A Eficácia Simbólica por Fernando Pessoa

Marcelo Simão Mercante

 

O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para eles mortos, e ele morto para eles. 

Suzane Langer (ANO) fala da simbolização como “um ato essencial ao pensamento, anterior a ele” (:51), uma necessidade básica da mente. Todo tipo de sensação captada pelos sentidos são transformadas em símbolos, idéias elementares que servem para acumular informações de um jeito pré-raciocinativo, mas não pré-racional. Langer coloca o cérebro como um grande transformador, e a simbolização como o ponto de partida de toda intelecção. Nossos atos seriam, segundo ela, governados por representações “símbolos de várias espécies” (:52). Somente uma parte de nosso comportamento é prático, e o restante surge de uma necessidade interna de expressar estas representações “sem qualquer objetivo de satisfazer outras necessidades, exceto a necessidade de contemplar em ação declarada o processo simbólico do cérebro” (:53). 

Sendo então tal capacidade, o simbolizar, fundamental para o pensar e o agir, quais seriam as qualidades do Homem essenciais para que se entenda em profundidade o que é e qual o papel de um dado símbolo, qual sua eficácia em nosso ser? 

E aqui a Poesia se põe a serviço da ciência. Fernando Pessoa traça considerações sobre o simbolismo, sobre o homem. Em níveis de complexidade crescente ele expõe, não digo com precisão, isto ficará evidente ser bastante difícil no desenrolar do meu texto, mas com densidade sua definição de símbolos, do entendimento deles. Na sua opinião, qualquer interpretação deve ser feita com todo ser, integro, e não usando qualquer das partes de somos compostos. Um símbolo é uma ponte entre ‘Todos’, visando criar um ‘Todo’ maior. 

Assim, o objetivo deste artigo é traçar uma linha de desenvolvimento do estudo dos símbolos, da sua eficácia, no que tange principalmente ao papel dos rituais como um dos responsáveis pela sua manipulação. Nos utilizando de um texto do poeta como guia, tenta-se mostrar como foi o desenrolar das teorias que envolvem tal fenômeno, o simbolizar. 

A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir a simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. A atitude cauta, a irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete de primeira condição para poder interpretar. 

Na verdade não creio que a simplicidade fosse uma característica de Durkheim e Mauss, mas certamente foi através deles que surge a simpatia pelos símbolos, tomando estes como base mesmo da sociedade, quando manipulados através dos rituais religiosos (1). Mas a correlação deles com esta parte da prosa está na atitude cauta de colocar o Reino Social (Rodrigues, 1991) como o auge da própria natureza. Não que isto invalidasse a simpatia pelos símbolos, mas certamente limitou os intérpretes. Está no entanto estabelecida a base do estudo dos símbolos e rituais. 

A sociedade estaria, segundo Durkheim, conforme disse acima, no topo da hierarquia natural, na medida em que este seria o meio pelo qual realizamos plenamente nosso potencial pessoal, como humanos. Deste meio emergem os símbolos que são responsáveis pela posição do Homem como o auge da evolução na Terra. Tal simbolismo é manipulados, principalmente através de rituais, visando manter e estabilizar nossa ligação com o todo que compreende a sociedade. 

Durkheim (Rodrigues, 1981), desenvolve a idéia de que os ritos são representações eminentemente coletivas, tendo sua origem quando os homens se reúnem em grupos, mantendo, refazendo e expondo os estados mentais destes grupos. É então uma forma de ação do social, onde – no rito – o indivíduo se dilui e reforça o ‘todo’. Sua eficácia se dá através da manutenção (criação e recriação) de si mesmo (do rito) por operações mentais e materiais, reconectando o indivíduo à sua cultura. Durkheim gera assim um reino social, realizado num meio moral, de idéias, base da consciência individual, que encontra no rito uma forma de expressão e realização. Permite que o indivíduo ao participar “da sociedade, (...) ultrapasse a si mesmo, tanto quando pensa, como quando age” (:158) dentro do culto, assim como quando desfruta das forças morais e sensações de apoio e integração oriundas desta força. É um ato através do qual a sociedade toma forma e existe, por meio de movimentos exteriores, de simbolizações, “é pois a ação que domina a vida religiosa e só por isso que a sociedade é sua fonte” (:168). Há todo um jogo entre forças sociais, concepções individuais e ideações. Esta é a forma pela qual a religião age, no idivíduo, através de bases conceituais sociais, coletivas. Finalizando: “para que a primeira apareça, [a conciência coletiva] é preciso que se produza uma síntese sui generis das consciências particulares. Ora, essa síntese tem por resultado desencadear todo um mundo de sentimento, de idéias, de imagens que, uma vez nascidas, obedecem a leis que lhe são próprias (...) Mostramos precisamente que é muitas vezes o caso da atividade ritual...” (:171-172). 

Mauss segue desenvolvendo as idéias de Durkheim. Tem suas teorias embasadas, como o mestre, na força do social. Em Esboço de uma Teoria Geral da Magia (Mauss, 1974), define rito, mais propriamente rito mágico, como os atos que definem outros elementos da magia. Sua eficiência se apoia principalmente em ser um fato de tradição: a forma dos ritos é transmissível e sancionada pela opinião, pelo social. Além disso são atividades que se utilizam de uma técnica criativa para provocar um efeito diferente das ações mecânicas dos gestos que a compõe. 

Segundo Mauss (1974), há a necessidade de se localizar o rito num Tempo e Espaço específico, de forma a induzir o oficiante e seu cliente a um estado moral, psicológico e fisiológico diferente do normal. Este estado especial opera uma eficiência através de um acúmulo de imagens, por uma associação de idéias e sentimentos. Uma eficácia sui generis, a partir do psiquismo do cliente, gerada pelo social. E assim se dá porque, para Mauss, numa observação de Lévi-Strauss (In Mauss, 1974), o psicológico está subordinado a este social. 

Um rito mágico é algo que não faz parte de um culto organizado. Há em sua obra uma separação, através da oposição, entre magia e religião, ritos mágicos e ritos religiosos. Na magia, as funções do rito não são especializadas e compartimentalizadas como na religião. Mas ainda que seja um ato individual e privado – sendo a religião marcadamente pública - também tem suas raízes no meio social, onde seus participantes se apropriam de forças coletivas para seus próprios fins. Do mesmo modo, é objeto de uma crença a priori tão intensa que uma experiência negativa não abala seu poder, antes o reforça. Assim, sua eficácia é esperada, e até mesmo certificada, pelo praticante do ato mágico, do rito. De um ponto de vista estritamente positivo, segundo Mauss, seria impossível que os ritos mágicos realmente funcionassem. 

A Segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja. 

Não sei se foi a intuição que levou Lévi-Strauss às suas considerações sobre os símbolos, seus estudos, no entanto foram sempre direcionados para o que está além deles. Sua noção de estrutura procura desvendar o inconsciente da sociedade sob observação. 

Ele dá continuidade ao pensamento de Mauss e Durkheim. No artigo “A Eficácia Simbólica”, publicado pela primeira vez em 1949 (Lévi-Strauss, 1967), ele compara o xamã ao psicanalista, e traça paralelos entre as curas obtidas por ambos. Para ele o curandeiro é eficaz em seu trabalho, na medida em que, como o terapeuta, manipula a estrutura simbólica do “paciente”, provocando uma “reorganização estrutural, que conduzisse o doente a viver intensamente um mito (...) e cuja estrutura seria, no nível do psiquismo inconsciente, análoga àquela da qual se quereria determinar a formação no nível do corpo. A eficácia simbólica consistiria precisamente nesta “propriedade indutora” que possuiriam, umas em relação às outras, estruturas formalmente homólogas, que se podem edificar, com materiais diferentes, nos diferentes níveis do vivente: processos orgânicos, psiquismo inconsciente, pensamento refletido” (:233) 

Toda cura se procede por ser manipulado o ponto-chave do problema, o inconsciente. Para Lévi-Strauss nesta parte do psiquismo está a base de toda estrutura mental, de toda função simbólica humana, que responde, em todas as pessoas, à uma gama limitada e comuns de leis universais. O subconsciente, fonte da história individual, só adquire significado para nós e para os outros, quando organizado pela estrutura inconsciente, que tem suas raízes firmemente fincadas no social. 

A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, ordena, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que se usou da simpatia e da intuição. Um dos fins da inteligência no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver esclarecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado. 

Na década de sessenta surge a Antropologia Simbólica, responsável por analisar, decompor, ordenar e reconstruir os símbolos. Lança mão dos recursos postos à disposição por seus antecessores, e passa a traçar relações entre e com eles. Inicia-se um discurso que visa interpretar e entender plenamente os símbolos e sua eficácia. Com ela o social deixa de ser o centro de todo estudo em torno dos processos simbólicos, na medida em que passa a considerar as representações individuais como uma forma de visão de mundo, expressa através de rituais – o ato de se expressar seria o grande responsável pela eficácia do rito (Langdon, 1996). Ainda segundo esta autora, esta corrente da Antropologia teve seus passos indicados por Durkheim e Mauss, pois estes consideravam a análise das representações como algo fundamental para se entender os fenômenos culturais. O estudo dos símbolos, que surgem de códigos culturais, e o estudo do papel desempenhado pelos rituais na origem das emoções, são preocupações básicas da Antropologia Simbólica atual. 

Uma de suas dificuldades, ou quem sabe, um dos efeitos oriundos do seu objeto de estudo, diz respeito à definição de símbolo. Há uma profusão de definições, de acordo com o estudo em andamento e o autor. Faço então a uma relação, numa tentativa de estabelecer diferenças e semelhanças entre os autores. 

Raymond Firth (1973) faz uma coletânea de definições de símbolos. Dentre elas destaco a de Arnold Hauser, que coloca o símbolo como uma entidade indivisível, responsável pela fusão de idéias e imagens, com a possibilidade de ser interpretado de muitos modos, aparentemente de forma infinita, sendo esta sua principal característica. Por ser uma forma dinâmica de pensamento, coloca as idéias em movimento e as mantêm neste movimento. O símbolo é passível de interpretação, mas não de solução. E continuando esta linha de pensamento, termina com considerações de Gershom Scholem, de que o “símbolo é uma representação expressiva de algo que em si mesmo está além da esfera da expressão e comunicação, uma realidade escondida e inexpressível” (Firth, 1973:73). 

Sua própria definição de símbolo diz respeito a um sinal (aqui ele define sinal como uma categoria geral, que pode ser subdividida em diferentes tipos de acordo com a ênfase em diferentes critérios) com uma “complexa série de associações, em geral de caráter emocional, e difícil de descrever (alguns podem dizer, impossível) em termos outros que representações parciais” (Firth, 1973:75). Para ele, o símbolo é um meio de nos induzir à abstrações de valores instrumentais expressivos, comunicativos, de conhecimento e de controle. 

Nesta série de definições expostas por Firth podemos ver as bases para a idéia da multivocalidade expressa por Turner, que além disso chama aos símbolos “blocos básicos da construção, moléculas do ritual” (Turner, 1974b:29). Neste mesmo texto ele (Turner) define símbolo e suas relações não somente como “um conjunto de classificações cognoscitivas para estabelecer a ordem no universo – se referindo aqui à Lévi-Strauss – mas também dispositivos evocadores para despertar, canalizar e domesticar emoções poderosas...Estão também imbuídos de motivação e têm um aspecto volutivo” (1974b:60). 

Geertz (1989) segue este pensamento e define símbolo como “...qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma concepção (...) o ‘significado’ do símbolo (...) formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações concretas de idéias, atitudes, julgamento, saudades ou crenças.” (:105). 

Tratando agora da eficácia propriamente dita, dentre diversos autores, destacarei o papel de Victor Turner, Mary Douglas, e Clifford Geertz. Têm suas raízes em Durkheim, e no fato socializante do símbolo, do rito. Passam no entanto a admitir que possam existir diferentes formas de lidar com este meio simbólico, sem hierarquizar os caminhos que cada sociedade escolheu para trabalhar com este meio (Douglas, 1980). 

A cultura passa a ser tratada como algo emergente: este conceito passa a ser centrado no ator, que tem a oportunidade de se expressar através do ritual, e com isso transformar a sociedade onde se acha inserido, e a própria matriz simbólica deste meio. Turner (1981) deixa isso claro ao tratar da peformance, quando ele diz que esta “é delimitada pelas regras, mas o fluxo da ação e interação dentro destes limites conduzem à insights imprecedentes, gerando novos símbolos e significados, incorporados em perfromances subseqüentes. Limites tradicionais devem ser redelimitados...(:156). Eis o início de um diálogo entre indivíduo e sociedade. Abre-se um espaço para que seja avaliado o papel do indivíduo no processo de apropriação do social. 

Os símbolos passam a ser estudados, como no trabalho de Turner (1974b), a partir do ponto de vista do próprio povo que os elabora, procedimento adotado por Mauss em seu tratado sobre magia em relação ao Mana, criticado por Lévi-Strauss (1974) na Introdução de Antropologia e Sociologia. Turner, se utiliza da idéia de símbolos multivocais, ou seja, passíveis de muitos significados. São canais de comunicação entre e intra grupos, representações coletivas que ajudam a levantar a parte temporal da estrutura social (uma relação entre posições, funções e cargos sociais – e não algo localizado no inconsciente, como coloca Lévi-Strauss) (2), responsável pela a ordem implícita neste sistema. Tal ordem estaria impressa na “cabeça e sistema nervoso das pessoas” (1974a:36). No caso de um drama social – “unidades de processos harmônicos e desarmônicos, surgidos em situações de conflito” (1974a:37) – tal estrutura pode se mostrar com maior nitidez. 

Dentro das quatro fases dos dramas levantadas pelo autor, a saber, quebra, crise, ação de “revestimento” (redressive action) e reintegração, é na terceira que os rituais e outros métodos de manipulação de símbolos visando resolver a crise encontram sua maior expressão – entre os Ndembu, a realização de rituais estava ligada à resolução de crises na vida social da aldeia (Turner, 1974b, 1980). É um quando se pode montar uma anti-estrutura social, que, por negatividade, serve para realçar a estrutura. Tal anti-estrutura, localizada dentro de uma liminaridade, é o que Turner chama de communitas, que se suficientemente presente nos rituais permite um diálogo entre o pólo orético (lugar onde se localizam os processos basicamente biológicos) e o pólo normativo (as regras de conduta moral, os valores morais), resultando numa integração total entre o indivíduo e a sociedade. Momento onde podem ser expressos sentimentos e pensamentos conflitantes com a ordem vigente nos períodos inter-ritualísticos em função não de uma inversão, mas sim de uma anulação dos papéis sociais normalmente desempenhados (3). 

Os símbolos seriam os meios pelo qual os indivíduos são impelidos à ação neste momento ‘catártico’. Além disso, eles refletem a estrutura social no indivíduo (Turner, 1974a). Outro papel importante dos símbolos dentro dos rituais é levantado no trabalho sobre os Ndembu (1974b, 1980), que seja, o de tornar apreensível pelo pensamento, de formatar, e consequentemente tornar passível à ações da sociedade, “o oculto, ... que é perigoso” (:42). Mary Douglas (1980) também compartilha deste pensamento ao dizer que algumas idéias, sociais, não podem ser expressas sem uma forma: o símbolo é o meio do qual os ritos se utilizam para canalizar e orientar sentimentos, emoções e pensamentos em torno de um objetivo comum, organizam a experiência, focalizam a atenção sobre o que é selecionado como realmente relevante para a solução de um problema. Ambos autores remontam à Lévi-Strauss, que no já citado Eficácia Simbólica (1967) diz que o resultado positivo de um rito se baseia no fato de tornar pensável uma situação antes emocional. 

É no rito que os padrões simbólicos são executados e publicamente manifestados. Para Mary Douglas “o homem é um animal ritual (...) é impossível termos relações sociais sem rituais, sem atos simbólicos” (Douglas, 1980:80). Um ritual, através de seus símbolos, tem o poder de modificar a experiência, por expressá-la. “Podem existir pensamentos (experiências) que nunca foram traduzidos em palavras (símbolos). Uma vez que as palavras (símbolos) são formuladas, o pensamento (experiência) muda e é limitado pelas próprias palavras (símbolos) selecionados (Douglas, 1980:82). Importante ressaltar que os símbolos são fornecidos pelo ritual visando criar e controlar a experiência. Ela cita a preocupação de Durkheim com tal idéia, com o fato de os rituais revelarem ao homem o seu ser social e montar assim a sociedade. Mary Douglas conclui, juntamente com Turner (1980) que a eficácia simbólica se baseia na manipulação de uma situação social – isto seria sua eficácia instrumental. Por fim, os símbolos revelam a cosmologia assim como partes da sociedade estudada, e sua eficiência está diretamente ligada à confiança depositadas neles, idéia esta também já explorado por Lévi-Strauss. 

Voltando novamente à idéia de Durkheim expressa acima, nota-se a semelhança desta com a colocação de Geertz (1989) de que o símbolo é transmissor da cultura. Em A Religião como um Sistema Cultural ele fala do símbolo como o agente socializante per si, na medida em que incorpora um “padrão de significados transmitidos historicamente”, é tal sistema (simbólico) que a cultura lança mão para transmitir, perpetuar e transmitir pelas gerações “seus conhecimentos e suas atividades em relação à vida” (:103). Ele coloca os símbolos religiosos em particular, manipulados durante um ritual, como os catalisadores entre uma realidade individual e o Cosmos. Ambos os universos, o particular e o cultural interagem e se apoiam e legitimam mutuamente. Novamente destacamos a semelhança com Durkheim, quando coloca a religião como a base da sociabilidade e da sociedade. 

No entanto, com Geertz, neste processo dialógico há um papel importante desempenhado pelo indivíduo sobre o social, na mesma intensidade que é influenciado por este social. Isto fica claro na sua definição deste bloco de significados como um modelo para (aqui ele ressalta a semelhança com os genes e outros sistemas de instruções não simbólicas) e da (quando os próprios programas para se torna um símbolo expresso em outro meio), realidade. Desta forma, o social, a cultura, se torna apreensível pelo indivíduo como algo real dentro de seu próprio sistema simbólico. É um momento de construção, também indicado por Turner na sua noção de performance citada acima. No ritual há a possibilidade de ver que as concepções da religião são verídicas, que as diretivas religiosas são corretas, exatamente nesta fusão do mundo vivido e do idealizado sob o conjunto das formas simbólicas. Tal fusão se dá dentro de um todo de disposições e motivações “singularmente realistas” (Geertz, 1989:105). E tal realidade é exatamente confirmada pelo conjunto de símbolos manipulados. Toda esta elaboração resulta na confirmação da cultura como uma realidade onde o ser humano se insere e é de certa forma dependente, como fonte de uma simbolização que, se inspirando em Langer (ANO), ele diz ser essencial ao ser humano. 

A quarta é compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionados com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes. 

E a compreensão parte de uma integração. As considerações que aponto nesta seção visam basicamente uma integração entre o caráter social da eficácia do símbolo e sua porção interna, fisiológica. Mauss em alguns de seus textos fala das relações bio-psico-sociais (Técnicas Corporais [1974] principalmente), lançando a idéia do desenvolvimento de estudos nesta área. Lévi-Strauss também toca este assunto quando, no seu Eficácia Simbólica, quando busca a legitimação de seu discurso na psicanálise e em uma possível afirmação de Freud que diz que as perturbações psíquicas teriam uma “concepção fisiológica, até mesmo bioquímica” (:232), visando assim construir uma ligação concreta entre corpo e atividades psicológicas. 

Victor Turner aborda esta integração num artigo de 1992, quando põe em cheque o axioma que ele define como ‘sagrado’ para todo um grupo de antropólogos de sua geração: ou seja, “a crença que todo comportamento humano era o resultado do condicionamento social” (:156). Em junho de 1965, quando em uma discussão organizada por Sir Julian Huxley, deparou com as definições de rituais e ritualizações de etologistas, definições estas que são muito marcadas pela idéia de um controle genético dos ritos. A partir daí, auxiliado pelas descobertas no campo da neurobiologia, desenvolve o conceito de um controle duplo do homem, tanto por um genótipo quanto por um culturótipo, através de um jogo de coadaptações simbióticas entre ambos. 

E é neste jogo que se situa o Estruturalismo Biogenético, um corpo de conhecimento desenvolvido Laughlin & McManus (1974, apud Laughlin et al, 1990), embasado principalmente na biologia evolutiva, mais especificamente nas ciências neurológicas. Parte do princípio de que mente e cérebro são duas visões da mesma realidade: “mente é como o cérebro vivencia suas próprias funções, e o cérebro fornece a estrutura da mente.” (Laughlin et al., 1990:13) (4). A consciência é acessada através do intercruzamento de eventos estruturais (neurocognitivos), comportamentais (etnográficos, etológicos) e experienciais. Os autores extraem suas bases filosóficas principalmente da Fenomenologia Transcendental de Husserl (5). 

Um dos conceitos usados neste livro é o de neurognose, a organização da rede neuronal, que se responsabiliza pelos atributos universais da mente. É uma espécie de sistema de equilíbrio que ocorre no sistema nervoso central entre as diversas possibilidades de caminhos possíveis de um impulso nervoso, limitados pelo código genético de cada indivíduo e as pressões ambientais. De uma forma geral, a neurognose canaliza os processos de percepção e sensação, as atividades motoras e a diferenciação e associação simbólica e conceitual. É responsável também pelos limites cognitivos de um indivíduo. Desta forma, controla não só a informação transmitida, mas também a absorvida, sua interpretação e armazenamento. Tal comportamento abre um espaço para a transformação por parte de cada indivíduo do material cultural absorvido. 

Aqui temos então uma das funções do ritual, que é o de controlar e direcionar tanto o material absorvido quanto o meio de absorção e as possíveis interpretações, visando uma uniformidade no ambiente cognitivo do grupo (6). Isto se dá principalmente através de uma manipulação consciente de determinado grupo de símbolos, atingindo assim os sistemas neurais postos em atividade por estes símbolos, selecionando os mesmos, limitando o que deve ser experimentado. 

Um paralelo, ou eu diria um aprofundamento das questões levantadas por Turner, a respeito dos dramas sociais se inicia quando é levantada a dicotomia entre fases e torções (warp, no original em inglês, pág. 141). Nas fases teríamos os episódios ‘cognizados’ da experiência suas respectivas redes neuronais em ação. As torções por sua vez, são os pontos de experiencial e transformação neural entre as fases. Nas fases teríamos uma gama de estados de consciências tidos como normais dentro de uma dada sociedade. Aqui teríamos a Estrutura de Turner, reforçada dentro dos ritos. As torções seriam momentos controlados pela sociedade, momentos evanescentes, mediando dois estados cognitivos da experiência, dois estados com configurações neurais relativamente duráveis. Este seria um momento liminar. Na medida em que ocorre uma torção dentro de um rito, ele exibe três estágios de transformação: discriminação da informação intrusiva, numa tentativa de encaixá-la sob o caminho neural em andamento. Na medida em que tal encaixe não é conseguido, há uma interrupção do fluxo de informações (quebra e crise, em Turner). Diferenciação de estruturas, visando acomodar a nova informação (revestimento) e finalmente reintegração da nova estrutura num equilíbrio. Mas é importante ressaltar que, na maioria das vezes, este processo é rápido e inconsciente, demandando um certo treinamento para que seja atingido um grau mínimo de consciência do mesmo, visando absorver as informações que surgem de tal estado. 

Aqui temos outro papel importante, como em Turner, desempenhado pelos símbolos, ou como dito pelos autores, estímulos somaestéticos, orientadores e mesmo estimuladores de tais estados. Assim, reconhecer antigas conexões neurais, criar espaços livres onde novas informações possam surgir e assimilar estes novos caminhos da rede estrutural da consciência individual, além de fundir vários cérebros dentro da sociedade seriam os papeis desempenhados pelos ritos, através dos símbolos. 

No entanto, é traçada aqui uma crítica ao que os autores chamam de antropologia semiótica (:160), a antropologia desenvolvida desde Lévi-Strauss, até os da década de 60-70. Coloca-se que esta antropologia falha em estabelecer uma conexão entre os símbolos, significados e ação, comportamento, na medida em que se preocupa primariamente em criar relações entre categorias analíticas, e não incorpora uma perspectiva orgânica, neuropsicológica, em suas teorizações. Tal perspectiva, difundida pelo Estruturalismo Biogenético, releva o papel do processo simbólico, dentro do sistema nervoso, no desenvolvimento da estrutura perceptiva e cognitiva e na organização da ação. 

Resumindo, os símbolo servem como um ordenador da experiência, na medida em atraem e focalizam a atenção, modulam o jogo entre eventos no presente e no passado, e canalizam a experiência de acordo com nossos companheiros. Isto soa muito similar à Turner e Mary Douglas. Mas há uma preocupação na teoria em ser estabelecido um equilíbrio entre liberdade individual e coesão do grupo. O símbolo convida à experiência por “atrair nossa atenção e por evocar múltiplas associações configuradas sobre eles como centrais” (:189). Expande os pensamentos e outras funções da consciência no ambiente cognitivo – rede neuronal – através de significados desenvolvidos no diálogo entre o processo intencional e o modelo estrutural de sensações que estão mediando o símbolo. Isto torna os símbolos polissêmicos (volto novamente à multivocalidade de Turner). Os significados se multiplicam na fusão contínua de informações que surgem na medida em o organismo explora seu ambiente cognitivo e responde com atos a eventos que emergem, vindos ou não do exterior, no seu aparelho sensitivo. 

A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns que é a graça, falando a outros que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros que é o Conhecimento e Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma dessas coisas que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo

Fernando Pessoa (1997:141) Uma Síntese... 

Como foi visto a compreensão do papel dos símbolos e rituais na formação do homem é um processo longo e complexo. De Durkheim até o Estruturalismo Biogenético um longo caminho foi percorrido. Como ao olhar por dentro de um microscópio, onde de acordo com o foco adotado, diferentes pontos de um mesmo objeto se tornam perceptíveis, enquanto outros se tornam desfocados, uma vez que são enquadrados diferentes planos, assim é a Antropologia atual em relação aos seus resultados enquanto ciência. Muito é produzido no choque das verdades, do conhecimento construído entre estes planos, pois cada foco é tratado como único, como independente e desconectado dos demais. E por vezes surgem novas teorias tentando mostrar que esta desconexão é um processo didático, um artifício que na maioria das vezes é esquecido. 

Muitas reivindicações como as de Renato Rosaldo (1993), ao tentar revelar o papel das emoções na construção de teorias e de Paul Stoller (1989), ao querer que a Antropologia dê conta do que aconteceu com ele dentro da cabana da feiticeira não seriam procedentes na medida em que estes autores tivessem tido contato com outros planos da lâmina sob observação. Considero válida a tentativa de construção de uma teoria integrativa como o Estruturalismo Biogenético, desde que não se esqueça, nem condene e critique colaborações vitais como as de Durkheim e Mauss. 

Creio no entanto que muito ainda há para ser dito. Muito ainda pertence ao Superior Incógnito, e cabe à Antropologia desvendar os muitos símbolos que ainda hão de surgir. 

Referências 

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(1) A religião é para Durkheim a base da sociedade, mas age pelos símbolos, dentro dos rituais. 

(2) Oposições, ou melhor dizendo, críticas levantada por Turner a Lévi-Strauss se faz presente em muitas passagens do texto dos Ndembu. A noção de símbolos multivocais surge como uma delas. A multivolcalidade surge quando cada símbolo é analisado isoladamente no contexto simbólico, em diferentes momentos do ritual, como fazem os nativos – eis aqui outra diferença entre ambos, a utilização de explicações êmicas. A oposição binária seria a base da univocalidade, mas tal situação (oposição binária) é algo temporário dentro do ritual, e não referente ao ritual como um todo – este é o procedimento analítico adotado por Lévi-Strauss, que lida com um plano único em seus trabalhos. 

(3) O resultado final disto, desta alternância entre communitas e estrutura, é o desenvolvimento da sociedade. Isto se dá porque se cria dentro dela –da estrutura – este ‘espaço nulo’, onde se dá (digo propositadamente dá e não tem) a chance ritualizada, e por isso mesmo sujeita a regras e limites, da revanche, da extrapolação dos sentimentos, etc. Se permite que estes movimentos individuais perigosos sejam manifestados dentro de certo controle (mesmo na ilusão de que este controle não existe), deixando assim de ameaçar a coesão da sociedade. Tal pensamento também se encontra em DaMatta, 1978. E quando estes movimentos surgem espontaneamente, ou são rapidamente absorvidos e incluídos na estrutura, ou realmente geram uma ruptura, e a conseqüente institucionalização do movimento. Isso demonstra o caráter transitório da communitas. 

(4) Importante ressaltar que estrutura é definida como “a organização do sistema nervoso e outros sistemas somáticos, ou a porção destes sistemas a serviço o fenômeno sob discussão.” (Laughlin et al., 1990: 16) 

(5) Em linhas gerais, Marilena Chauí em uma introdução ao trabalho do filósofo coloca a fenomenologia como “uma descrição da estrutura específica do fenômeno (fluxo imanente de vivências que constitui a consciência e, como descrição da estrutura da consciência enquanto constituinte, isto é como condição a priori de possibilidade do conhecimento, o é na medida em que ela, enquanto Consciência Transcendental, constitui as significações e na medida em que conhecer é (...) apreender (no nível empírico) ou constituir (no nível transcendental) os significados dos acontecimentos naturais e psíquicos. A fenomenologia aparece, assim, como filosofia transcendental.” (Husserl, 1996). 

(6) A visão dos autores de uma adaptação ótima do Homem depende tanto da liberdade de cognição de que um cérebro é capaz quanto da capacidade e habilidade do grupo de coordenar interesses. 

 

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