O encontro
(Premiado no II Concurso
Nacional de Contos Osman Lins)
- Um cigarro?
- Acenda, pra mim.
A chama do isqueiro; a brasa, começando a
consumir o papel e o fumo. A fumaça subindo para a liberdade do ar, e os
pensamentos de cada um procurando a sua própria liberdade.
A cama desfeita; o som preenchendo o quarto. O
brando reflexo da luz nas águas claras da piscina. Todo um universo, entre
quatro paredes que delimitam um pequeno pedaço do mundo.
- Vamos tomar um banho?
- Vá indo; vou já.
Os pés no chão; o corpo bonito da mulher
atravessando o quarto, no balançar característico da fêmea que se sabe atraente.
O homem, na cama, lança um rápido olhar às pernas bronzeadas, admira a marca
branca do biquíni nas nádegas redondas.
Um gritinho:
- Ai! A água está fria! Mas tão gostosa!...
Um sorriso condescendente, no rosto do homem. O
sorriso de quem considera a mulher uma criança, algo bonito que Deus criou para
que o homem tenha alguma alegria, em sua luta pela vida. Mas, ao mesmo tempo, um
sorriso triste, de quem já viveu muito e ainda não conseguiu começar a viver.
O corpo faz evoluções na
piscina, acompanhando o ritmo de “Café da Manhã”, que as caixas de som continuam
jogando no ar. A mulher apanha a garrafa de champanha, à beira da piscina, e
derrama um pouco na taça.
- Está triste?
- Eu? Não. Que idéia!
Mas a mulher insiste. A intuição feminina lhe
diz não existir hora melhor, para se conhecer alguém, do que no cigarro do
“depois”; quando as barreiras de cada um estão afrouxadas pela gostosa sensação
de saciedade, que se segue à ânsia do desejo.
- Que há? Não foi bom?
O homem desiste de continuar pensando. Apaga o
cigarro no cinzeiro de vidro e levanta-se preguiçosamente. Lembra-se de haver
lido, em algum lugar, que cada pessoa tem um jeito de reagir em seguida ao ato
do amor. Nu, enche de champanha uma taça e senta-se na borda da piscina, com os
pés dentro da água.
- Claro que foi; você faz muito bem.
- Você também; e não estou querendo retribuir o
seu elogio. Mas parece que isso não é tudo. Ou, pelo menos, tudo o que você
queria. Que foi que faltou?
- Nada, claro. Por que você pergunta isto?
- Porque estou vendo em seu rosto; é como se
uma parte de você estivesse satisfeita, e a outra não. O que é?
- Você é engraçada!
- Menos do que você. Que horas são?
- Três da manhã.
- Então, nos conhecemos há pouco mais de quatro
horas, naquela festa. E estamos aqui, no motel, já fizemos amor... já temos a
nossa história. E seus olhos continuam com a mesma tristeza. Por que?
Uma olhada nos seios fartos e firmes, que
parecem flutuar na superfície da água. O homem se volta para acender outro
cigarro, em busca de alguns segundos para pensar. E responde:
- Talvez por isto mesmo; porque tudo não passa
de algo que não sabemos o que é. Você é tão bonita! Mas é como se a gente
desfrutasse a beleza num banco de carro, ou num quarto de motel... e, depois,
fica este gosto amargo na boca; algo assim como se pudesse ter sido melhor, você
entende?
O champanha fazendo efeito. O corpo nu torna a
pessoa mais sincera, como se junto com a roupa se despisse uma parte dos
preconceitos, da natural defesa que cada um de nós tem contra todos os outros.
Ambos se predispõem a confidências; em cada um existe aquela ferrenha
necessidade que o ser humano sente, às vezes, de se fazer entender. Como se
alguém pudesse entender completamente outra pessoa!
- Claro que entendo. E é por isto que estou
procurando conhecer você melhor. Pode parecer engraçado, mas nem me lembro do
seu nome.
- Fácil. Eu me chamo...
- Esqueça. Na verdade, não me interessa o seu
nome. Um nome não passa de uma grande mentira, atrás da qual nos escondemos para
conviver com os outros. E eu quero conhecer você; não quero que se esconda atrás
de um nome, que não quer dizer nada. Prefiro que você me fale, me olhe, me deixe
descobrir o que pensa.
Nos olhos do homem, uma luz de curiosidade. E a
atração pelo desconhecido, que já se desfizera na ilusão de posse, recomeça a
surgir, de mistura a um impreciso temor. Porque todos tememos aquilo que não
conhecemos, ou não conseguimos dominar; e, ao mesmo tempo, o adoramos. Não tem
sido este o princípio básico das divindades, em todos os tempos?
- Você gosta de filosofar?
- Tanto quanto você, ou qualquer outra pessoa.
Mas tenho a coragem de assumir os meus pensamentos, e vocês têm medo de fazer
isto. Não é muito mais fácil pensar que tudo se resume a coisas reais, que
podemos tocar e controlar? Basear a vida em aparências, dinheiro, posição social
e sexo pelo prazer? São os valores que a gente assume, é a grande mentira que
tentamos aceitar, o que nos deixa esse amargor na boca e na alma.
- Isto não lhe agrada?
- Às vezes; quem é que não gosta de pensar que
pode fazer a sua vida, decidir o seu destino? Mas, de vez em quando, é preciso
encarar a verdade e ver que as coisas que chamamos de realidades, não passam de
ilusões; o que faz a nossa felicidade, ou nos traz sofrimento, são as coisas que
preferimos considerar como ilusões.
Pensativo, ele sorve um gole de champanha. E a
voz dela, embora suave, lhe causa um pequeno sobressalto:
- Estou com frio. Me dá essa toalha?
Levanta-se e atende-a. Ela sai da piscina,
envolve-se no pano macio, curva-se e acende um cigarro. Depois, recostada na
cama, acompanha com o olhar as espirais caprichosas da fumaça. Meio intimidado,
o homem também sente necessidade de cobrir-se; enrola a toalha na cintura e
senta-se ao lado dela, na cama.
- Sabe que você pensa de um jeito esquisito?
- Talvez; mas vejo que você está com medo. De
mim, ou de ver que estou lhe mostrando algo que você sente e prefere ignorar?
- Por que você veio comigo, então?
- Porque gostei de você. Porque você é bonito e
me pareceu um menino perdido, brincando de adulto. Porque senti que você
precisava de amor. E, agora, estou feliz por ter vindo; e por estar com você.
A mão delicada ensaia uma carícia, no rosto
confuso, e os lábios pousam sobre os cabelos curtos e revoltos. Flutuam no ar os
acordes de “Proposta”, que agora parecem significar mais do que de costume. A
proximidade dos corpos reacende o fogo do desejo; agora mais manso e verdadeiro,
com o início do conhecimento.
A toalha escorrega dos ombros dela; os seios
ficam novamente expostos. Os dedos do homem afagam carinhosamente um dos
mamilos, sentem a sua dilatação suave; descem para o umbigo, e continuam a sua
trajetória pela pele macia. A memória traz de volta os sonhos do menino, as suas
ilusões sobre a vida; coisas que o tempo e a necessidade de viver haviam levado
para sempre.
Uma pausa nas carícias, a lembrança de uma
pergunta importante. E a voz da mulher:
- Você acredita em amor?
- Acredito que você está aqui, e eu estou
querendo você. Acredito na atração pelo seu corpo, nas reações que sinto no meu
próprio corpo; parece que já acreditei em outro tipo de coisa, há muito tempo. O
que você chama de amor?
- É algo que negamos e procuramos todos os
dias. É a necessidade de possuir uma pessoa e corpo e alma, enquanto esperamos
que ela não se deixe possuir inteiramente, pois isto traria a morte do nosso
sentimento. É a emoção de olhar nos olhos de alguém e sentir uma comunicação
invisível e presente, que através dos nossos próprios olhos encontra a nossa
alma. É a presença na ausência; o tudo que pode virar nada ou o nada que, de
repente, se torna tudo. E é, também, o que estamos fazendo: esses seus beijos em
minhas coxas e as sensações que me causam; é a ânsia do desejo e a ternura
satisfeita da saciedade temporária. É a diferença do gosto de cinza, na boca e
na alma, e a felicidade da comunhão total, depois do orgasmo. Sou eu, é você; é
a parte mais devassa e pura, mais alegre e triste, mais importante e escondida
de cada ser humano.
Esquecidas as toalhas, as peles se encontram.
Sob a ação dos afagos, os corpos se arrepiam e as vozes se tornam roucas. Algo
impreciso, uma sutil mudança na relação entre os dois; uma sensação de
companhia, de complementação, de que nenhum eles voltará a estar só. A voz de
Roberto Carlos escapa das caixas de som:
“- ... eu estou aqui, vivendo este momento
lindo...”.
E o homem e a mulher se encontram, se perdem um
no outro. Juntam seus corpos e misturam seus sonhos. Gemem e sorriem, sabendo
que, depois deste momento, haverá mudanças em ambos; que nada será como antes.
No ambiente, como que uma aragem mágica. E, por
entre os sussurros, uma palavra apenas murmurada se destaca das outras, como um
grito confiante e desesperado, e parece deter-se no ar, flutuando sobre os dois:
- Amor!...
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