A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
Guy Debord
CAPITULO I
A SEPARAÇÃO CONSUMADA
Feuerbach - Prefácio à segunda edição de A Essência do Cristianismo
1 Toda a vida das sociedades
nas quais reinam as condições modernas
de produção se anuncia como uma
imensa acumulação de espectáculos.
Tudo o que era directamente vivido
se afastou numa representação. 2 As imagens que se
desligaram de cada aspecto da vida
fundem-se num curso comum, onde
a unidade desta vida já não pode
ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente
desdobra-se na sua própria unidade
geral enquanto pseudomundo à parte,
objecto de exclusiva contemplação.
A especialização das imagens do mundo
encontra-se realizada no mundo da
imagem autonomizada, onde o mentiroso
mentiu a si próprio. O espectáculo em
geral, como inversão concreta da vida,
é o movimento autónomo do nao-vivo. 3 O espectáculo apresenta-se ao
mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da
sociedade, e como instrumento de unificação. Enquanto
parte da sociedade, ele é expressamente o sector que concentra
todo o olhar e toda a consciência. Pelo próprio facto de este
sector ser separado, ele é o lugar do olhar iludido e da
falsa consciência; e a unificação que realiza não é outra
coisa senão uma linguagem oficial da separação generalizada. 4 O espectáculo não é um conjunto
de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada
por imagens. 5 O espectáculo não pode ser
compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das
técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é bem mais uma Weltanschauung
tornada efectiva, materialmente traduzida. É uma visão do
mundo que se objectivou. 6 O espectáculo, compreendido na
sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projecto do
modo de produção existente. Ele é um suplemento ao mundo
real, a sua decoração readicionada.
É o coração da irrealidade da sociedade
real. Sob todas as suas formas
particulares, informação ou propaganda, publicidade
ou consumo directo de divertimentos, o
espectáculo constitui o modelo presente da
vida socialmente dominante. Ele é
a afirmação omnipresente da escolha já
feita na produção, e o seu corolário
o consumo. Forma e conteúdo do espectáculo
são identicamente a justificação total
das condições e dos fins do sistema
existente. O espectáculo é também a presença
permanente desta justificação, enquanto
ocupação da parte principal do tempo
vivido fora da produção moderna. 7 A própria separação
faz parte da unidade do mundo,
da práxis social global que se
cindiu em realidade e imagem. A prática social,
perante a qual se põe o espectáculo
autónomo, é também a totalidade real
que contém o espectáculo. Mas a cisão
nesta totalidade mutila-a ao ponto
de fazer aparecer o espectáculo como
sua finalidade. A linguagem do espectáculo é
constituído por signos da produção
reinante, que são ao mesmo tempo
a finalidade última desta produção 8 Não se pode opor
abstractamente o espectáculo e a actividade social
efectiva; este desdobramento está ele
próprio desdobrado. O espectáculo que
inverte o real é efectivamente produzido. Ao mesmo tempo, a
realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do
espectáculo, e retoma em si própria a ordem espectacular
dando-Ihe uma adesão positiva. A realidade objectiva está
presente nos dois lados. Cada noção assim fixada não tem por
fundamento senão a sua passagem ao oposto: a realidade surge no
espectáculo, e o espectáculo é real. Esta alienação
recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente. 9 No mundo realmente reinvertido,
o verdadeiro é um momento do falso. 10 O conceito de espectáculo unifica
e explica uma grande diversidade de fenómenos aparentes. As suas
diversidades e contrastes são as aparências desta aparência
organizada socialmente, que deve, ela própria, ser reconhecida
na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios
termos, o espectáculo é a afirmação da aparência e a
afirmação de toda a vida humana, isto é, social, como simples
aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espectáculo
descobre-o como a negação visível da vida; como uma
negação da vida que se tornou visível. 11 Para descrever o espectáculo, a
sua formação, as suas funções e as forças que tendem para a
sua dissolução, é preciso distinguir artificialmente elementos
inseparáveis. Ao analisar o espectáculo, fala-se em
certa medida a própria linguagem do espectacular, no sentido em
que se pisa o terreno metodológico desta sociedade que se
exprime no espectáculo. Mas o espectáculo não é outra coisa
senão o sentido da prática total de uma formação
económico-social, o seu emprego do tempo. É o momento
histórico que nos contém. 12 O espectáculo apresenta-se como
uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada
mais diz senão que «o que aparece é bom, o que é bom
aparece». A atitude que ele exige por princípio é esta
aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua
maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da
aparência. 13 O carácter fundamentalmente
tautológico do espectáculo decorre do simples facto de os seus
meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que
não tem poente, no império da passividade moderna. Recobre toda
a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria
glória. 14 A sociedade que repousa sobre a
indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente
espectacular, ela é fundamentalmente espectaculista. No
espectáculo, imagem da economia reinante, o fim não é nada, o
desenvolvimento é tudo. O espectáculo não quer chegar a outra
coisa senão a si próprio. 15 Enquanto indispensável adorno dos
objectos hoje produzidos, enquanto exposição geral da
racionalidade do sistema, e enquanto sector económico avançado
que modela directamente uma multidão crescente de
imagens-objectos, o espectáculo é a principal produção da
sociedade actual. 16 O espectáculo submete a si os
homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu
totalmente. Ele não é nada mais do que a economia
desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da
produção das coisas, e a objectivação infiel dos produtores. 17 A primeira fase da dominação da
economia sobre a vida social levou, na definição de toda a
realização humana, a uma evidente degradação do ser em
ter. A fase presente da ocupação total da vida social
pelos resultados acumulados da economia conduz a um deslizar
generalizado do ter em parecer, de que todo o
«ter» efectivo deve tirar o seu prestígio imediato e a sua
função última. Ao mesmo tempo, toda a realidade individual se
tornou social, directamente dependente do poderio social, por ele
moldada. Somente nisto em que ela não é, Ihe é
permitido aparecer. 18 Lá onde o mundo real se converte
em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e
motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O
espectáculo, como tendência para fazer ver por
diferentes mediações especializadas o mundo que já não é
directamente apreensível, encontra normalmente na vista o
sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tacto; o
sentido mais abstracto, e o mais mistificável, corresponde à
abstracção generalizada da sociedade actual. Mas o espectáculo
não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o
ouvido. Ele é o que escapa à actividade dos homens, à
reconsideração e à correcção da sua obra. É o contrário do
diálogo. Em toda a parte onde há representação
independente, o espectáculo reconstitui-se. 19 O espectáculo é o herdeiro de
toda a fraqueza do projecto filosófico ocidental, que foi
uma compreensão da actividade,
dominada pelas categorias do ver; assim como se baseia no
incessante alargamento da racionalidade técnica precisa,
proveniente deste pensamento. Ele não realiza a filosofia, ele
filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou
em universo especulativo. 20 A filosofia, enquanto poder do
pensamento separado, e pensamento do poder separado, nunca pode
por si própria superar a teologia. O espectáculo é a
reconstrução material da ilusão religiosa. A técnica
espectacular não dissipou as nuvens religiosas onde os homens
tinham colocado os seus próprios poderes desligados de si: ela
ligou-os somente a uma base terrestre. Assim, é a mais terrestre
das vidas que se toma opaca e irrespirável. Ela já não reenvia
para o céu, mas alberga em si a sua recusa absoluta, o seu
falacioso paraíso. O espectáculo é a realização técnica do
exílio dos poderes humanos num além; a cisão acabada no
interior do homem. 21 À medida que a necessidade se
encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O
espectáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que
finalmente não exprime senão o seu desejo de dormir. O
espectáculo é o guardião deste sono. 22 O facto de o poder prático da
sociedade moderna se ter desligado de si próprio, e ter
edificado para si um império independente no espectáculo, não
se pode explicar senão pelo facto de esta prática poderosa
continuar a ter falta de coesão, e permanecer em contradição
consigo própria. 23 É a especialização do poder, a
mais velha especialização social, que está na raiz do
espectáculo. O espectáculo é, assim, uma actividade
especializada que fala pelo conjunto das outras. É a
representação diplomática da sociedade hierárquica perante si
própria, onde qualquer outra palavra é banida. O mais moderno
é também aí o mais arcaico. 24 O espectáculo é o discurso
ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu
monólogo elogioso. É o auto-retrato do poder na época da sua
gestão totalitária das condições de existência. A aparência
fetichista de pura objectividade nas relações espectaculares
esconde o seu carácter de relação entre homens e entre
classes: uma segunda natureza parece. dominar o nosso meio
ambiente com as suas leis fatais. Mas o espectáculo não é esse
produto necessário do desenvolvimento técnico olhado como um
desenvolvimento natural. A sociedade do espectáculo é,
pelo contrário, a forma que escolhe o seu próprio conteúdo
técnico. Se o espectáculo, considerado sob o aspecto restrito
dos «meios de comunicação de massa», que são a sua
manifestação superficial mais esmagadora, pode parecer invadir
a sociedade como uma simples instrumentação, esta não é de
facto nada de neutro, mas a instrumentação mesmo que convém ao
seu automovimento total. Se as necessidades sociais da época em
que se desenvolvem tais técnicas não podem encontrar
satisfação senão pela sua mediação, se a administração
desta sociedade e todo o contacto entre os homens já não se
podem exercer senão por intermédio deste poder de comunicação
instantâneo, é porque esta «comunicação» é essencialmente unilateral;
de modo que a sua concentração se traduz no acumular nas mãos
da administração do sistema existente os meios que Ihe permitem
prosseguir esta administração determinada. A cisão
generalizada do espectáculo é inseparável do Estado
moderno, isto é, da forma geral da cisão na sociedade,
produto da divisão do trabalho social e órgão da dominação
de classe. 25 A separação é o alfa e o
ómega do espectáculo. A institucionalização da divisão
social do trabalho, a formação das classes, tinha construído
uma primeira contemplação sagrada, a ordem mítica em que todo
o poder se envolve desde a origem. O sagrado justificou a
ordenação cósmica e ontológica que correspondia aos
interesses dos Senhores, ele explicou e embelezou o que a
sociedade não podia fazer. Todo o poder separado foi pois
espectacular, mas a adesão de todos a uma tal imagem imóvel
não significava senão o reconhecimento comum de um
prolongamento imaginário para a pobreza da actividade social
real, ainda largamente ressentida como uma condição unitária.
O espectáculo moderno exprime, pelo contrário, o que a
sociedade pode fazer, mas nesta expressão o permitido opõe-se
absolutamente ao possível. O espectáculo é a
conservação da inconsciência na modificação prática das
condições de existência. Ele é o seu próprio produto, e ele
próprio fez as suas regras: é um pseudo-sagrado. Ele mostra o
que é: o poder separado, desenvolvendo-se em si mesmo no
crescimento da produtividade por intermédio do refinamento
incessante da divisão do trabalho na parcelarização dos
gestos, desde então dominados pelo movimento independente das
máquinas; e trabalhando para um mercado cada vez mais vasto.
Toda a comunidade e todo o sentido crítico se dissolveram ao
longo deste movimento, no qual as forças que puderam crescer,
separando-se, ainda não se reencontraram. 26 Com a separarão generalizada do
trabalhador e do seu produto perde-se todo o ponto de vista
unitário sobre a actividade realizada, toda a comunicação
pessoal directa entre os produtores. Na senda do progresso da
acumulação dos produtos separados, e da concentração do
processo produtivo, a unidade e a comunicação tornam-se o
atributo exclusivo da direcção do sistema. O êxito do sistema
económico da separação é a proletarização do mundo. 27 Pelo próprio êxito da produção
separada enquanto produção do separado, a experiência
fundamental ligada nas sociedades primitivas a um trabalho
principal está a deslocar-se, no pólo do desenvolvimento do
sistema, para o não-trabalho, a inactividade. Mas esta
inactividade não está em nada liberta da actividade produtiva:
depende desta, é a submissão inquieta e admirativa às
necessidades e aos resultados da produção; ela própria é um
produto da sua racionalidade. Nela não pode haver liberdade fora
da actividade, e no quadro do espectáculo toda a actividade é
negada, exactamente como a actividade real foi integralmente
captada para a edificação global desse resultado. Assim, a
actual «libertação do trabalho», o aumento dos tempos livres,
não é de modo algum libertação no trabalho, nem libertação
de um mundo moldado por este trabalho. Nada da actividade roubada
no trabalho pode reencontrar-se na submissão ao seu resultado. 28 O sistema económico fundado no
isolamento é uma produção circular do isolamento. O
isolamento funda a técnica, e, em retorno, o processo técnico
isola. Do automóvel à televisão, todos os bens
seleccionados pelo sistema espectacular são também as suas
armas para o reforço constante das condições de isolamento das
«multidões solitárias». O espectáculo reencontra cada vez
mais concretamente os seus próprios pressupostos. 29 A origem do espectáculo é a
perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do
espectáculo moderno exprime a totalidade desta perda: a
abstracção de todo o trabalho particular e a abstracção geral
da produção do conjunto traduzem-se perfeitamente no
espectáculo, cujo modo de ser concreto é
justamente a abstracção. No espectáculo, uma parte do mundo representa-se
perante o mundo, e é-lhe superior. O espectáculo não é mais
do que a linguagem comum desta separação. O que une os
espectadores não é mais do que uma relação irreversível no
próprio centro que mantém o seu isolamento. O espectáculo
reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado. 30 A alienação do espectador em
proveito do objecto contemplado (que é o resultado da sua
própria actividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais
ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas
imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua
própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do
espectáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus
próprios gestos já não são seus, mas de um outro que Ihos
apresenta. Eis porque o espectador não se
sente em casa em nenhum lado, porque o espectáculo está em toda
a parte. 31 O trabalhador não se produz a si
próprio, ele produz um poder independente. O sucesso desta
produção, a sua abundância, regressa ao produtor como abundância
da despossessão. Todo o tempo e o espaço do seu mundo se
Ihe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtos
alienados. O espectáculo é o mapa deste novo mundo, mapa que
recobre exactamente o seu território. As próprias forças que
nos escaparam mostram-se-nos em todo o seu poderio. 32 O espectáculo na sociedade
corresponde a um fabrico concreto de alienação. A expansão
económica é principalmente a expansão desta produção
industrial precisa. O que cresce com a economia, movendo-se para
si própria, não pode ser senão a alienação que estava
justamente no seu núcleo original. 33 O homem separado do seu produto
produz cada vez mais poderosamente todos os detalhes do seu mundo
e, assim, encontra-se cada vez mais separado do seu mundo. Quanto
mais a sua vida é agora seu produto, tanto mais ele está
separado da sua vida. 34 O espectáculo é o capital a
um tal grau de acumulação que se toma imagem. Guy Debord (A Sociedade do
Espectáculo Capitulo I)