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Cultura Popular

 Por Ana Lúcia Liberato Tettamanzy

É a cultura que ensina o homem a escolher, construir e criar a própria vida, em vez de a suportar.

Sophia de Melo Andresen

 

Quando se trata de definir cultura popular, algumas dificuldades são previsíveis. Cultura, num sentido lato, é tudo que o homem é capaz de criar, atributo constitutivo de indivíduos, grupos, povos, épocas, lugares. No entanto, não é raro se ouvir comentários do tipo “essa gente não tem cultura”, notadamente quando o assunto diz respeito às camadas mais pobres das sociedades. Pode-se deduzir, assim, que se confunde cultura com instrução formal, acesso ao saber institucionalizado, experiência acadêmica. Pode-se, ainda, reconhecer uma certa dificuldade em atribuir a bens simbólicos a designação de cultura. As construções, os objetos constituem marcas palpáveis da existência ou da passagem de civilizações sobre a terra e tendem a ser assim reconhecidos de forma universal. No entanto, também as crenças, os mitos, as histórias constituem manifestações eloqüentes de civilizações, são patrimônio imaterial da humanidade.

Não menos controverso é o termo popular, posto que derivado de povo. Se todos reconhecem que os conceitos são passíveis de historicidade, convém precisar de que época se trata. Convém, igualmente, circunscrever espacialmente o povo em questão. Assim , povo para os gregos da Idade Antiga certamente não significava o mesmo que povo para os habitantes de Kosovo ou para os Yanomami do século XX, ambos exemplos das dificuldades implícitas da afirmação de identidades numa era de conflitos simultaneamente globais e locais. O sentimento de pertinência a um determinado local e uma determinada comunidade não pode mais ser compreendido apenas a partir da circunstância registrada no momento e no local do nascimento. Conceitos como fronteira, errância, mestiçagem, hibridismo, exílio têm dado origem a paradigmas próprios para se pensar a respeito dos modos como as populações estabelecem seus vínculos na contemporaneidade.

Como se trata de conceito amplamente utilizado pelas mais diversas instâncias, cabe lembrar que o adjetivo popular tem servido a múltiplos propósitos. Governos autoritários costumam apropriar-se do termo popular para referendar suas ações e políticas, garantindo-lhes abrangência e vocação que por natureza não possuem, visto que revelam a verticalidade do poder sobre uma população que não se reconhece claramente enquanto parte de um todo. Manifestações culturais apossam-se do termo como garantia de legitimidade, muitas vezes duvidosa, ou como expressão de seu sucesso, embora, em alguns casos, o termo designe obras e artistas de excelência (é o caso, por exemplo, da MPB) e, nessas ocasiões, o termo não adquira conotação negativa. A imprecisão conceitual inerente ao termo popular costuma aparecer quando são abordados fenômenos midiáticos, eventos ou obras que, embora de massa, não são, necessariamente, populares.

Uma situação que, via de regra, acompanha o termo popular envolve a relação dicotômica com o termo erudito, como se referissem universos incompatíveis e mutuamente excludentes. São a eles associados outros pares, como oral e escrito, sagrado e profano, culto e inculto, natureza e cultura, primitivo e civilizado, antigo e moderno, urbano e rural. De fato, entre apocalípticos e integrados, muitas vezes o embate perde a objetividade, seja pela adesão irrestrita aos modelos da civilização tecnológica, moderna e/ou pós-moderna, seja pela postura francamente nostálgica frente aos fenômenos provenientes da tradição, vista, neste caso, quase que exclusivamente como uma repetição do passado. Em se tratando de cultura popular, alguns traços são característicos, entre eles a repetição, o culto aos antepassados, a valorização da memória e dos vínculos coletivos, a relação próxima com o sobrenatural e com a religiosidade, o caráter prático dos relatos, a presença de elementos mediadores da relação com o divino, a proximidade com os elementos naturais. Sendo assim, usualmente os velhos, ou certos tipos profissionais (lavadeiras, agricultores, rezadeiras, benzedeiras, pescadores) costumam ser os porta-vozes das memórias por eles atualizadas, trazidas para o instante. Apesar desses elementos essenciais, pode-se acrescentar que nem só de passado vive a cultura popular. Um traço fundamental costuma ser ignorado: as culturas todas interpenetram-se e, por essa razão, são vivas, passíveis tanto de repetição como de transformação. Garantia de sua sobrevivência, a cultura popular se movimenta, adota novos suportes, assume diversificadas linguagens. Basta observar o interesse que tanto redes comerciais de televisão como veículos alternativos têm manifestado ao inserir em sua programação produções envolvendo manifestações culturais alternativas (festas, rituais religiosos, culinária, artesanato, música, danças). Pode-se ainda mencionar a recuperação, por autores consagrados, da tradição oral, como é o caso da literatura de Ariano Suassuna e de João Guimarães Rosa, o relançamento de autores da literatura de cordel nordestina por editoras comerciais do centro do país ou ainda do hibridismo característico de novas  gerações da música brasileira, a fundir o regional ao universal, o tradicional ao moderno, a poesia à canção.

Estudos mais recentes falam não de uma, mas de várias culturas populares, observadas e interpretadas tanto em seu contexto (quem pratica, qual o sentido, com que instâncias e grupos se relaciona) como em sua relação com as demais culturas (ora submetidas, ora em contraposição à cultura das classes dominantes ou à indústria cultural, que naturalmente possuem meios mais poderosos de veiculação e expansão). Por tudo isso, contar histórias de origem na oralidade e na tradição popular restabelece um caminho de duas mãos em que letra e voz, academia e sociedade, passado e futuro são aproximados numa direção comum, a utopia.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

XIDIEH, Oswaldo Elias. Narrativas populares. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1993.

PEREIRA, Edmilson de A. & GOMES, Núbia P. de Magalhães. Flor do não esquecimento. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê, 2003.

BERND, Zilá & MIGOZZI, Jacques (orgs). Fronteiras do literário. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1995.


 

 

"Quem conta um conto" é um projeto de extensão de

alunos e professores do Instituto de Letras da UFRGS