VIII. PEQUENOS CAUSOS
E CASOS ICONOCLASTAS
1 - O CASAMENTO
   Um belo dia estávamos na esquina da Praça com a Avenida (a mesma esquina do jornal, e onde nossos amigos Nelson e Tairone inventaram a hoje
tradicional "Lavagem da Esquina do Padre" - acredito que para lavar nossos pecados e cometer mais alguns), eu e Bolivar. Era uma daquelas tardes tediosas, mornas, sem nada acontecendo, sem nada para fazer, sem nada para inventar...

   O pior desses dias é que a gente acaba ficando sem assunto até para conversar, pois tudo já foi dito, escutado, pensado, e respensado. De repente, um caminhão desses pequenos, cheio de moradores da zona rural, pára junto ao pé de sabone-te (é uma árvore frondosa, pra quem não sabe), onde desde muitos anos reside uma barraca de acarajé.
  
   Outros carros menores, igualmente de carroceria, trazem mais gente. Para nossa surpresa, que só vemos estas cenas nas festas de junho, os casais formam uma filha atrás dos noivos, e vão se colocando assim sobre a calçada, até o último.

   Eu e Boli nem pestanejamos. Demos os braços e fomos enfileirar lá atrás. Em pouco tempo o pessoal não olhava pra frente, sem entender o que era aquilo que se passava.

   E nós ali, na maior seriedade...

2 - O FOGUETE
   Outra tarde terrível. Gilson tomara um vinho (teve um tempo em que isso era meio comum). A gente sem nada para fazer. A igreja estava aberta. Entramos. Logo depois dos primeiros bancos, um feixe de foguetes de vara jazia, pedindo para que alguém os soltasse.

   Dentre os fogos de artifício, este merece o título de
monumento à burrice: uma vareta comprida tem, à sua ponta, amarrado um colmo de bambu cheio de pólvora e um furo onde é aceso. Na outra ponta do colmo um saco de papel colorido cheio de bombas. Incendiada a pólvora, o treco sobe bastante alto, quando libera as bombas que explodem no céu. Até aí, tudo bem. O problema é que estas setas sempre descem, sem rumo, atingindo casas, pessoas, carros, etc., numa insana loteria.

   Pois bem, pegamos
emprestado um destes artefatos idiotas, e saímos com ele da seguinte forma: Gilson colocou a ponta no bolso, enquanto eu seguia atrás, como que escondendo a vareta. Andávamos como naqueles filmes do Gordo e o Magro (nada a ver com a realidade, não tou dizendo que ninguém é gordo), onde um faz o papel de sombra do outro.

   Ia tudo bem até que, lá pela altura do pé de sabonete, topamos com o santo sacristão, nosso estimadíssimo Antonio Prates. Tõe foi passando por nós e Gilson foi girando, para que este não visse o que estava atrás de si. Só que o movimento me forçou a girar também, um passo atrás do companheiro. Seu Antonio esqueceu a missa, tentando desvendar a razão daquela estranha conduta, e foi andando olhando para trás, enquanto nós andávamos de ré, dando tchau, forçados a ocultar o que levávamos...

   Mas isto - que me perdoe meu grande amigo, colega e confrade Éder David, ex-coroinha - são ossos do ofício de sacristão. Coisa pior fizeram os saudosos Maurício Lima Santos e Jaques Barão, tataraneto do próprio, que pegaram, quando jovens, os vaso de planta da frente da casa de minha avó e puseram na porta da igreja de Santana: nada de mais, não fosse Caetité aquela terra aristocrá-tica dos anos 50, e se não tivessem feito as referidas plantas de varal para peças íntimas das donzelas da Rua Nova...

   Sempre fui contra esses fogos de artifício. Mesmo naqueles tempos de molequeira. Gilson soltou-o sozinho. Coisa mais sem graça...

3 - PRECURSORES DA VÍDEO-CASSETADA
   Naqueles tempos - a gente precisa repetir - a cidade era mesmo pacata. Eis que um belo dia o Gilson Bolivar me chega, vai ao quintal onde havia escondido algo, e retorna com um cano de descarga de automóvel, que pegara sei lá onde (não me lembro se ainda tinha a oficina que fôra de meu avô). Era um começo de noite, ele entrou sem dizer uma palavra, e ia saindo com aquele treco enferrujado na mão, enquanto eu, na frente da tevê, via a movimentação.

   Ficar diante da tevê e perder uma aprontação de Gilson era algo que jamais me passaria pela cabeça. Levantei-me ligeiro e fui atrás, claro!

   A frente de nossa casa à rua Barão tem uma varanda, com uma meia parede. Ficamos ali em pé, ele sem me explicar nada. Foi aí que, após alguns minutos de espera, surgiu um carro (hoje, de madrugada, o movimento é maior...) Assim que o auto passou por nós, Bolivar lançou o velho cano de descarga, que caiu com grande ruído no chão de paralelepípedos: TEIMMM!

   Assustado, o motorista pára, dá uma ré, desce do carro, vem, olha o que aconteceu. Vê o cano no meio da rua, pega-o e vai conferir de onde se soltara. Ao constatar não ter sido de seu veículo, nós nos aproximávamos, solidários, tentando explicar o que poderia ter ocorrido...

   Com a maior cara-de-pau, colocávamo-nos à disposição do cidadão para
guardar a peça encontrada, pois o verdadeiro dono poderia retornar à procura dela. Devolvido o cano, retornávamos ao posto de lançamento, à espera de mais um carro a descer a Rua Barão de Caetité, e asim prestar a nossa colaboração ao bom andamento do trânsito - naqueles idos em que trânsito era mesmo uma palavra de gente da Capital...

   O
aperitivo acima foi apenas para ilustrar que o Gilson vivia a engendrar novidades que, via de regra, seria executadas em minha casa... Pois bem, não sei quanto tempo ele levou para bolar mais uma, e preparar sua execução, mas tempo era o que bem tínhamos.

   Chegou outra feita, naquele mesmo horário dilucular, com tudo pronto. Minha participação, como no caso anterior, foi de expectador e eventual participante. A artimanha consistia no seguinte: um pedaço de corda faria as vezes de
cobra. Era enrolada atrás dum matinho que nascia junto à parede da casa do Bispo, do outro lado da rua até a entrada de minha casa, onde ficaríamos sentados, à espera de algum transeunte.
  Primeiro foi uma moça, que não me recordo quem era. Depois veio o Ary, que trabalha na Delegacia: foi hilário - a cobra deu o bote, Ary saltou para trás, apontando para a fera gritando: "Ó, ó, ó..."

   A cada susto explicávamos a brincadeira, a pessoa se divertia, e então arrumávamos tudo de novo, com o prévio acordo de respeitar apenas mulheres grávidas e idosos. Pois bem, num momento em que era o Bolivar quem iria pegar a próxima vítima, eis que surgem dois trabalhadores braçais, estilo armário de casal, conversando descontraídos...
  Enquanto um deles andava pela calçada, o companheiro seguia beirando o meio-fio (os caras eram tão grandes que não cabiam os dois lado a lado!)

   Temeroso, cochichei ao Bolivar: "Estes aí a gente não vai assustar, não é?"

   Mas o amigo, olhos vidrados onde estava a cobra de mentira, apenas repetia, baixinho: "Sobe, filho da p*! Sobe, filho da p*!"

   Foi então então que reparei que não tínhamos ajeitado o barbante para ficar rente à sarjeta. Do jeito que estava, o cara que vinha pela rua fatalmente puxaria a cobra, quando passasse! E agora, Santo Deus? Preparamo-nos para correr...

   Não deu outra! Quando o armário ambulante que ia pela rua passou, prendeu o pé no barbante, a cobra deu um bote sobre o outro que ia sobre a calçada. Gritaram, assustados, e correram, subindo a rua, enquanto nós dois disparávamos para a varanda, a fim de nos ocultar...

   Silêncio mortal. Esperamos um tanto até termos coragem de espiar. Finalmente, com toda cautela, demos uma olhada. Nada, nem sinal dos homens, e nem da nossa cobra.

   Mistério... o que teria ocorrido? Gilson aventou a possibilidade de eles terem enganchado o barbante na perna de um deles, e a nossa inocente cobrinha estaria até aquele momento correndo atrás dos dois. Já sem medo, resolvemos descer novamente, para ver de perto. Quando estávamos no meio da rua, os dois gigantes voltavam, rindo, com a corda na mão.

   Os sujeitos eram gente fina, acharam muita graça de nossa armadilha, e riam de si mesmos com o fato de terem caído naquela. Contaram que a cobra os perseguiu até a altura da Loja das Meninas quando, finalmente desconfiados daquele réptil tão veloz em seu encalço, o barbante se quebrou e ela parou. Pro-curaram um pedaço de pau e, cautelosos, se aproximaram (como riam um do outro pelo zelo),
mataram a bicha a pauladas e então descobriram a farsa...

   Muitos anos antes que esse tipo de coisa se vulgarizasse nas "pegadinhas" televisivas, já o nosso amigo Bolivar as inventara, para nosso deleite...

4 - ESTE EU NÃO ESTAVA
   Quando eu já estava na Faculdade de Direito aprontaram uma na igreja. Minha fase de arruaças já tinha acabado há um bom tempo, mesmo que muitos continuem a fazê-las mesmo durante o período de universidade - por vezes bem piores que as nossas.

   Eu acabara de chegar de férias na cidade. Mal via o pessoal que integrava a Turma, nestes distanciamentos que a vida adulta opera. Mas o fato ocorreu, e é interessante anotar, até porque disseram por aí que eu estava no bolo, embora ignore seus autores.

   Foi o seguinte: amarraram, de dia, um barbante no badalo de um dos sinos da catedral, e o deixaram jogado pelo lado de fora. Assim, de madrugada, voltaram ali e danaram a dobrar o instrumento, acordando o velho Monsenhor Osvaldo, coitado, já septuagenário, que acordou assustado e levantou-se correndo, para ver o de que se tratava.

   O bom velhinho topou, então, com um hóspede do Hotel Baiano que, acreditando ser algum festejo religioso, em hora tão inoportuna, desfiou-lhe uma boa dúzia de impropérios - enquanto o sacerdote, mal abotoada a sotaina, tentava explicar não ter nada a ver com o fato...

   Causos de um tempo e uma Caetité que já não permitem esses arroubos...