IX. MATEUZINHO,
VÍTIMA DUAS VEZES
PRÓLOGO
   Um dos pecados imperdoáveis numa turma de adolescentes é ser dos mais novos. Penaram nas mãos da Turma, por conta disso, Marcelo, Olegário, e outros. Mas nenhum teve a honra de protagonizar duas lembranças tão interessantes como nosso querido e sério Carlos Matheus.

EPISÓDIO 1 :
HOCHE CHA CHANTEI A CHACA
   Era Festa de Santana. A cidade engalanada para comemorar sua padroeira, tinha a Praça da Catedral apinhada de gente. Caetiteenses do mundo inteiro que para o torrão natal acorrem nesta época, e passeiam por dentre as barracas de bebidas, distribuídas ao redor do largo da matriz.

   Eu saí de casa, a noite estava começando. Atravessei a rua e já estava chegando no local onde a parte profana tem lugar, quando Mateuzinho me aparece, o olhar súplice, seguido de perto por outros integrantes da Turma que piscavam-me os olhos para entrar na brincadeira. Desesperado, o amigo me perguntou:
_ André, me diga, eu falo ou não direito? Escute:
Jorgina, Jorgina, viu? Não falei certo?!

   Acostumado a estas armações, mesmo sem entender o que estava ocorrendo, respondi:
_ Ué, por que você tá falando errado?

   Matheus tinha arrumado uma namorada com este nome. Para sua infelicidade, a Turma combinara que ele não conseguia pronunciar o nome da menina, dizendo "na verdade"
CHORCHINA - incapaz que era de dizer o jota que, segundo tentavam convencê-lo, era dito "chota"...

   Moço, devem ter sido momentos torturantes aqueles. O garoto perguntara já a vários amigos, e todos lhe deixavam inda mais confuso:
_ Fala aí, Matheus - pedi -
HOJE...

   Ele repetia corretamente, mas eu consertava, já cientificado do engodo:
_
HOCHE, não, Matheus: HOJE!

   Ele então, agoniadíssimo, dizia várias vezes, para provar a si mesmo que falava correto:
_ HOJE, HOJE, HOJE! Viu? Falei direitinho!

   Mas não tinha jeito (ou seria "cheito"?). A coisa durou um bocado, eu já com pena do sofrimento que aquilo causava nele, até que felizmente Cecília, sua irmã, saíra da missa, e desmentiu tudo.

EPISÓDIO 2 : O CONTADOR DE PARALELEPÍPEDOS
   Era uma tarde modorrenta. Eu e Gilson sentados na esquina do Padre. Não, não estou repetindo história - essa era a rotina que provocava na gente o despertar da imaginação e de idéias nem sempre cristãs. Mateuzinho nos aparece. É estranho como a convivência minha com o Boli permitia uma espécie de telepatia que, nesse dia, foi caminhando sozinha: era como se a gente estivesse buscando inspiração no mesmo demoniozinho.

   Os três ali sentados, nada pra fazer ou falar. Tudo uma pasmaceira. De repente um começou e o outro foi emendando:
_ Que dia a gente começa a contar os
paralelos da avenida?
_ Que tal amanhã?
_ Não... acho melhor na segunda, tem menos movimento...
_ Rapaz, é muito paralelepípedo... Será que num dia só a gente acaba?

   Matheus quis saber que invenção era aquela de
contar paralelos, sem dar crédito na coisa. Mas então construímos, no improviso, a convincente história de que a Prefeitura contratara Seu Gilson, que é topógrafo, para contar quantas pedras calçavam a Avenida Santana. Para que? Ora, a Prefeitura ia asfaltar a via e queria aproveitar os paralelos para outras ruas, então necessitava saber quantos haviam, para calcular quantas ruas poderia pavimentar depois.
   Seu Gilson - continuamos - profissional atarefado, nos subempreitara. Então convidamos o amigo para nos ajudar, pois o trabalho era muito. Com tantos e tão bons argumentos o mais novo acreditou, mesmo com dúzias de pulgas atrás da orelha. Combinamos então que o melhor dia seria mesmo na segunda-feira próxima. Mais tarde cada um tomou seu rumo.

   Os dias se passaram. Nem eu nem o Bolivar lembrávamos mais daquela invencio-nice, criada para passar o tempo. Então um dia, à noite, encontramos o Matheus, irado, nos esperando:
_ Seus mentirosos! Eu sabia que era tudo mentira!

   O que será que provocara aquela reação no amigo? A gente não se lembrava mais. Instado, ele disse:
_Seus tratantes! Não disseram que iam contar os paralelos hoje?!

   Ao nos recordar da combinação adrede estabelecida, tivemos de segurar o riso. Mas falamos, seriamente:
_ Ué, a gente contou, sim! Você foi quem não apareceu!
_ Apareci, sim senhor! E não vi nem sombra de vocês dois!
_ Ah, Matheus, você olhou no resto da Avenida? Vai ver quando você chegou a gente já tinha começado...
_Conversa! Eu subi e desci a Avenida e não vi nenhum dos dois.
_ Você então chegou muito tarde...
_ Mentira! Não dava tempo de terem terminado de contar tantas pedras!

   Foi então que minha inspiração brilhou:
_ Mas Matheus, você tá pensando que a gente contou paralelo por paralelo?
_ E não foi?
_ Claro que não! A gente não é bobo! A gente contou quantos paralelos tinha num metro e depois, com uma trena que Seu Gilson nos emprestou, medimos os metros da Avenida, e depois foi só fazer a conta.
_ Ah, bom! Tá explicado! Me desculpem...

   Pois é, amigos, assim como a Avenida Santana não foi até hoje (ou seria
hoche?) asfaltada, também a gente nunca contou o seu calçamento...