Lanin Lanin Lanin
1ª Parte


Uma Tigrada Extra-Punk

Uma tigrada extra-punk, foi a melhor classificação que encontrei para a escalada do vulcão Lanin que eu e meu amigo Hsu Wang Chang, do Centro Excursionista Universitário, fizemos no final de dezembro de 1996. Nos seis dias que durou nossa jornada, enfrentamos uma nevasca de 18 horas seguidas; içamos nossas pesadíssimas mochilas em belos paredões verticais de gelo; desenroscamos infinitas vezes a nossa corda de escalada, que insistia em se prender aos estalactites e asas de anjo; atravessamos grandes gretas em frágeis pontes de neve; e traçamos nosso caminho montanha acima num labirinto de seracs suspensos. Embora o vulcão fique na fronteira com o Chile, fizemos toda a escalada no lado Argentino. Foram cinco dias para subir do lago Huechulafquen ao cume pela via Sul, e um sexto dia para descer de lá até o passo Tromen pela via Normal. No total, seis dias de pura aventura.

Eu sobre a Cornija

O vulcão Lanin está localizado perto das cidades de Junin de los Andes, na Argentina, e Pucón, no Chile. Com 3.776 metros de altitude, é a montanha mais alta da região, oferecendo um visual desimpedido em todas as direções. Seu nome foi dado pelos índios mapuches, que habitaram a área no passado, e significa inativo. De fato, o tranqüilo Lanin contrasta com o vizinho Quetrupillán (Villa Rica) que exibe uma cratera fumegante em seu topo e, de tempos em tempos, entra em erupção. O cume do Lanin é formado por um snowcap cercado de glaciares no lado Sul; belas e perigosas cornijas a Oeste; e rampas relativamente suaves a Nordeste. É neste último lado que fica a via Normal, um acesso fácil ao cume, muito trafegado por militares e montanhistas que iniciam sua ascensão em Tromem, um posto de fronteira argentino na estrada que liga Pucón a Junin. Na metade da subida, há três refúgios que abrigam os que ascendem ao cume da montanha por esse caminho, oferecendo abrigo em caso de tempestade e facilitando a jornada.

Hsu e eu, porém, decidimos subir pela via Sul, bem mais técnica e exigente do que a Normal. Iniciamos nossa caminhada no dia 23 de dezembro, perto de um aglomerado de casas no estreito que liga os lagos Paimum e Huechulafquen, no Parque Nacional Lanin. Seguimos pela floresta temperada primeiro na direção Nordeste, rumo ao vale do riacho Rucu Leufu. Lá, tomamos uma trilha sinalizada com manchas de tinta amarela. Essa trilha sobe sempre, acompanhando o riacho no rumo norte, em direção ao vulcão. O caminho é muito florido nessa época do ano e passa por uma sucessão de pequenas quedas d'água. A medida que ganhávamos altitude, as árvores iam aparecendo cada vez mais baixas, até se transformar em arbustos e, finalmente, dar lugar a vastas encostas de pedras soltas, chamadas de morenas ou pedreiros. Segundo nos disseram em Junin de Los Andes, a trilha, nesse ponto, segue para Leste ou Nordeste e contorna toda a base da montanha até Tromem.

Ventos Patagônicos

Hsu e eu desviamos um pouco para Noroeste e depois novamente Norte, subindo sempre pelas pedras soltas e acompanhando um dos tributários do Rucu Leufu. As marcas amarelas desapareceram, de modo que passamos a nos guiar pela intuição, pela visão do cume distante e por alguns esparsos marcos de pedra. Tínhamos apenas informações muito vagas sobre essa escalada e não sabíamos exatamente o que íamos encontrar. Por isso, carregávamos muito material de acampamento, equipamento de escalada em gelo e comida para uns oito dias. As mochilas, com mais de 30 quilos de carga cada uma, nos desequilibravam a cada passo. Rajadas de vento nos obrigavam, às vezes, a parar e firmar bem os bastões de esqui para não cair.

Quando finalmente acampamos à margem de um pequeno riacho, uma dessas rajadas arrancou nossa barraca do chão e carregou para longe nosso plástico de chão e alguns outros objetos. Depois de andar por cerca de 20 minutos em busca do plástico levado pelo vento, avistei algo que parecia ser uma placa retangular branca apoiada nas pedras. Quando cheguei perto, vi que era uma lâmina de borracha que eu havia levado para sentar sobre o gelo e para apoiar o fogareiro. A visão do objeto carregado a uma distância tão grande foi uma demonstração dramática da força do vento patagônico. Quando voltei à barraca, tratei de ajudar o Hsu a prendê-la de todas as formas possíveis. Estávamos a 1.850 metros de altitude e a temperatura, à noite, deve ter ficado em torno de zero grau.

No dia seguinte, continuamos nossa ascensão pelas morenas, cruzando manchas de neve de tempos em tempos. Nosso alvo era um grande campo de neve que se estendia no sentido norte-sul e oferecia um caminho natural para o alto. No final dele, estava uma icefall visível desde longe com seu amontoado de seracs suspensos. Em volta dela, as paredes eram negativas e pareciam oferecer grande risco de desabamentos, de modo que a icefall era a melhor aposta para um caminho rumo ao cume nesse lado da montanha. De longe, não tínhamos como avaliar a dificuldade de escalá-la. Tanto poderia ser fácil como intransponível. À tarde, o vento continuava forte, nuvens escuras cobriram o Lanin e parecia não haver nenhum lugar acampável à frente, o que nos deixava preocupados. Em Junin, haviam nos falado vagamente na existência de um refúgio nesse lado da montanha, mas as informações eram contraditórias. Um militar que conhecia a região disse que o tal refúgio não passava de um amontoado de tábuas, de modo que tínhamos pouca esperança de encontrá-lo.

18 Horas de Neve

O avanço pela morena foi ficando cada vez mais difícil por causa das pedras muito soltas que rolavam sob os nossos pés. As nuvens pareciam feitas de chumbo. Foi com enorme alegria que ouvi Hsu gritar, do alto de uma elevação, que havia avistado o refúgio. Seguimos sem demora na direção da pequena casa de perfil triangular, atravessando um monte de pedras soltas e depois uma mancha de neve. O refúgio do Clube Andino de Junin de los Andes (CAJA) é simples mas bem construído. O chão, de terra batida, tem 2,5 por 4 metros. Duas superfícies de telhas metálicas revestidas, por dentro, com lã de vidro e plástico, são ao mesmo tempo paredes e teto. Quando chegamos lá eram 17h e o altímetro marcava 2.500 metros. Comemos um lanche, vestimos nossas botas de alta montanha e saímos para um reconhecimento no gelo.

À medida que subíamos, percebemos que o grande campo de neve que víamos de longe era, na verdade, um glaciar, com gretas, algumas paredes expostas e gelo duro sob a camada de neve. Apelidei essa geleira de Glaciar Inferior. Começou a nevar e o vento aumentou. Depois de algum tempo, a neve descia quase na horizontal e batia com força nos nossos rostos. Ás 19h, depois de caminhar por uma hora, decidi voltar ao refúgio. O persistente Hsu continuou sozinho, chegou a poucos metros da icefall e acabou se perdendo na descida. Com visibilidade quase a zero - tudo branco em volta - ele atravessou às cegas as sucessivas manchas de neve e acabou achando o caminho até a cabana, onde chegou um tanto apavorado. Preparamos nosso jantar e adormecemos enquanto a tempestade rugia lá fora.

Acordei de madrugada com um geladíssimo spray de neve batendo no meu rosto. Quando olhei, uma camada branca cobria minha mochila e outros objetos que estavam no canto do refúgio e começava a molhar meu saco-de-dormir. O vento era tão forte que forçava a neve pelas pequenas frestas existentes na edificação. Limpei a neve dos objetos, armamos a barraca dentro do refúgio e voltamos a dormir, agora protegidos pelo teto de nylon. A nevasca durou 18 horas seguidas. Enquanto Hsu hibernava, costurei algumas roupas rasgadas, me alimentei e organizei o equipamento. Estávamos tão envolvidos com a ascensão que quase não percebemos que era Natal. Durante as horas em que fiquei sozinho (Hsu estava dormindo) no refúgio, porém, foi inevitável pensar nas pessoas queridas que deviam estar comemorando a data no Brasil. Quando saí para fora, a paisagem havia se transformado completamente. Uma camada branca cobria os afloramentos rochosos e o próprio refúgio. Do teto e das maçanetas da porta, brotavam belos estalactites de gelo.

Hsu na Icefall

Subindo a Icefall

Assim que o sol apareceu, vestimos nossas botas e fomos para o gelo novamente. Caminhamos uma hora e meia pela rota já conhecida através das manchas de neve e do Glaciar Inferior. Hsu havia descrito o lance inicial da icefall como uma "rampa fácil". Recebi essas palavras com ceticismo considerando que, quando ele esteve lá, no dia anterior, a visibilidade era reduzidíssima. Quando chegamos perto, vimos que a tal "rampa fácil" avançava apenas 15 metros para Leste e terminava na base de uma parede de gelo quase vertical, de uns 15 metros de altura. Nos encordamos e escalamos por essa parede. Enquanto eu dava segurança para o Hsu, observava um grande teto de gelo com muitos estalactites, uns 15 metros acima da minha cabeça. Devia pesar milhares de toneladas. Se esse bloco desabasse, eu provavelmente seria atingido e, talvez, morto. Tentei me posicionar um pouco ao lado, fora da linha de queda, mas a tensão era grande e a vontade de sair rapidamente daquele lugar também.

Uma camada de gelo quebradiço cobria o corpo principal do serac. Quando comecei a subir, percebi que precisava chutar várias vezes a parede, quebrando a camada mais frágil, para encontrar gelo razoavelmente sólido e firmar os dois dentes frontais dos crampons. As piquetadas, também, nem sempre funcionavam no primeiro golpe. Às vezes, a lâmina entrava facilmente, como se o gelo fosse sorvete, mas quando eu colocava peso nela, a placa superficial se espatifava, soltando-se. Nesses trechos quebradiços, vários golpes eram necessários para encontrar gelo duro e espetar solidamente a lâmina. Isso tornava o avanço parede acima demorado e cansativo. Se eu estivesse guiando, aquele gelo solto teria me proporcionado boas doses de adrenalina. Mas Hsu havia guiado esse lance e estava me dando segurança por cima com a corda, de modo que pude escalá-lo tranqüilamente.

Depois da parede, avançamos mais 15 metros pela rampa em cima do serac. Na verdade, subíamos por uma estreita faixa de gelo entre duas grandes gretas dispostas longitudinalmente no glaciar - um cenário lindo e assustador. Tínhamos vencido o primeiro lance, mas não dava para ver o que havia à frente. De longe, tínhamos avistado o que parecia ser uma grande parede negativa em nosso caminho, um obstáculo que poderia ser bem difícil de transpor. Mas só chegaríamos nela no dia seguinte. No alto do serac, fixamos a corda em dois parafusos de titânio e descemos por ela, em rapel, de volta à base da icefall. De lá, refizemos nosso caminho, glaciar abaixo, até o refúgio que nos servia de base temporária. Uma consulta ao barômetro mostrou que a pressão atmosférica havia subido um pouco durante a tarde - sinal de que o tempo continuaria bom no dia seguinte. Dormimos contentes e ansiosos pela continuação da aventura.

2ª Parte - O Labirinto de Seracs

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© - O texto e as fotos desta página são da autoria de Maurício Grego. Seus comentários e sugestões são bem vindos. Página atualizada em 19/out/97.