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Os Sermoens de Pe. António Vieira (1608-1697):
pensando caminhos para uma análise histórica

 
Luís Filipe Silvério Lima
USP

Resumo: A proposta dessa comunicação é refletir sobre a relação História-Literatura e suas ligações com nossa pesquisa: os sermões do Pe. Antonio Vieira. O tema tem direto contato com a literatura sobre o jesuíta. Marcado muito mais por sua obra oratória, que lhe rendeu o título de "Imperador da língua portuguesa", dado por Pessoa, Vieira se torna tema ambíguo para os historiadores, pois sempre visto, especialmente no Brasil, como pertencente aos estudos literários. Não pretendemos dar conta exaustivamente desses aspectos, mas sim elencá-los e realizar um exercício reflexivo. Para tanto, vamos abordar os aspectos mais gerais da discussão sobre as relações História-Literatura, vistas pelo viés da narrativa histórica e da estrutura textual, tentando enfeixar esses pressupostos para indicar procedimentos na análise dos sermões de Vieira. Não vamos realizar uma periodização das idéias de História e Literatura. Queremos identificar, ou melhor, pontuar uma possível origem dessas idéias e verificar seu estatuto e relações hoje, para a partir daí pensar nosso "objeto": Antonio Vieira.

Verdade narrada. Narração da verdade

HISTOIRE, s.f: c'est le récit des faits donnés pour vrais;
au contraire de la fable, qui est le récit des faits donnés pour faux
Voltaire, verbete "História", na Enciclopédia (1765)

Um dos problemas e aproximações nas relações entre História1 e Literatura está centrado na questão do modo como se narra. A história, durante muito tempo, na cultura ocidental, constituiu um estilo discursivo (ou narrativo) junto à fábula, à pregação ou à épica. Contudo, a partir do século XVIII, especialmente na França, começou a haver uma preocupação em definir História para além de uma estrutura narrativa, que acabou por contrapô-la à Fábula (ou à Ficção, usando um termo mais próximo e mais anacrônico), vendo na História, a verdade e na Fábula, a mentira.2

Mais do que isso, houve uma preocupação, entre os philosophes, os enciclopedistas e seus opositores, em definir o modo de se escrever a história não só enquanto "estrutura formal" (como diríamos hoje) mas enquanto método de conhecimento.3 Exemplos disso estão nos escritos de Abbé de Mably (O estudo da História, 1775, Sobre a maneira de escrever a História, 1783), D’Alambert (Reflexões sobre a história e suas diferentes maneiras de escrever, 1776) ou Voltaire (verbete História, na Enciclopédia, 1765)4. Como podemos reparar nos títulos das obras de Mably e D’Alambert, a preocupação com a questão da narrativa, mais precisamente, o modo como se escreve a história, estava presente, como também em Voltaire, que, no início do verbete da Enciclopédia, definiu-a história como narração.

Voltaire foi além ainda e dividiu a história em:

(…) l'histoire des opinions, qui n'est guère que le recueil des erreurs humaines; l'histoire des Arts, peut-être la plus utile de toutes, quand elle joint la connoissance de l'invention & du progrès des Arts, la description de leur méchanisme; l'Histoire naturelle improprement dite histoire, & qui est une partie essentielle de la Physique.

L'histoire des événemens se divise en sacrée & profane. L'histoire sacrée est une suite des opérations divines & miraculeuses, par lesquelles il a plû à Dieu de conduire autrefois la nation juive, & d'exercer aujourd'hui notre foi.5

A "história de eventos" foi dividida: a esfera divina não pertence mais à história dos homens, está circunscrita ao campo da fé. Ela teve seu tempo, explícito nas Sagradas Escrituras. O "tempo histórico" agora pertence ao homem. A história profana se preocupa com o que aconteceu ao homem (pela ação do homem), enquanto explicação do presente. Assim a história mais importante seria a história do Império Romano pois foi este que definiu as instituições do século XVIII: "L'histoire de l'empire romain est ce qui mérite le plus notre attention, parce que les Romains ont été nos maitres & nos législateurs."6

Do mesmo modo, o abade Mably vai indicar, retomando a assertiva ciceroniana, que a história serve como exemplo para o presente, porém é mais do que mero amealhado de fatos (ou exemplos morais). Há nela, mais do que uma estrutura narrativa, um fio organizador que deve ser percebido, que está ligado à compreensão do passado como imagem e reflexão do hoje "iluminista’ que deveria ser criado.7 A retomada do Império Romano não foi exclusividade de Voltaire; Montesquieu, Diderot, Mably, Beaufort, Condillac, Linguet, entre outros, se detiveram no mundo latino clássico. Da mesma forma, a história da formação da França, como o Império Carolíngeo, tornou-se tema dos historiadores franceses do XVIII.8

O espírito de divisão e classificação construiu um arcabouço de disciplinas que buscam a Verdade. A História será um dos campos da grande tabela dos conhecimentos iluministas, mesmo para os opositores da Enciclopédia, como Mably.

Sobretudo nas últimas três décadas, o repertório conceitual dito Moderno se vê detonado em um torvelinho de inquietações. E a História, fundada nesse campo epistemológico, se repensa. A diferença entre fábula-ficção e história, estabelecida por Voltaire, se redimensiona. O narrar fatos verdadeiros necessita da definição de Verdade, porém a Verdade se mostra multifacetada, senão, segundo algumas linhas, inexistente. Nessa aporia da História, nos interessa neste momento focar a percepção da realidade, para uma reflexão sobre a História e sua ligação com a linguagem e a narrativa.

No seu livro Kaspar Hauser ou a Fabricação da realidade, Blikstein se deteve nessa questão.9 Traçando um panorama da Lingüistica e da Semiótica, o linguista deu algumas pistas para o entendimento da percepção do Real. Sua grande crítica à Semiótica, em geral, foi a desvinculação entre o processo de significação e a "coisa extra-lingüística", muitas vezes confundida com o referente. Blikstein mostrou, exatamente, a diferença entre referente e "coisa extra-língüistica" (ou a realidade). A percepção é o mediador entre realidade e referente, entretanto, para além de Saussure, a percepção é fruto de uma práxis que estabelece um aparelho perceptivo, que, por sua vez, possibilitará a semiose e, assim, a constituição da linguagem (dos significantes). O significante assim deixa de ser mero receptáculo vocálico-fonético estabelecido por convenções sociais para ter uma ligação direta com o referente. Contudo, menos do que uma relação vetorial realidade> práxis> referente> linguagem (símbolo), Blikstein apontou que a linguagem, entendida como um artefato cultural, também vai estabelecer a práxis, ou melhor, o modo de entender e atuar na realidade. Nesse círculo dinâmico, no qual a linguagem estabelecida assume função reguladora e, até, conservadora, estabelece-se uma não-hierarquia entre o referente, o significado e o significante.10

Se aceitarmos esse modelo de percepção (ou fabricação, nos dizeres de Blikstein) da realidade, ficamos com um problema sobre a sinonímia entre Verdade e realidade, pois realidades são tantas quantas as práxis e significações. A História como narrativa da Verdade (ou dos fatos verdadeiros) precisa ser repensada.

Nesse sentido, como definir História? Hayden White, no final da década de 70, ao invés de definir suas fronteiras, embaçou seus limites, comparando História e Literatura (ou Ficção), propondo que os Trópicos discursivos de ambas são os mesmos.11 Menos que um discurso próprio, como no século XVII, para White, Clio tem sua forma similar à de Calíope, forma esta, por sinal, que poderia resumir qualquer tipo de discurso. O discurso, para ele, estaria definido em quatro tropos ou figuras de linguagem: a metáfora, a metonímia, a sinédoque e a ironia, que seriam mais do que topoi, seriam estruturas narrativas. A História perderia seu referencial: a busca da Verdade, tornando-se mera narração, equiparando-se à Fábula.

Assim, a História foi vista, para White, sobretudo como narração, que estaria expressa na historiografia. Nesse caminho, nos Paul Ricouer pensou a história a partir dos elementos de Tempo e narrativa.12 Quais são seus pontos de partida? Santo Agostinho (tempo) e Aristóteles (mimese). O pensamento de Agostinho sobre o tempo tem duas características que permitiram Ricoeur desenvolver seu raciocínio: o seu caráter fundador e a percepção do tempo, pelo homem, de maneira "psicológica". É este enfoque que interessou a Ricouer: a percepção do tempo, não o tempo per si. Isto porque seu objetivo é discutir a narração, entendida como processo mimético, como a Poética aristotélica. Mimese entendida como imitação criativa (no limite, a narrativa do "como-se")13, que, como ressaltado por Ricouer, teria uma função prática (mimese praxêos)14, estabelecida na interação leitor-texto. A partir desses pressupostos (o tempo e a mimese, interrelacionados), Ricoeur vai proceder uma análise historiográfica, na qual o fiel da balança torna-se a narrativa. Para ele, como para Veyne, a história "não passa de uma narrativa verídica",15 porém, poderíamos dizer, ao contrário de Voltaire: o que interessa, para esses autores, é a "narrativa" não o "verídica". Ricouer não entra na discussão se a História tem um estatuto científico, como postulado por De Certeau16 e negado por Veyne, pois não era seu campo a esse momento. A observância do texto está em encontrar as estruturas narrativas (o tempo e os elementos delimitados já por Aristóteles, como a intriga) na historiografia, pensando em uma "história-narrativa", mais do que uma ciência histórica.

Dentro desse conceito de "história-narrativa", em inícios da década de 90, o teórico literário, Walter Mignolo, em seu artigo "Lógica das diferenças e política das semelhanças",17 desenvolveu uma tipologia conceitual para definir História e Literatura (ficcional). A sua chave de compreensão está no conceito de convenção (C), entendido por ele como

(…) numa comunidade Cm, sempre que todo membro M, ao realizar a ação A, realize-a e espere que os outros membros de Cm (…) reajam de acordo com a convenção C, porque C é de conhecimento mútuo entre os membros de Cm para realizar A.18

Convenção estabelecida a partir de uma necessidade. No caso, Literatura e História seriam as respostas, do mundo ocidental, para as necessidades das comunidades humanas, respectivamente, de "projetar sua energia criativa" e "conservar e transmitir o passado".19 Ao contrário de White, Mignolo definiu essas narrativas (respostas) como diversas, estando suas diferenças na "convenção da ficcionalidade" e na "convenção da veracidade".20 São convenções estabelecidas no meio social de uma comunidade, como seriam os signos, para Saussure.

Esses três autores, que pensam a história, a historiografia e a narração, dão, claramente, um grande enfoque no texto, no discurso. No limite, houve uma retomada das posições "pré-iluministas" e iluministas que viam a História como um gênero discursivo, ou ainda, uma das Musas, filhas da Memória. Porém, ao contrário dos iluministas, a História, nessa nova acepção, não é a Verdade narrada e sim, Narração da verdade.

Essa posição tem sido debatida. A dissolução da importância do Real (a Verdade da narrativa), por parte dos historiadores, foi o que chamou a atenção de Josep Fontana - num grande balanço historiográfico do que se convencionou chamar Pós-modernismo21 - ou de Bom Meihy - em comentário ao texto citado de Walter Mignolo.22 Esses artigos pensam sobre uma perspectiva materialista, vendo uma das grandes diferenças da História e Literatura na função social do historiador.23 Este argumento, porém, poderia caber no que Ricouer apontou na teoria mimética de Aristóteles: a mimese praxêos ou "Mimese III", na divisão do historiador francês.24

Podemos, ao invés, retomar o modelo da "construção da realidade" proposto por Blikstein. A História é uma narrativa, porém essa narrativa resulta em uma práxis; esta por sua vez, define traços de identificação que irão determinar uma percepção a qual determinará o referente, a referenciação da realidade, e assim por diante. O referente do historiador será um, o do ficcionista será outro, pois suas práxis serão distintas. É necessário, entretanto, pensar que nossa determinação em cima do "objeto" o modifica. O "objeto" deixa de sê-lo em si, para se tornar "objeto visto por um observador". No limite, pelo entendimento de Blikstein, a realidade só pode existir para nós se "modificada" ou, melhor, referenciada; a realidade sem esse processo de construção seria uma "amálgama de manchas".25

O "objeto" tanto da Literatura quanto da História seria a realidade, porém a observação (percepção) dos dois campos sobre esta vai produzir dois referentes diversos e, portanto, duas significações diversas da realidade. Mais do que isso, pertencem a duas práxis (duas metodologias e objetivos) diferentes, como irão determinar linguagens diversas que redimensionarão as práxis (já diversas) e assim por diante. Mais do que convenções estabelecidas social-culturalmente, são processos distintos de "fabricação da realidade" e de atuação nela. Pensemos isso em relação a obra vieirense.

Um labirinto no meio do caminho

- Em todos [os caminhos]- articulei com um certo temor - agradeço e venero sua recriação do jardim de Ts’ui Pen.

- Não em todos - murmurou com um sorriso - O tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo.

BORGES, "O jardim dos caminhos que se bifurcam", (1944)

Nosso "objeto" de pesquisa se situa na tênue fronteira entre Literatura e História. Estudar os sermões de Padre Antonio Vieira é em si um estudo de limite, pois, para além da não definição de História, a obra de Vieira, menos do que documento histórico, é abordada como texto literário, especialmente no Brasil. Os sermões do jesuíta são consideradas peças exemplares do uso da língua, como também de um estilo artístico-literário denominado "conceptismo", inserido na capciosa expressão "Barroco". A obra vieirense pode ser (e o é) caracterizada por Literatura, ou melhor, como objeto válido para os estudos literários devido à reflexão e uso feito em cima da linguagem. Em outras palavras, pela sua função poética, como definido por Jackobson.

O entendimento que nos propomos a fazer é o da obra sermônica do loiolano enquanto um documento visto por um historiador.26 Vieira, nas abordagens históricas mais recentes, tem se tornado um objeto fragmentário, devido ao próprio tamanho e complexidade do "objeto". Por ser esse vasto caleidoscópio de difícil compreensão, as análises da historiografia têm recortado um aspecto temático da obra de Vieira: Vieira e a política, Vieira e os negros, Vieira e os índios, Vieira e os judeus, etc.. Essa abordagem apresenta, menos que uma busca pelo entendimento de Vieira per si, um interesse "temático", talvez explicitados na partícula "E". No geral, os resultados dessas construções analíticas são uma comparação entre algo maior (o tema abordado) e a perspectiva vieirense, visto como exemplo da questão estudada no século XVII. Ao invés do "E", poderíamos também pensar no "EM" ou ainda no "DE", para entender o assunto abordado através e dentro do pensamento vieirense. Nesse sentido, a análise interna ao texto é imprescindível. Esse caminho apresenta alguns desvios, nos quais História e Literatura se confundem. O primeiro está na relação texto-pregação. O segundo, na posição do "narrador/autor" no tempo. Permeando todo esse caminho, há o campo entre diacronia e sincronia.

A grande parte dos sermões que temos está na editio princeps. Poucos são aqueles que foram publicados ou republicados a partir das edições em folhetos ou manuscritos inéditos. Há ainda aqueles de autoria duvidosa (alguns apócrifos sabidamente), presentes, em sua maioria, em publicações estrangeiras feitas ainda em vida do pregador.27 O caminho usual dos historiadores, contudo, não passa por analisar esses textos parenéticos enquanto textos publicados, revistos e reordenados algumas décadas após a pregação para impressão na editio princeps. O ponto de partida, em geral, é: considerar primeiro como corretas as datas e locais da pregação indicadas nos Sermoens; segundo, não proceder a comparação com outras versões (quando estas existem) nem pensar as diferenças entre o momento suposto da pregação e o momento posterior de escritura e publicação. Além desses pontos, temos que refletir, mesmo que no campo hipotético, pois não temos evidências, sobre as diferenças entre o discurso oral, a oratória sacra, e o escrito, o sermão publicado. Este último aspecto apresenta-se como um primeiro desvio do caminho do historiador, pois, no limite, desenvolver a discussão sobre a oralidade (da qual não temos evidências) e a escrita (nossa evidência) é entrar no local da ucronia. Contudo, não é necessário ficcionar o momento da pregação; podemos por aproximações, baseadas nos manuais de oratória e homilia, nas descrições das missas, refletir sobre as diferenças entre os dois "textos". Mais do que isso, temos que ter em mente que a sociedade ibérica "barroca" era uma sociedade oral, ligada à teatralidade, ao espetáculo, que, por exemplo, irá permitir a imagem de Calderón de que La vida es sueño.

Voltando ao campo do documento textual, sabemos, por algumas comparações entre diferentes publicações das mesmas homilias,28 que os sermões publicados na editio princeps foram, muitas vezes, reescritos. Um exemplo estaria nos Discursos sobre as Cinco Pedras da Funda de David, primeiramente pregado e publicado em italiano, traduzidos depois para espanhol, e, por último, para português. Como indicado por Valmir Muraro, as várias e diversas edições podem nos permitir pensar sobre o percurso traçado pelo pensamento vieirense.29

De outra parte, a existência de sermões em folhetos que não foram modificados nos Sermoens, como o S. do Esposo da Mãe de Deus S. José (1644), dão um outro lado possível do prisma. Há ainda aqueles que foram escritos propriamente para a publicação, caso da oitava parte, sobre S. Francisco Xavier (1694), em resposta a uma encomenda da Rainha Maria Sofia de Neuburgo. Sem contar os que não possuem indicação de data e/ou local de pregação, como o de Santa Tereza.

Esses pontos devem ser considerados ao se tentar, por meio dos sermões, realizar uma análise do pensamento vieirense. Não podemos somente contextualizar o momento da pregação, é necessário proceder uma crítica documental que contextualize também o momento da escritura e da publicação. O caminho usual, contudo, procede em duas vias: a observação dos sermões pelas datas da editio princeps, que pode complicar o processo de periodização; ou a consideração de modo sincrônico dos sermões, que prescinde da periodização30 e analisa o pensamento vieirense como um todo unívoco, também a partir da reorganização dos sermões.31

O que vemos como essencial para o entendimento da parenética do jesuíta e de seu pensamento, enquanto historiadores (da cultura, das idéias, das mentalidades…)32, é percebê-lo no eixo da diacronia, buscando identificar as mudanças (ou as permanências) dentro do que Bom Meihy chamou de "Teoria Geral do Padre Antônio Vieira", expressa na formulação do projeto do V Império.33 O discurso do historiador difere tanto do teórico da literatura (mais sincrônico) quanto do ficcionista, ou mesmo do próprio Vieira. Não cabe, por exemplo, numa perspectiva historiográfica atual, escrever uma História do Futuro34, pois o subsídio do historiador é o passado, evidenciado em documentos (resquícios de um outro tempo). O historiar assim é menos narrar de fatos que aconteceram (ou, no caso, que acontecerão), e mais, pensar sobre o passado de modo diacrônico, a partir do presente. Vieira pôde narrar o Futuro, historicamente, pois estava definida a Verdade do Futuro, e seu posicionamento histórico foi um posicionamento de "gênero narrativo":

Os profetas não chamaram história às suas profecias, porque não guardam nelas o estilo nem as leis de história: não distinguem os tempos, não assinalam os lugares, não individuam as pessoas, nem seguem a ordem dos casos e dos sucessos, e quando tudo isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas, disfarçadas em figuras, escurecido com enigmas e contado ou cantado em frases próprias do espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade e admiração dos mistérios, que à notícia e inteligência deles.35

Para Vieira, no século XVII, o tempo futuro poderia ser narrado pois já inscrito no Infinito Divino (como proposto por Agostinho e São Tomás), mesmo que dependente das causas segundas - a ação do homem estabelecida dentro do livre-arbítrio. Vieira, porém, acreditava na inexorabilidade do tempo, visto como um vetor linear, o que expressa por meio de tropos que indicam, como no Sermão do Mandato, de 1643, sua ação corrosiva que "tudo gasta, tudo digere, tuda acaba.".36

Não podemos narrar como Vieira nem o que Vieira teria dito, pois, em primeiro lugar, estamos num momento diferente (o mundo atual), e segundo, porque nossa práxis e nossa linguagem vai buscar um discurso (confundindo, propositadamente, discurso e pensamento) organizado numa percepção histórica que se baseia nos fatos, nas evidências que restaram do passado. Isso não significa acreditar que as evidências são a Verdade do passado. Como demonstrado por Hayden White, Paul Ricouer ou Walter Mignolo, a história é uma versão, pois narração. Porém o seu referente, que no limite é a realidade tangível, é percebido dentro de um "capital cultural",37 adjetivado de histórico, historiográfico ou ainda historiológico.

O historiador assim estabelece algumas distâncias no seu processo "discursivo". A primeira estabelecida na relação presente (seu), passado (do objeto), na qual a reflexão se dá na esfera do presente buscando a realidade intangível do passado, que só será percebida por meio do referente, no limite, o documento (no nosso caso, o sermão impresso). Essa percepção está organizada por uma linguagem e uma práxis, que vão definir o tipo de construção da realidade do passado. O enfoque, a constituição do discurso e a prática do historiador diferem daqueles do ficcionista. Um exemplo, dentro do estudo do "barroco" português e da linguagem, estaria na obra de Saramago, Memorial do convento.38

O narrador do romance está no nosso presente, como nos indicam alguns trechos ("construtores de aeronaves, se tal palavra já se diz nestas épocas"; "este tal foi o infante D. Henrique, consoante o louvará um poeta por ora não nascido"; "eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz")39 Porém ele narra como se estivesse no passado, narrando no Presente do Indicativo. O narrador pode então se transportar ao passado para, a partir dele, recriá-lo. O referente do narrador seria, a grosso modo, o mesmo do historiador: o passado. O seu passado pode ser recriado de dentro dele, podendo estabelecer um campo sincrônico (pela linguagem) no qual presente se dobra no passado. Contrariamente do narrador do Memorial, o historiador narra o passado do presente, usando, inclusive, o Pretérito. Seu passado será entendido (ou construído) do presente. A compreensão do discurso homílico não poderá ser feito a partir do mesmo ponto de sua confecção (o passado). Sua compreensão se dará na busca do entendimento interno, auxiliado pelas fontes, porém tendo como ponto de partida o presente do historiador. O Vieira do historiador não poderá, como o "padre voador" de Saramago, ser narrado dentro de seu próprio tempo, pois este, pela percepção historiológica, não pode ser recriado.

Por outro lado, temos claro que o texto sermônico não é um documento cartorial nem um monumento construído intencionalmente para perpetuar (rememorando) o passado. O sermão, acima de tudo, é uma peça retórica, dentro do estilo mais consagrado da retórica, desde os romanos: a oratória. Os sermões foram concebidos como tal e sua publicação, além da implícita veiculação das idéias (teológico-políticas) do seu autor, tinham como finalidade servir como exempla de sermão.40 Os sermões assim também devem ser entendidos - não só pelo literato - dentro de sua retórica, de sua linguagem. Nesse sentido, o trabalho clássico de Saraiva, O discurso engenhoso,41 permite uma renovada abordagem para o historiador do sermão vieirense.

Saraiva faz, em seu livro, uma análise do texto sermônico de Vieira. Sua preocupação não está em historicizar ou periodizar os sermões, e sim, em compreender sua estrutura lingüistica e discursiva. Procedendo o estudo do uso de conceitos e palavras por Vieira, vai nos indicar um duplo jogo estabelecido entre significante e significado, no qual não há uma direção única, sendo que significante pode estabelecer o significado e vice-versa. Da mesma forma, a estrutura lógica discursiva é muitas vezes invertida, sendo a proporção quebrada para, propriamente, redefini-la.

Para Saraiva, a este momento, a obra homílica do jesuíta torna-se um campo fértil para o estudo da lingüistica e das relações estabelecidas na construção do discurso. Em nossa visão, esse processo de entendimento deve estar presente em uma análise histórica que procura compreender o sermão através do sermão, como proposto anteriormente. Assim, para além de estabelecer, de forma definida, o campo diacrônico, dentro desse tipo de análise documental, faz-se necessário observar a estrutura discursiva, de modo sincrônico.

Atentar para a estrutura discursiva do sermão também responde de certo modo a uma demanda do próprio documento, pois produzido por um autor preocupado com e ciente do uso da palavra, da narração e do como narrar. Isto fica evidente no trecho citado da História do Futuro, como também no "meta-sermão" da Sexagésima, que abre a editio princeps.

Isso, contudo, não significa a igualação entre as disciplinas História e Literatura, Teoria Literária ou Lingüistica, ou melhor, não faz prescindir a observação própria e particular ao historiador sobre o "objeto Vieira". Mais do que isso, o próprio "objeto Vieira" torna-se outro além do "Vieira-escritor",42 dentro do foco (ou da percepção) do historiador.

Menos do que uma questão de versão sobre o mesmo referente43, o referente é outro, pois delimitado por uma percepção, uma práxis e uma linguagem diversas. Como no conto de Borges, "O jardim dos caminhos que se bifurcam",44 há uma multiplicidade de ‘realidades’ (ou referentes), que tenderia ao infinito, porém estamos condenados a só perceber, vivenciar, realizar45 uma.


Notas

1. a palavra História começará vezes com maiúscula e outras com minúscula. A intenção foi separar História, disciplina, de história, narrativa ou historiografia, ou ainda história, fatos acontecidos. Muitas vezes repetimos simplesmente o uso dos autores citados, como também, em outros casos, narrativa e disciplina se confundiram. Nesse caso, optamos pela maiúscula. A diferença entre estória-história, presente antigamente no português, não precisou ser contornada nesse texto, seja com a explicitação do sentido usado na frase, seja com o artíficio de se remeter ao uso antigo, mas serve para pontuar ou indicar, a título de ilustração, alguma mudança de percepção que ocorreu no meio do caminho.

2. WHITE, H.. Trópicos discursivos. São Paulo, EDUSP, 1997; MIGNOLO, W.. "Lógica das diferenças e política das semelhanças: da Literatura que parece História ou Antropologia e vice-versa", In: CHIAPPINI, L & AGUIAR, F.W. (orgs.). Literatura e História na América Latina. São Paulo, EDUSP/Angel Rama, 1993.

3. DARNTON, R.. O Iluminismo como negócio. São Paulo, Cia. das Letras, 1996, pp. 324 e ss.; WHITE, H, op.cit., pp. 137 e ss.;

4. DARNTON, R., op. cit.; WHITE, H., op. cit, p.159-160.

5. VOLTAIRE, "Histoire", in Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, par une Société de Gens de Lettres, Tome Huitième (H-IT), A Neufchastel, Chez Samuel Faulche & Compagnie, Libraires & Imprimeurs, 1765, § 220-221, compulsada em: http://www.unifi.it/riviste/cromohs/bibliot/philmeth/voltaire/histoire.html .

6. VOLTAIRE, op.cit., § 223.

7. MABLY, G.B., Abade de. De L'etude De L'histoire. A Monseigneur Le Prince De Parme.Première Partie. Chapitre Premier. Introduction Que L'histoire Doit Être Une École De Morale Et De Politique, compulsada em http://www.unifi.it/riviste/cromohs/bibliot/philmeth/mably/

8. Estas reflexões são do professor italiano, Luciano Guerci. Alguns de seus textos: GUERCI, L. "La Republique Romaine di L. de Beaufort e la discussione con Monstesquieu", S/d, s/l; "Linguet, il mondo antico e l'impegno nel presente", in: GUERCI, L. Linguet storico, s/l, s/e, s/l; "Mably tra storiografia e politica", mimeo.

9. BLIKSTEIN, I.. Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. São Paulo, Cultrix, 1985.

10. Se seguirmos idealmente o modelo teórico proposto por Blikstein, diríamos que o início foi determinado pela necessidades práticas que determinaram a práxis. Assim no caso dos esquimós que possuem cerca de 20 tipos diferentes de qualificações de neve, essas diferenciações adviriam do fato da necessidade de identificar o terreno, as condições do meio do Ártico para sobreviver. Contudo, não poderíamos estabelecer a origem de todas as situações que teriam dado origem às palavras, pois muitas dessas origens só existiriam num mundo que já começara a se comunicar e a "fabricar a realidade".

11. WHITE, H.. Trópico do discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura. op.cit.

12. À rigor, não é este o objetivo último dos dois volumes de Ricoeur, interessado propriamente na construção do discurso de modo geral, porém ao longo do primeiro volume detém-se na questão da historiografia, que nos interessa: RICOEUR, P.. Tempo e narrativa. São Paulo, Papirus, 1995, v.I.

13. RICOEUR, P., op. cit., p. 101.

14. Idem, p.110.

15. VEYNE, P.. Comment on écrit l'histoire. Paris, Seuil, 1971, p.13, apud RICOEUR, P., op. cit., p.243. É importante notar que o aspecto de verídico só será desenvolvido no segundo volume, contraposto ao de "ficcional".

16. DE CERTEAU, M.. A escrita da História. Rio de Janeiro, Forense, 1982. Esta observação nos foi primeiro mostrada na palestra de Roger Chartier, no Departamento de História/USP, sobre "História Cultural", proferida no semestre passado.

17. MIGNOLO, W., "Lógica da diferença e política da semelhança…", op.cit.

18. MIGNOLO, W. op. cit., p.122.

19. Idem, p. 121

20. Idem, p. 123

21. FONTANA, J.. História: análise do passado e projeto social. São Paulo, EDUSC, 1998, texto apresentado em uma conferência no Congresso Regional da ANPUH/SP, "O sujeito na História", em 9 de outubro de 1998.

22. MEIHY, J.C.S.B., "Viagem em torno de Mignolo: a Literatura e a História", In: CHIAPPINI, L. & AGUIAR, F.W.. Literatura e História na América Latina, op. cit.. Sobre o mesmo assunto ainda de Bom Meihy: "A literatura como história; revolução e circunstância. A produção intelectual brasileira e a Guerra Civil Espanhola", IANNONE, C.A. et al.(org.). Sobre as naus da iniciação. Estudos portugueses de Literatura e História. São Paulo, Unesp, 1998..

23. Não pretendemos pensar na questão do estatuto científico da História, outro ponto de diferenciação, discutido por Bom Meihy.

24. RICOUER, P., op. cit., pp. 105 e ss.

25. BLIKSTEIN, I., op. cit., p. 76.

26. Muitas das reflexões aqui propostas já foram desenvolvidas pelo Prof. Sebe: MEIHY, J.C.S.B., "Para uma teoria geral do Padre Antonio Vieira", palestra proferida no evento "Vieira Plural", out. 1997, (mimeo).

27. Sobre esse assunto ver: FOLCH, L.T., "A obra do Padre António Vieira em Espanha", Oceanos, 30/31, Lisboa, abril/setembro 1997, pp.82-89. Continua ainda sendo o grande levantamento, mesmo que desatualizado, de sermões e obras o de Serafim Leite: LEITE,S.,S.J.,. História da Companhia de Jesus no Brasil, Lisboa, 1950, tomo IX, revisto por Margarida Mendes Vieira em seu livro: A oratória barroca de Vieira. Lisboa, Caminho, 1989.

28. MEIHY, J.C.S.B., "Vieira utópico: Sor Juana distópica", In: MEIHY, J.C.S.B. & ARAGÃO, M.L.(coord.). América: ficção e utopias. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1994; MURARO, V.F., Vieira: navegante do profetismo. Tese de Doutorado em História Social, FFLCH/USP, 1998.

29. MURARO, V.F., op.cit.

30. Dois exemplos recentes nesse sentido estão nos trabalhos de SANTOS, B.C.C. O pináculo do temp(l)o. O sermão do Padre António Vieira e o Maranhão do século XVII. Brasília, Ed. UnB, 1997; COHEN, T.M., The fire of tongues. Antônio Vieira and the missionary church in Brazil and Portugal. Stanford, Stanford University, 1998.

31. NOVINSKY. A.. "Padre Vieira, a Inquisição e os Judeus." Estudos CEBRAP 29, São Paulo, n. 29, p. 172-181, março de 1991; "Sebastianismo, Vieira e o messianismo judaico", In: IANNONE, C.A. et al.(org.). Sobre as naus da iniciação. Estudos portugueses de Literatura e História. São Paulo, Unesp, 1998, pp.49-62; CAMPOS, F., "Política e utopia em Antônio Vieira", In: Anais do X Simpósio nacional de estudos missioneiros. 1994. pp. 261-281; Os trabalhos e os dias eternos. A escravidão africana nas obras de Antônio Vieira. Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP, São Paulo, 1993.

32. A falta de uma nomenclatura apropriada, menos do que um problema de significante, indica um repensar da história das idéias ou, ainda, do pensamento intelectual. Emprestamos essa reflexão de Chartier: CHARTIER, R.. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa, DIFEL, 1990, 1. cap.

33. MEIHY, J.C.S.B., "Para um teoria geral do Padre Antônio Vieira", op. cit.

34. VIEIRA, A., S.J.. História do Futuro. (Introdução, actualização do texto e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu). 2ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1992

35. VIEIRA, A., S.J., op. cit., p.53

36. Sermão do Mandato, 1643, Sermões, Lisboa, Lello, 1953, v. IV, p.289.

37. BOURDIEAU, P.. A miséria do mundo. Petrópolis, Vozes, 1998.

38. SARAMAGO, J.. Memorial do Convento. 11ª ed., Rio de Janeiro, Bertarnd, 1994

39. SARAMAGO, J., op. cit., pp. 89, 227, 257.

40. MENDES, M.V., op. cit., p.60 e ss.

41. SARAIVA, A.. Discurso engenhoso. São Paulo, Perspectiva, 1980

42. Vieira-escritor foi um nome de um congresso, por ocasião do 3º centenário de Vieira,, organizado por Margarida Vieira Mendes, que resultou em um livro: MENDES, M.V., PIRES, M.L.G. & MIRANDA, J.C. (orgs.), Vieira escritor. Lisboa, Cosmos Editorial, 1997.

43. Aqui estamos não falando de realidade, pois esta não é apreensível. A realidade apreensível se faz no referente.

44. BORGES, J.L., "O jardim dos caminhos que se bifurcam", In: Ficções. Porto Alegre, Ed. Globo, 1986, trad. Carlos Nejar, pp.78-82.

45. Aqui dispomos da ambigüidade do termo: no sentido do português corrente, fazer, e cometendo um barbarismo, ou melhor, um anglicismo, no sentido de conceber, perceber, se dar conta.