as torpezas, pequenas ou graves, para assegurar sua sobrevivência; assim também, esta criança abandonada (sua mãe morreu atropelada por um ônibus), exposta a todos os perigos e que só pensa em reencontrar seu pai distante e mítico. Começa uma longa fuga, road movie nos interiores do Brasil, o que nos oferece cenas raramente vistas, momentos de tensão, momentos de ternura, momentos de esgotamento e desencorajamento durante as transformações da viagem, encontros que poderiam mudar a vida - e que definitivamente mudam-na ... De condução em condução, de pequenas cidades perdidas em loteamentos precários, de um horizonte empoeirado a outro, de paragens desertas em santuários invadidos por milhares de romeiros, os personagens aprendem a se conhecer e descobrem a amizade, e provavelmente um pouco mais." (Jeune Cinéma,1999: 41)

Cabe-nos, entretanto, advertir que, neste artigo, a experiência propriamente cinematográfica está a serviço de uma interferência que faremos com base nas noções de espaço, poder e violência. A operação crítica serve-se da obra artística para deslanchar uma reflexão cultural e social,visando traçar um campo diferenciado daquele do crítico de cinema e mais aproximado do historiador e do cientista social.

ESPAÇO, PODER E VIOLÊNCIA

Num sábado do mês de fevereiro, no ano de 1927, o jornal O Estado de São Paulo trazia na coluna "Cinematógraphos" a carta de uma leitora muito apaixonada pela fantasia do cinema. A coluna era assinada por "G.", o que, segundo Maria Inez Borges Pinto, era a inicial do poeta Guilherme de Almeida, cronista de cinema com "padrão internacional e altamente refinado" (Pinto, s/d: 02).

[fim da página 168]

Diz o final da missiva:

"O senhor não ignora como é cruel, quando se acha que uma coisa é boa e linda, vir a saber que é feia e vulgar. Conte-nos o que quizer sobre os vestidos de Glória Swanson, sobre os jantares de Tony Moreno, sobre os noivos de Bebé Daniels ... Mas, pelo amor de Deus não nos conte a verdade do cinema ...
Sua muito grata.
I. do P."
(O Estado de São Paulo, 19/02/1927)

Guilherme de Almeida era um dos intelectuais dos anos 20 que queriam ver um cinema brasileiro que estivesse atualizado com o que havia de mais moderno no país. Propugnava-se uma vida cultural conectada com a velocidade, o esporte, o maquinismo dos anos 20, enfim, com os aspectos metropolitanos e cosmopolitas, especialmente vistos da São Paulo de então.

Nessa mesma corrente, estava o Cinearte que julgava impossível conciliar o "cinema do mato" e o cinema brasileiro, já que a linguagem brasileira não poderia trazer à tona a vida de personagens marginais, que já veiculavam na literatura menor:

"(... ) deixar as portas dos engraxates. As colunas de crimes dos jornais. A biblioteca de alcova, imunda, repugnante. Pegar um megafone. Um sujeito que saiba o que é enquadração. Um outro que saiba virar a manivela e uma máquina (...) E ter, antes de tudo, um cartão de visita bem alvo, bem bonito: dignidade, decência, moralidade." (Bernadet & Galvão, 1983: 36)

Houve diversas correntes contrárias a essas já nos anos 20, com a filmagem sobre temas operários, atos públicos, reuniões e festas populares (Bernadet & Galvão, 1983: 30 e 31). Nos anos 30, o marcante Favela dos meus amores que, no depoimento de Alex Viany, trazia "cenas tomadas na própria favela com a participação de seus habitantes verdadeiros (...) uma antecipação do neo-realismo" (Bernadet & Galvão, 1983: 33).

Poderíamos citar ainda algumas produções da Vera Cruz, a revista Fundamentos, Fernando de Barros, e tantos outros cineastas, filmes e críticos que acreditaram num cinema brasileiro com personagens, roteiros, fotografia e decupagem próprios.

O cinema novo parece ter sido quem melhor explorou este objetivo, dada a linguagem ousada, inovadora e inteligente, a serviço de um cinema de compromisso, como se revela nestas passagens sobre o "autor" em Gláuber Rocha:

"O termo 'autor' designa as condições necessárias de produção para que o cinema seja expressão da 'verdade': 'o autor é o maior responsável pela verdade: sua estética é uma ética, sua mise-en-scène é uma política'. O compromisso do autor para com a realidade e a sua expressão sem retoques (a verdade) exigem uma posição (ética) de recusa à indústria que o coloca em um grande conflito, pois 'esta ontologia [permitida pelo cinema] pertence ao mundo-objeto contra o qual ele intenciona sua crítica. O cinema é uma cultura da [fim da página 169] superestrutura capitalista'. A obra do autor, então, 'não é um instrumento, é uma ontologia' que se obtém a partir da postura ética." (Ramos, 1987: 352)

Embora Gláuber Rocha retire da obra do autor seu caráter instrumental, define de forma inequívoca o papel político do cineasta, inconfundivelmente associado à idéia de verdade, realidade e compromisso ético com uma "expressão" isenta de retoques. Haveria, na criação do autor, um caráter fundacionista, ontológico, fazendo com que o seu compromisso não fosse encarado num plano meramente abstrato, mas como portador de uma radicalidade profunda.

Já em Central do Brasil as identidades com o cinema de compromisso adquirem um caráter mais flexível, admitindo mesmo o melos como forma de expressão. O aspecto documental, verossímel, não está em contradição com a representação melodramática e a vazão de sentimentos ideais. A imagem realista é, muitas vezes, o caminho para o poético. Nesse entendimento, o aspecto do compromisso evita e, até mesmo, obstrui uma radicalidade militante, já que o cineasta, no entendimento de Jurandir Freire Costa, "não se preocupa em doutrinar. Contenta-se em mostrar, sugerir e convidar" (Folha de São Paulo, 29/03/1998).

O fazer do filme sofreu alterações entre o roteiro inicial e o que realmente foi filmado. Essas alterações parecem ter sido sempre no sentido de tornar o filme mais realista, como a substituição de alguns dos depoimentos iniciais, que deveriam ter sido feito por atores e acabaram sendo feito por populares que chegaram junto à banquinha armada para a filmagem e solicitaram enviar mensagens, como segue no relato da atriz Fernanda Montenegro:

"A expectativa era grande para o momento em que fôssemos montar a câmera na estação da Central, onde começamos a rodar o filme. Quando armamos a barraca da Dora lá, muitas vezes, as pessoas que circulavam vinham até nós para ditar suas cartas, espontaneamente. Não deixou de ser uma surpresa, para mim, a facilidade que a gente encontrou para que a ficção incorporasse os personagens reais da Central do Brasil e também do resto do país. Passamos a fazer parte do código de trágica sobrevivência daquela grande gare. Logo no fim do primeiro dia, suspiramos. Sabíamos que não éramos estranhos àquele universo. E já não nos viam como uma equipe de filmagem." (Cinema, 1998: 21)

Todavia, esse aspecto realista do filme não é encarado por Walter Salles como uma dimensão ontológica, e sim como uma construção poética, no que ele remete ao cinema alemão: "(...) lembro, agora, do que dizia Pabst, o cineasta alemão: o realismo nada mais é do que uma ponte para o poético" (Folha de São Paulo, 29/03/1998.) Isso é vislumbrado numa abertura de planos que dá vazão ao colorido e à amplitude do sertão como horizonte aberto e maravilhoso:

"Apesar do diálogo com toda uma tradição do Cinema Novo (o transe de Dora na procissão com a câmera girando, as filmagens em Milagres e Vitória da Conquista - sertão glauberiano -, o lado documental da ficção, a celebração da cultura oral sertaneja), Central [fim da página 170] do Brasil se diferencia por retratar não o sertão violento e insuportável do Cinema Novo, mas um sertão lúdico, rude, mas inocente e puro, como os irmãos que acolhem Josué." (Bravo, 1998: 89)

Portanto, mostrar "o rosto do Brasil na tela" (Folha de São Paulo, 29/03/1998) significa também recuperar a "fábula" do sertão, de um mundo mais sensível, gestual e comportamental. No tocante a esse aspecto, Walter Salles remete a Nelson Pereira dos Santos e ao seu filme Vidas Secas:

"Quando se vê hoje 'Vidas Secas', fica-se impactado não só pela modernidade do filme, mas pelo fato de que cada gesto dos personagens tem um significado que transcende o próprio gesto. Há uma qualidade emblemática e insubstituível em cada plano. Se você retira um deles, a arquitetura desmorona. Como numa ordem sinfônica, cada plano é grávido do próximo plano, assim como cada nota anuncia a nota seguinte." (Folha de São Paulo, 29/03/1998)

Já a temática da violência abordada em Central do Brasil diferencia-se profundamente do Cinema Novo, tanto nas imagens que mostra, como no aspec-to "estilístico", ou seja, na forma de buscar romper os parâmetros convencionais de apresentação da espacialidade dupla "metrópole versus sertão". Ao imprimir novo sentido a esse último, pensamos estar em curso uma contraposição frontal ao sentimento de superioridade da metrópole. Aqui, entra em jogo a hipótese do "espectador médio urbano".

Na ética cinemanovista e, conseqüentemente, em seu compromisso com a verdade, insere-se uma compreensão específica da violência e da miséria. Essa especificidade reside na recusa do folclore e do espetáculo, na medida em que se visa agredir o espectador e subverter o que Ramos chamou de "forma clássica" de abordar tais temáticas:

"A maneira de romper este círculo vicioso, onde a denúncia da fome e a própria fome podem ser absorvidas como espetáculo, é através da violência: 'somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora.' A violência a que se refere Gláuber é, principalmente, a violência estilística, que rompe com as expectativas emocionais que o espectador médio espera obter da representação da miséria (a compaixão, por exemplo). É exatamente o 'sabor da miséria' que o diretor pretende atacar no seu manifesto, propondo uma 'estética da violência'." (Ramos, 1987: 353)

Ora, essa hipótese plausível levantada por Ramos, com relação ao cinema de Gláuber Rocha, não pode passar desapercebido no Walter Salles de Central. Subrepticiamente à narrativa romantizada do sertão, cremos estar em jogo um problema muito discutido na trajetória do cinema nacional: em que medida ele deve retratar nosso povo, a "caipirice" e a pobreza? E mais: como fazê-lo de forma a que o produto seja degustável para o público urbano? Quem é o consumidor atual do cinema, senão o homem das cidades? Coloca-se um verdadeiro desafio à clientela: encontrar algo distinto da ambientação [fim da página 171] "modernosa", própria das sociedades do primeiro mundo, dos metrôs, da arquitetura futurista e das maravilhas da tecnologia, lá onde se passam inúmeras histórias de bandidos e assassinos fantásticos que povoam as telas. Como fazê-lo?

À primeira vista, o filme de Walter Salles parece incluir o componente folclórico clássico do sertão e do popular, ao trabalhar com emblemas já cristalizados na cultura, como o Pe. Cícero, a Virgem, a procissão, entre outros. Parece fazê-lo no ponto em que visa a dignidade e a decência de seus personagens, embora não sejam equivalentes aos valores encontrados nas classes média e alta, sobretudo do habitante dos centros urbanos, como queriam muitos dos defensores do cinema brasileiro no início do século.

De fato, Walter Salles não visa alcançar a dimensão glauberiana da violência. A violência é uma face que faz deslanchar a narrativa para a zona de redenção da nação, enquanto solidária e comunicativa. Essa redenção se encontra, ficcionalmente, e talvez até ontologicamente, num imaginário que fincou suas raízes fora da metrópole.

Essa parece-nos ser uma das grandes rupturas propostas pelo filme. O diretor recria o espaço nacional com o objetivo explícito de dar resposta ao momento por que estamos passando. Momento esse, em que a escala de violên-cia atinge limites apavorantes, sobretudo em São Paulo (4). Não por acaso, a recepção de Central chegou a apontá-lo como uma visão paulista do Brasil (5), muito embora o diretor faça uso do cenário simbólico da Estação Central e da cidade do Rio de Janeiro enquanto ícone da barbárie brasileira.

Se aos "nordestinos" o filme garante o conforto do retorno, ao espectador natural do Sudeste brasileiro, o diretor propõe um insólito panorama, o qual não foi aceito sem protestos pela crítica. Inácio Araújo - Folha de São Paulo - desacreditou muito francamente que pudesse existir aquele Nordeste do diretor:

"O olhar do diretor por vezes também é estranho. (...) somos convidados a contemplar um Nordeste de sonho: belo como nunca, estetizado como nunca - às vezes, faz lembrar o deserto dos EUA." (Labaki, 1998: 204)

Também na revista Bravo, a crítica menos concordante com Walter Salles Jr. interroga-se se é mesmo verdadeira essa "apresentação do real"?:

"A pobreza monótona e rude do sertão, sua violência surda, seriam mais 'suportáveis' que o inferno urbano da Central do Brasil, com [fim da página 172] seus camelôs e cafajestes, como o filme parece apostar?" (Bravo, 1998: 89)

Continua:

"Mas a corrida do menino no final (Pixote sertanejo?), apesar do happy end, talvez seja menos um apelo para que Dora fique naquele fim de mundo do que um último grito desesperado, que pede: não me deixe aqui!" (Bravo, 1998: 89)

A representação mais abrangente (pressuposta pelo filme) realiza uma espacialidade dupla, quase dicotômica, entre o urbano e o rural, o Sudeste e o Nordeste brasileiros. Esta ordem de lugares é externa à própria obra, está cristalizada na cultura brasileira. O Nordeste como ícone do atraso, da má qualidade de vida, terra de ninguém, ou seja, o mundo sertanejo pobre e abandonado.

Em contrapartida, pensemos a hipótese de um habitante de um Sudeste que também está posto como ícone, referência, e não, dado de realidade. Esse habitante, que nunca é sudestino, depara-se com um conto fabuloso - Central do Brasil - que ao mesmo tempo re-significa o ícone Nordeste positivamente e lhe imprime ganchos realistas. Depara-se com um inusitado, porém, sentimental roteiro em que uma criança foge de um mundo de violências, crimes e delitos no Rio de Janeiro para um "outro" mundo; mais solidário e comunicativo.

Lembramos aqui do sertão como emblema predileto de lugar dos esque-cidos. O mundo do sertão que é, muitas vezes, concebido como a representação do nosso atraso, da precariedade material e do castigo climático. Essa ordem de lugares, que é também uma ordem de poderes e de representações, caracterizando a espacialidade preconcebida do Brasil, dá-lhe sentido e orientação na distribuição de recursos públicos e da produção do país. É uma ordem que revela também muitos aspectos do mundo político brasileiro. Esse é o ponto de partida do pensar o mundo rural versus urbano, métrópole versus sertão. É o país construído a partir de seus estereótipos.

Esse ponto de desencadeamento da narrativa não é fornecido ao espectador nacional. Ele já o tem. Ele entra na sala de cinema com esse a priori. Supõe-se que o diretor sabe disso. O filme estende um mundo real-representado na sala de cinema. Ele busca reapresentar o real ao espectador que "sabe", de antemão, da existência de um mundo dicotômico.

Essa dicotomia não é mais o fato acadêmico. A diversidade cultural e so-cial do país não permitiria tais simplificações. Sabemos que não existem dois brasis. O Brasil partido é uma fantasia. Esse estereótipo é uma inexistência?

Persiste fortemente uma espacialidade dicotômica. É, de um lado, o mundo de quem está em trânsito. Porque já foi à metrópole, veio do sertão ou sonha em viajar para a metrópole. Do outro lado, o habitante da metrópole. Seu ponto de vista é estático. Raramente deslocou-se para o sertão. Não lhe imagina senão como uma ordem de lugares, a outra face de um mundo. A metrópole aparece como problemática, mas superior em sua infra-estrutura, serviços, comunicação, cultura, entre outros aspectos. Ela visualiza o habitante do sertão como estranho a seus códigos e valores e o encontra, quase sempre, na situação do flagelo e da migração.

[fim da página 173]

Então, a narrativa é geográfica porque cria espaço (Certeau, 1996). Visa imprimir a cada lugar uma lembrança, uma imagem e referência. É nesse gancho dos lugares, personagens e falas que reside a continuidade entre a rua e a porta do cinema, a sala escura dos sonhos.

Central do Brasil vem criar uma narrativa centrada na subversão da geografia do poder que disciplina (Foucault, 1987) e estabelece a ordem dos lugares (Certeau, 1996) no espaço nacional. A via dessa subversão narrativa é o melodrama, a romantização do sertão. O filme possui uma espacialidade própria, a qual atravessa diversas esferas de análise e de realidade. Ela vai do cotidiano e comportamental à dimensão mais generalizante da história, qual seja, a representação da Nação. Atravessa longitudinalmente as relações pessoais, amorosas, afetivas; as delinqüências, a violência e o próprio Estado.

O realismo age tal o sonho, confudindo o verossímel/inverossímel, a fim de implantar um novo mapa, novo código de valores, novo roteiro. É por isso que Central do Brasil não é militante. Porque entende o cinema como sonho. Mas é um cinema que quer interferir.

O diretor quer transformar o real-representado na reapresentação de um novo real. Quer o sonho, a posição distensa do espectador, mas quer fazê-lo pensar diferente, viver diferente. O cinema novo fazia isso pela seqüência cortada de imagens e falas. A narrativa necessitava ser recomposta pela reflexão. Com Central do Brasil, pensamos pelo coração.

Mas o espectador terminou a fábula, encontrou novamente a metrópole. Uma esmola a mais, um olhar um pouco mais terno, tudo volta à norma. Apagam-se os desenhos feitos no mapa; há agora pedaços desconexos. Os traços e limites não mais coincidem.

E ficam aquelas imagens do estranho: "(...) bem, nunca tinha ido para o sertão" - declara a atriz principal - "(...) mesmo quando não tínhamos muito conforto na acomodação, passávamos noites quentes, mas agradáveis" (Cinema, 1998: 21). Mesmo sendo uma cidadã ímpar pelo tipo de trabalho que exerce, Fernanda Montenegro tem em comum com qualquer habitante metropolitano o ponto de vista de quem nunca tinha ido ao sertão, uma posição que fala de fora.

Também o menino Vinícius de Oliveira gostou do passeio, das viagens, mas gosta mesmo é de morar no Rio de Janeiro.

Aquele mundo aparece na tela. O espectador agora lembra do que viu no filme. Josué flagra as cartas, inúmeras delas no "purgatório" da gaveta. Inclusive, vê logo a de sua mãe. Seu impulso de criança não tem ainda a ordem de lugares que o real-representado nos impõe: "Eu vou levar essa carta pro meu pai. Me dá ela!". Dora lhe responde grosseiramente: "Que [é] isso! Tá maluco?! Você sabe onde teu pai mora? Mora a milhares de quilômetros daqui. Mora noutro planeta, tá" (Carneiro & Bernstein, 1998: 34).

Subitamente, o espectador é tomado a pensar as ordens de lugares sobre as quais vê, escuta e fala. Qual utopia poderia realizar-se no espaço do sertão? O apelo entre o filme e a experiência vivida também é feito pela pessoa de Socorro Nobre, que aparecendo uma única vez na tela da sala de projeção, foi presença constante em toda companha de divulgação do filme.

Se com Socorro Nobre o problema consistia em consertar o erro cometido pela participação num latrocínio, com Dora tratava-se de resgatar o menino vendido [fim da página 174] por dois mil dólares, dos quais ela só ficou com a metade, o que lhe rendeu uma televisão.

Dora age com interesse no consumo do imaginário televisivo, agora a cores. O cenário urbano é fundamental para estabelecer em seu caráter os componentes do cinismo e da indiferença. Assim, a verdadeira mudança de sua vida somente se opera quando ela chega ao sertão e passa pela casa dos milagres, o que Jurandir Freire Costa considerou como sendo a "redescoberta emocional de si" (Folha de São Paulo, 29/03/1998).

É o poder de um nova ordem de coisas que reorienta o estar no mundo de Dora, construindo e mostrando a ela uma nova espacialidade:

"Diante do novo, no caso o sertão do Nordeste, começa a se ressensibilizar, a descobrir a alteridade, e tudo se cristaliza no momento da procissão. Naquele instante ela descobre a gravidade de não ter enviado as cartas." (Folha de São Paulo, 29/03/1998)

Neste ponto, lembramos a contraposição de duas formas de se apresentar ao outro. Uma que se passa no início do filme, ainda no Rio, quando Dora se apresenta a Josué, para depois vendê-lo mediante acordo prévio estabelecido com Pedrão. A outra, de Isaías, também filho do Jesus, pai de Josué, que se apresenta a Dora e o garoto, que prefere omitir seu nome verdadeiro e se diz Geraldo. O diálogo inicia com a pergunta: "A senhora conhece o pai?" (Carneiro & Bernstein, 1998: 91).

A apresentação solícita de Isaías já no momento em que o filme chega ao seu final, gera no espectador um impacto de desconfiança. É que o roteiro seguiu um caminho tal em que as pessoas demonstravam sempre cinismo, indiferença e má fé. A presença de Isaías e a forma como ele insiste na acolhida dos estranhos, somente pelo fato de afirmarem ser amigos do "pai" poderia gerar no espectador da metrópole a suspeita de que existe algo por trás. Acontece que é o lugar que marca a diferença, porque ele remete à idéia da comunidade, da comunicação e da possibilidade de se construir laços de afeição e amizade. Há, portanto, uma nova circunscrição espacial, corporal e, finalmente, uma linguagem que resgata a inocência, a cordialidade e a esperança.

A cena acima descrita foi antecedida pelo aviso do adolescente da bicicleta que cochichara algo a Isaías. Ao ver que os estranhos procuravam por Jesus, o adolescente "apanha uma bicicleta e parte na outra direção" (Carneiro & Bernstein, 1998: 88). Foi, pois, ele quem avisara a Isaías da presença de algumas pessoas que procuravam o seu pai.

O rapaz da bicicleta representa a idéia do espírito comunitário que é necessariamente comunicativo: importa-se com o outro, com a comunicação da notícia. É o alguém que, buscando algo, pode inesperadamente ser ajudado pela intervenção de um próximo desconhecido. Dificilmente isso acontece na comunidade urbana ou metropolitana.

Ficamos, então, com essa imagem do mundo urbano, onde o cidadão que busca a informação que lhe é útil, ou vital, age sozinho se não obtiver o amparo da família e de seus muito próximos. Ajudar, informar, colocar alguém próximo da solução de um determinado problema é algo que demanda um esforço e um custo muito grande ao habitante urbano.

[fim da página 175]

Foi assistindo ao filme São Paulo S/A, de Luiz Sérgio Person, que Walter Salles diz ter visto "como se deu o início da corrupção urbana brasileira e o processo de mimetização do modelo industrial dos países grandes" (Folha de São Paulo, 29/03/1998). Dá-se, então, a mitificação do sertão da qual ele, muitas vezes, declarou estar fugindo. Essa mitificação deve ter algo de proposital, como uma espécie de desafio à arrogância da metrópole. À sua maneira, sem o apelo mesmo da violência estilística do Cinema Novo, ele também parece querer fazer um front contrário à mentalidade pequeno-burguesa do cidadão comum da metrópole. Ele transformou o estereótipo do sertão, preconcebido como uma coisa feia e vulgar, em algo que passou a ser bom e lindo.

Satisfez, ao mesmo tempo, duas tradições presentes entre os partidários do cinema nacional: mostrou a realidade brasileira como débito ao Cinema Novo sem, no entanto, contar "a verdade do cinema" (o que parecia deplorável à leitora de "G", citada anteriormente), já que mantém o caráter ilusório e fabuloso do cinema.

BIBLIOGRAFIA

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[fim da página 176]

OUTRAS FONTES



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NOTAS


1)Um esboço deste trabalho foi apresentado como comunicação livre no VI Encontro Estadual de História: Fronteiras da História, realizado em Fortaleza - CE, entre 28 e 30 de outubro de 1998.
2)Professor do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba (Campus I - João Pessoa).
3)Thales Ab´Saber (1998: 227-228) comenta sobre a via de inserção no mercado norte-americano buscada por O que é isso, companheiro?: "(...) nossa mais arcaica busca de atualização, não importando mesmo para nós o nível da barbaridade histórica em jogo, nos movia a ser companheiros das grandes regras de uma cultura capitalizada ao extremo, cuja expressão é o grande espetáculo universalizante, o festival, a megaexposição, o prêmio da Academia, sem que, diante de tal fascínio pudéssemos de fato nos deter sobre o filme e perguntarmo-nos: mas afinal o que é isso?" Continua: "Definitivamente, não é este o caso de Central do Brasil. É importante não confundirmos o filme com este campo reificado de nossa cultura atual."
4)Apesar do panorama de violência e crimes afetar as capitais brasileiras de um modo geral (salvo destacadas excessões como Porto Alegre, onde os índices de crimes violentos estão estáveis há cinco anos), o cotidiano de São Paulo tem forçado uma consciência aguda e abrupta do problema. Tendo tomado a posição do Rio de Janeiro como capital mais violenta do país, nela ocorrem quase três mil homicídios a cada semestre e o número de roubos na Capital e Grande São Paulo, saltou de 36.908, no segundo semestre de 1995, para 70.912, no segundo semestre de 1998. Isso representa um aumento de 92% nos roubos em apenas três anos.
5)Segundo comentários de Inácio Araújo, publicados na Folha de São Paulo em 03/04/1998 (Labaki, 1998: 204-207): "(...) esse filme que começa no Rio e termina no Nordeste é o mais paulista dos filmes, no sentido em que exprime, mais do que qualquer outro, o sentimento de ser brasileiro um pouco a contragosto." E ainda: "Fernanda Montenegro parece uma típica natural de São Paulo: individualista, não raro mesquinha, de caráter duvidoso."




RESUMO
ESPAÇO, PODER E VIOLÊNCIA EM "CENTRAL DO BRASIL"


Trata-se de um estudo sobre o filme "Central do Brasil", de Walter Salles Jr. O artigo propõe uma leitura da inversão dos espaços na narrativa do filme. O autor analisa a tradição cinematográfica brasileira e a originalidade do filme em questão. Trabalha com os seguintes conceitos: espaço, lugar, disciplina e norma social. As fontes do artigo são o roteiro publicado do filme, a crítica publicada em revistas e jornais nacionais.
PALAVRAS-CHAVE: Espaço; Cinema; Violência.



RÉSUMÉ
ESPACE, POUVOIR ET VIOLENCE DANS LE FILM "CENTRAL DO BRASIL"


Il s'agit d'une étude sur le film "Central do Brasil", de Walter Salles Jr. L'article propose une lecture de l'inversion des espaces dans l'histoire que ce film raconte. L'auteur de l'article analyse le cinéma brésilien et l'originalité de ce film là. Il travaille avec les concepts suivants: espace, lieu et norme sociale. Les sources de l'article sont le scénario publié du film, la critique parue dans les revues et les journaux nationaux.
MOTS-CLEFS: Espace; Cinéma; Violence.




Índice Principal  |  Normas Para Publicação
Número 15 - setembro de 1999  |   Universidade Federal da Paraíba  |  Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPb


Este site foi modificado pela última vez em 01 de setembro de 2001, por Carla Mary S. Oliveira.

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