Poesias - Coletânea 1
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Eu sei mas não devia - Clarice Lispector Consolo na Praia - Carlos Drummond de Andrade (...) Sebastião da Gama |
EU SEI MAS NÃO DEVIA
Clarice Lispector
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a
não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduiche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter
com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma
dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai
dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto se acostumar,
e se perde de si mesma.
Vamos, não chores
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
Em voz mansa , te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour ?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias precipitar-te de vez nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
Lí esta manhã um Poema de Sebastião da Gama, poeta português que morreu aos 28 anos ... o poema começava:
"Quando a morte chegar, que não venha encontrar um morto"
... Que a morte chegue e não venha encontrar um morto!! Quantos de nós estamos mortos?
Fugimos das coisas mais elementares da vida pelo conforto emocional que é não lutar, não sofrer ... não nos magoarmos!!
Isabel ... vá e viva esse amor, enquanto durar vai valer a pena cada sopro do coração!
(mensagem extraída de mail-list)