B U R E A U    D O S    S E G R E D O S    P Ú B L I C O S

 

 

 

 

Comunalismo
Das Origens ao Século XX

 

19. Étienne Cabet

20. Huteritas Novamente

EPÍLOGO — Comunalismo Pos-Apocaliptico


 

19. Étienne Cabet

Étienne Cabet nasceu em 1788, um ano antes da queda da Bastilha. Durante os primeiros quarenta anos de sua vida ele foi um típico jacobino radical da geração pós-revolucionária, intocado pela desilusão do velho homem cuja infância e mocidade foram vividos sob o Terror, o Diretório, e o Império Napoleônico. Em 1820 em Dijon, passando por cima da lei tornou-se diretor de uma organização revolucionária conspiratória francesa, a Carbonari. Na Revolução de 1830 ele era membro do Comitê de Insurreição. Louis Philippe designou-o como Advogado Geral de Córsega, mas foi demitido por seus ataques ao governo em seu livro Histoire de la révolution de 1830, e em seu jornal Le Populaire. Ele retornou a Dijon e foi eleito deputado, quando foi acusado de lèse-majesté sendo condenado a dois anos de prisão e cinco anos de exílio. Ele foi para Bruxelas, foi expulso, e emigrou para a Inglaterra onde se tornou discípulo de Robert Owen.

Na anistia de 1839, Cabet volta à França e no ano seguinte publica uma história da Revolução Francesa, e Voyage en Icarie, uma semi-ficção que descreve uma sociedade comunista, considerada por ele como uma versão moderna da Utopia de Thomas More, aperfeiçoada pelas teorias econômicas de Robert Owen. Não há nada particularmente original ou excitante nos planos de Cabet em torno de uma nova sociedade, mas da mesma forma que na Utopia de More, Voyage en Icarie dispara uma crítica devastadora à ordem social contemporânea — que provavelmente representava, para Cabet, a parte mais importante. Seu sucesso deve tê-lo pasmado. Tornou-se um best-seller, lido ou pelo menos comentado por quase que todos os radicais trabalhadores e intelectuais. Durante os próximos sete anos com o Le Populaire e o novo jornal, L’Almanach Icarienne, ele constituiu uma gama de leitores que, segundo ele, chegava a meio milhão. No princípio, como Edward Bellamy, autor de Looking Backward no final do século, não lhe ocorreu que as pessoas desejariam pôr suas idéias utópicas em prática, mas o grande sucesso de seu movimento finalmente o persuadiu. Seus seguidores pediram que ele os conduzisse em direção à comunidade do futuro, e ele já havia começado algumas experiências de alguns Icários na França que foram mal concebidos ou que abortaram.

Em 1847 Cabet emitiu um manifesto, “Rumo ao Icário”. A França estava carregada, estropiada por um governo despótico, e nunca permitiria o estabelecimento de comunidades modernas, que logo iriam, pelo seu exemplo, revolucionar a sociedade. Na América seria possível construir uma colônia comunista de dez ou vinte mil pessoas na fronteira, e em alguns anos haveriam milhões de adeptos. A resposta foi tremenda. Ele foi coberto de presentes, penhores, e recrutas.

Cabet não havia escolhido um local e nem mesmo desenhado um plano definido para uma base de acordo, ele deve ter ficado um pouco amedrontado, e foi para Londres para consultar Robert Owen. Naquela época Owen estava entusiasmado com o Texas, que acabava se ser anexado à União e estava ansioso por colonos. Pouco tempo depois, um corretor de terras em Londres persuadiu Cabet de adquirir um milhão de acres em Red River, “facilmente acessível através de barco”.

Em 3 de fevereiro de 1848, um grupo de observação viajou para o Texas. Em New Orleans eles descobriram que haviam comprado apenas cem mil acres, não um milhão, de selva, a duzentos e cinqüenta milhas do rio, loteados como um tabuleiro de dama, com os quadrados alternativos ainda em posse do estado; e pelos termos do contrato, eles eram obrigados a construir uma casa de troncos em cada uma das seções antes de Julho. Além disso, Red River não era navegável além de Shreveport, Louisiana, onde foi bloqueado por um imenso e permanente dique.

Destemidos, sessenta e nove franceses entusiasmados, sem qualquer experiência de vida na selva, juntaram a maior parte de seus bens e partiram por terra em uma diligência puxada por bois. Eles não sabiam nem mesmo manejar a diligência e os bois. A diligência quebrou e acabaram presos em um pântano. As pessoas começaram a pegar malária. A comida começou a faltar, até que finalmente chegaram ao local da Icária, onde encontraram os corretores da Peters Land Company, que lhes informou que qualquer terra que não fosse ocupada por uma cabana habitada em cada meia milha quadrada reverteria para a companhia que ficaria satisfeita em revendê-la a um dólar por acre. Não havia qualquer possibilidade de cumprir o contrato, mas os sessenta e nove pioneiros escreveram uma carta desesperada para Cabet e se fixaram para trabalhar. Embora muitos deles fossem mecânicos qualificados, quase nenhum era fazendeiro e nem mesmo, curiosamente, construtor. Eles não sabiam arar a terra, e as trinta e duas cabanas que conseguiram construir não passavam de choupanas. Cada vez mais pessoas ficaram doentes, provavelmente com malária. O médico do grupo dizia que era febre amarela, mas todos seus diagnósticos apontavam para doenças fatais, e em pouco tempo ficou provado que ele era um demente. A maioria dos membros adoeceu — a água não era potável, mas poucos morreram. Pela primavera, chegaram mais dez colonos, um número bem distante dos quinhentos que Cabet havia prometido.

Enquanto isso, voltando à França, a Revolução de 1848 derrubara Louis Philippe, e nos próximos meses líderes revolucionários como o poeta Lamartine, Cabet, seu amigo Louis Blanc, e outros da esquerda acabaram desacreditados, em parte pelos seus próprios erros, mas muito mais pela oposição organizada da direita e dos bonapartistas. Em 15 de dezembro, Cabet viajou para a América com quase quinhentos novos colonos, ao chegar encontrou os remanescentes do estabelecimento pioneiro completamente falidos em New Orleans. Cabet desejou retornar ao Texas, mas os remanescentes do grupo pioneiro se rebelaram. Passaram todo inverno envolvidos em um amargo conflito, e eventualmente quase duzentos, a maioria membros do grupo que tinha vindo com Cabet, retornaram à França, enquanto que os demais encontraram emprego temporário em New Orleans enquanto Cabet comprava um novo local. Na primavera ele comprou todas as propriedades disponíveis da cidade de Nauvoo no Illinois em virtude dos Mormons terem recentemente migrado para Utah. Através de um sinal e de uma grande hipoteca ele adquiriu uma variedade de fábricas e lojas, uma destilaria, um grande conjunto habitacional, numerosas casas de família, as ruínas de um templo de sacrifícios rituais, e mil e quinhentos acres de terra. Duzentos e oitenta fiéis icarianos subiram o rio com Cabet para seu novo lar. Perseguidos pelo destino que os caçava, vinte deles morreram de cólera no caminho.

Nauvoo parece ter sido ideal. Como Owen em Nova Harmonia, Cabet assumiu uma aldeia completamente equipada, ou bem equipada, uma pequena cidade que a Igreja Mormom tinha administrado, com sucesso, até que se tornasse motivo de perseguição, mas a prosperidade foi tal que despertou inveja de toda vizinhança. Durante algum tempo, os icarianos pareciam também prosperar. Cabet como membro experimentado — testado, se não pelo fogo, pelo menos pela lama, mosquitos, doença, e fome. A maioria das pessoas era composta por artesãos experientes, e em pouco tempo as fábricas e oficinas voltaram a operar. Por incrível que pareça, havia muito poucos fazendeiros, boa parte dos mil e quinhentos acres permaneceram incultos. Durante o ano, novas levas vindas da França dobraram o tamanho da colônia. Mas o desequilíbrio entre artesãos e fazendeiros aumentou.

Com toda a imensa propaganda que Cabet espalhou pela França, aparentemente ele nunca fez qualquer esforço para recrutar tipos específicos de trabalhadores para satisfazer as necessidades da colônia. Com mil e quinhentos acres de uma das melhores terras do Vale do Mississipi, a Icária Nauvoo não conseguiu, como colônias desequilibradas semelhantes haviam feito anteriormente, adquirir trabalhadores rurais. Em vez disso, eles compravam a maior parte de seu alimento no mercado. O trabalho nas oficinas continuava indiferente ao crescente déficit, que era coberto por contribuições em dinheiro que a Senhora Cabet enviava da França. Não parece ter ocorrido a Cabet que havia qualquer coisa errada com isso. Suas cartas e relatórios daquele tempo são uniformemente otimistas, na realidade, eufóricos.

Como sempre, os colonos inauguraram uma escola progressiva, com instrução ministrada tanto em francês como em inglês para suas crianças, com classes de inglês para adultos. Eles imprimiram um jornal e vários panfletos. Montaram uma orquestra, uma banda, uma companhia de teatro, conferências para residentes e visitantes, e grupos de discussão e estudo. Cabet, porém, não estava contente. Ele ainda esperava fundar uma cidade utópica, não uma aldeia, na qual as habitações seriam palácios, e o trabalho das pessoas um mero passatempo, e onde todos vivessem sonhos agradáveis.

Em 1852 os colonos que se separaram dele em New Orleans o processaram por desfalque e ele retornou para se defender. Os tribunais franceses o absolveram e em seu retorno foi recebido com um banquete de boas vindas em New York, uma viagem triunfante pelo país, e outra celebração em Nauvoo. Nessa época, a colônia teve um modesto sucesso. Até mesmo o problema da agricultura estava a caminho de ser resolvido, o déficit estava continuamente recuando. Para Cabet esse era apenas o começo. Ele foi até Iowa e com uma hipoteca comprou três mil acres de terra, o lugar da cidade de seus sonhos, o Jardim do Éden comunista.

O governo da colônia tinha sido vagamente concebido no aspecto econômico. Na França Cabet tinha sido aceito como ditador por dez anos, este arranjo foi renovado em New Orleans e novamente em Nauvoo. Mas em 1850, convencido do sucesso da colônia e de sua prontidão para um puro governo comunista, Cabet instalou sua ditadura. Em 1850 adotou uma constituição com uma junta de seis governadores, e uma variedade de comitês administrativos para cuidar dos detalhes do funcionamento da vida comunitária. Cabet foi eleito presidente ano após ano até 1855. Em dezembro ele propôs que a constituição fosse reescrita provendo a eleição de um presidente com poderes ditatoriais para escolher os membros do conselho de administração e de todos os comitês.

A constituição previa uma revisão anual em março, assim a comunidade se rebelou e, na eleição de fevereiro de 1856, J. B. Gerard foi eleito presidente. Isso resultou em um conflito tão trave que Gerard renunciou e Cabet foi reeleito sob a velha constituição por mais um ano. Durante seis meses a maioria dos diretores o apoiou, mas a maioria da assembléia geral de toda comunidade se opôs a ele. A principal razão desta oposição parece ter sido uma crescente excentricidade na pessoa de Cabet. Ele proibiu bebidas alcoólicas na comunidade e insistiu que toda produção da destilaria fosse vendida fora. Ele propôs proibir completamente o uso de tabaco, passando em seguida a tentar impor suas próprias noções de dieta e sua excêntrica mas puritana moralidade sexual. A verdade é que Cabet estava se tornando um homem velho, adepto de esquemas visionários sem nenhuma praticidade, rígido em suas tentativas para sua aplicação, e de temperamento desequilibrado — um produto típico de toda uma vida exaurida na orla do radicalismo. Na eleição do verão ele perdeu sua maioria no conselho de administração e a colônia desabou no caos.

Em nenhuma outra comunidade comunista temos registros de conflitos tão violentos. No princípio as facções pararam de falar umas com as outras, agrupando-se separadamente no refeitório, e engajando-se em atividades sociais separadas. O trabalho cessou nas fábricas e nos campos. As crianças brigavam umas com as outras na escola, e logo os sócios estavam literalmente lutando nas ruas. Neste momento o conselho de administração anti-Cabet decidiu que aqueles que não trabalhassem não deveriam comer, e cortou as rações dos grevistas em 13 de agosto. Cabet e a minoria responderam com uma petição ao governo do estado para que revogasse a escritura da comunidade. A maioria reagiu a esta atitude votando por unanimidade pela expulsão de Cabet e de seus seguidores, que boicotaram o encontro. Quatro semanas depois, Cabet e cento e setenta fiéis seguidores, muitos dos quais tinham estado desde o princípio com ele no Texas, chegaram em St. Louis e, da mesma forma que haviam feito há muito tempo atrás em New Orleans, passaram a trabalhar individualmente como mecânicos. Uma semana depois, Cabet estava morto.

Em nenhum aspecto a morte de Cabet representou o fim dos icarianos. A maioria em Nauvoo reagiu com culpa e arrependimento. Com o passar do tempo, a memória de seus erros, mau humor e do amargo sectarismo dos seus últimos anos foi enfraquecendo. Cabet tornou-se uma espécie de herói cultuado, o fundador de uma nova civilização, como Teseu ou Rômulo nas páginas introdutórias de Plutarco, e citações de seus pensamentos passaram a ser lidos nos encontros, como Evangelhos e epístolas na Igreja.

O grupo de St. Louis se estabeleceu em três grandes casas cooperativas e juntaram todos os seus recursos. Os sócios enviaram suas crianças para escolas públicas, mas organizaram classes para educação de adultos, especialmente de inglês, onde eram ainda deficientes. Eles separaram parte de uma grande livraria comunitária, e montaram uma grande sala de estudo e de recreação. Aos finais de semana, durante a noite, eles continuaram com seus entretenimentos musicais e teatrais, aos domingos eles se encontravam para se instruir nos princípios de Jesus Cristo e Étienne Cabet. Eles também criaram seu próprio jornal, o Revue Icarienne. Fiéis a seus princípios, eles se abstiveram do consumo de toda espécie de bebidas alcoólicas e tabaco.

O movimento na França reconheceu o grupo de St. Louis como a comunidade icariana oficial, recebendo assim uma renda fixa de contribuições e periódicos recrutamentos de novos membros vindos do estrangeiro. Os homens encontraram emprego e bons salários e a comunidade funcionava como uma comuna urbana bastante próspera, uma das primeiras dessa espécie. Mas eles não estavam contentes.

Eles compraram uma fazenda, a propriedade em Cheltenham, um local que agora se situa dentro dos limites da cidade de St. Louis, e retornaram à terra. Muitos membros continuaram em seus empregos em St. Louis, mas seus salários caíram consideravelmente. O local estava empestado — todo o Vale do Mississipi parecia tomado pela malária naqueles dias; e as colônias comunistas sempre pareceram predestinados a achar os locais mais infestados de malária. Ainda não havia fazendeiros suficientes, de forma que a terra não conseguia nem mesmo alimentar a comunidade. Não havia nenhuma oficina ou fábricas, apenas algumas cabanas de tronco e uma casa forte. Dentro de um ano, a mesma facção que dividira Nauvoo se desenvolveu em Cheltenham. A maioria desejou perpetuar a ditadura estabelecida por Cabet. A minoria insistiu na completa democracia. Quarenta e dois dos democratas se retiraram, e a colônia não pode se recuperar de sua secessão, de forma que substituíram a maioria dos artesãos qualificados por mão-de-obra assalariada. Em 1864 apenas oito homens, sete mulheres, e suas crianças compunham a esquerda. O movimento francês desvaneceu-se e nenhum dinheiro ou recrutas vieram mais da França. A hipoteca foi cancelada e tanto Icária como Cheltenham deixaram de existir.

Depois da secessão da minoria, a comunidade dos duzentos e cinquënta de Nauvoo declinou rapidamente. Os lucros das fábricas, lojas, e destilaria acabaram, provavelmente por falta de trabalhadores qualificados, a maioria daqueles que foram para St. Louis. Os Mormons, que ainda detinham uma considerável hipoteca ameaçaram com execução hipotecária. A propriedade era simplesmente muito grande para que seus membros pudessem operá-la. Eles decidiram migrar para o local em Iowa onde Cabet tinha planejado construir a palaciana Cidade de Utopia. Eles se instalaram em uma terra bruta, longe de tudo, embaraçados com uma hipoteca de dez por cento. Em 1863 apenas trinta e cinco, doentes, enfraquecidos, e esfalfados comunistas pertenciam à esquerda.

Eles foram salvos pela erupção da Guerra Civil. Os colonos inundaram Iowa para salvá-la para a União. A colônia encontrou um mercado pronto para seus produtos a preços bons, eles venderam dois mil acres que não conseguiam cultivar por dez mil dólares. Durante doze anos eles prosperaram, de tal forma que compraram de volta alguma terra. Eles construíram casas decentes, plantaram pomares e vinhedos, e começaram a adotar uma agricultura mais intensiva. Considerando que eles tiveram que aprender a praticar a arte da agricultura, provavelmente o trabalho deles era duro demais para desperdiçar tempo em disputas. Pelo menos, considerando sua história passada, suas relações pessoais eram notavelmente uniformes.

Em 1876 havia setenta e cinco membros. Eles tinham uma dúzia de habitações familiares em três lados de um quarteirão, um grande edifício central com uma cozinha comunitária e um refeitório, que também era utilizado para assembléias e recreação, uma padaria e uma lavanderia, uma leiteria, estábulos, celeiros e um grande depósito de madeira, tudo em um belo local nas escarpas do vale do Rio Nodaway; atrás dele haviam dois mil acres férteis, setecentos cultivados com madeira, prados, e pastos. Possuíam seiscentas ovelhas, cento e quarenta bovinos, a maioria vacas leiteiras, cultivavam trigo, milho, batatas, sorgo, legumes, e pequenas frutas, além de vinhedos e pomares. Todas as refeições eram tomadas em comum, e muitos serviços como lavanderia eram executados para a comunidade como um todo. Durante a noite depois do jantar havia danças, música, e recreação organizada ou espontânea, aos domingos havia um serviço que incluía uma conferência, ao mesmo tempo em que cantavam suas próprias canções, e faziam leituras sobre a obra de Étienne Cabet.

O desastre que se abateu sobre o movimento radical francês pelo Terror que se seguiu à supressão da Comuna de Paris em 1871 trouxe novos recrutas e algumas mudanças, algumas óbvias, algumas sutis mas profundas, na ideologia da comunidade. A própria França nunca se recuperou da Comuna, assim, não é surpreendente que seus efeitos fossem sentidos tão longe de Paris, no seio de uma pequena comunidade de radicais franceses no meio das pradarias de Iowa.

Com o passar dos anos, ocorreram mudanças na economia de produção da colônia. Com exceção dos grãos e outras amplas colheitas, o produto dos trabalhos individuais dentro das habitações familiares prevaleciam no suprimento de alimento, verduras, legumes e leite. Similarmente os pequenos artesãos funcionavam como operadores quase que independentes e geralmente vendiam seus produtos ou trabalhavam fora em jornadas de meio período. A situação não era muito diferente das granjas coletivas russas antes das purgações em massa de Stalin. Foi a geração mais velha de revolucionários que abriu o caminho com Cabet insistindo neste limitado empreendimento privado. Os jovens, especialmente os refugiados da Comuna de Paris, exigiram um completo comunismo de produção. Muitos deles eram discípulos de Proudhon, Bakunin, Weitling (a própria colônia de Weitling, Communia, tinha se estabelecido ao nordeste de Iowa, no município de Clayton aproximadamente quinze milhas de Gutenberg), ou Marx, e os massacres e deportações que se seguiram à supressão da Comuna empurraram todos para a esquerda. O comunismo tinha deixado de ser uma filosofia de vida generalizada, um sentimento ou uma atitude, tornando-se uma ideologia, ou até mesmo um número de sistemas mutuamente antagônicos.

Os membros mais velhos tinham aprendido que ideologia não era suficiente e insistiam em manter os membros estritamente limitados. Os membros mais jovens mostraram que a colônia era pobre e esfalfada, com uma séria carência de pessoal, com apenas oitenta pessoas, e exigiram que tantos membros fossem admitidos na medida que a colônia pudesse suportar.

Durante os anos 1870 o conflito tornou-se irreconciliável, até que finalmente o grupo dos mais jovens foi até os tribunais pedindo a revogação da escritura, tecnicamente a colônia era registrada como uma cooperativa agrícola mas engajada em indústria. O tribunal concedeu o pedido, e os rebeldes incorporaram a colônia sob uma nova escritura em 1879, enquanto que aos membros mais antigos foram concedidos mil acres, várias casas e outros edifícios — e nenhuma dívida. Os débitos foram assumidos pelos rebeldes. O grupo antigo, que ironicamente assumiu o nome de Novos Icarianos, foi modestamente bem sucedido. Os insurgentes aumentaram seu rol de membros, abriram novas indústrias, cultivaram mais terra com métodos agrícolas melhorados, e mais que dobraram sua sociedade. Pela primeira vez na longa vida das comunidades icarianas, foi permitido às mulheres votar e ocupar cargos. A colônia foi oficialmente declarada não-religiosa.

A expansão econômica provocou uma dívida impagável, e a expansão da sociedade resultou logo no surgimento de novas facções, irreconciliáveis. Antes do outono de 1881 a comunidade mais jovem estava se desintegrando e incapaz de satisfazer seus credores. Foram feitos esforços para se mudar para a Califórnia e negociar com a colônia Speranza em Cloverdale, mas enquanto isso o próprio projeto de Cloverdale entrou em colapso, e a propriedade acabou vendida para satisfazer os credores — alguns deles pertenciam aos Novos Icarianos.

O velho partido administrou sua nova comunidade como fizera no passado. Eles plantaram pomares e vinhedos, trabalharam duro, se alimentavam de maneira simples, e se vestiam pobremente — eles usavam seus sapatos até o fim, e se divertiam com música e conferências de seus membros, possuíam uma biblioteca de mais de mil livros, todos em francês. Em 1883 eles tinham trinta e quatro sócios. Seus filhos partiram. Eles envelheceram. Um por um foram se afastando. Ao final do século uma grande proporção dos membros remanescentes já passava dos oitenta anos de forma que já não eram mais capazes de operar a propriedade, venderam-na, saldaram todos os débitos, e o dinheiro restante, bem considerável por sinal, foi dividido pró rata de acordo com o tempo de serviço. Cada sócio ou sócia adquiriu dinheiro suficiente para sustentar, ele ou ela, modestamente até o final de sua vida.

A Nova Icária pelo menos terminou numa mútua boa vontade e com solvência financeira. A utopia de Cabet tinha durado, de uma forma ou de outra, de 1848 até 1901, uma das mais longas vidas de todas as aventuras comunistas seculares. O mais notável de tudo foi ter durado tanto a despeito de suas incríveis dificuldades, sofrimento, e doença, um sectarismo quase que contínuo, trabalho duro, muito desse trabalho desperdiçado por falta de experiência, financiamentos ingênuos e impraticáveis, perda de dinheiro, e acumulação de dívidas. A vida sempre foi pobre nas comunidades icarianas. A vida da Fazenda Brook foi sibarita por comparação. Ao cabo, aquele punhado de sobreviventes ainda era uma entusiástica associação de comunistas, embora seja difícil dizer a qual associação pertenciam. As teorias de Cabet, eram impraticáveis quando definidas. Quando não eram definidas, eram vagas, sentimentais, como em sua posição sobre relações sexuais, direitos das mulheres, e o uso do tabaco, ou destrutivas e irrelevantes. Seu líder carismático foi expulso cedo da vida da colônia e ninguém assumiu seu lugar. Todavia Icária continuou, e a maioria de seus sócios, muitos deles comunistas convictos, migraram para outras comunidades depois que Icária foi vendida.

 

20. Huteritas Novamente

Deixamos os huteritas em 1770, quando foram convidados a se instalar na Ucrânia e na região do Volga por Catarina, a Grande. Em 1763 o governo russo emitiu um manifesto oferecendo terra de graça aos colonos estrangeiros — como de fato aconteceu, uma das terras mais férteis do mundo — completa liberdade de religião, escolas próprias, instrução em sua própria língua, isenção do serviço militar, uma considerável isenção tributária, desde que não convertessem os russos de fé ortodoxa. Vinte e três mil alemães, principalmente pietistas ou anabatistas, responderam ao chamado. Muitos vieram nos anos seguintes. Até que o acordo foi quebrado durante a Segunda Guerra Mundial quando eles foram exilados na Sibéria ou exterminados por Stalin. O "Volga Alemão" representava uma parcela diminuta mas significante da população russa européia.

Foi na Romênia e na Transilvânia que os huteritas se encontraram, como pacifistas absolutos, a mercê de tropas pilhando de ambos os lados. Eles apelaram ao chefe das forças russas, Count Rumiantsev, que lhes ofereceu suas próprias terras perto de Kiev, sob condições mais favoráveis que as do manifesto de Catarina. Eles chegaram no outono de 1770, e antes do inverno já haviam estabelecido as bases essenciais da colônia. Trouxeram consigo seus artesãos; e em poucos anos sua aldeia, conhecida como Vishenky, tornou-se modelo, com uma fábrica têxtil, cerâmica, uma loja de ferramentas e distilaria. Durante o tempo que permaneceram no Império Austríaco, sua cerâmica tornou-se famosa, alguns exemplares ainda hoje podem ser encontrados nos museus da Europa Central.

Em 1796 Rumiantsev morreu e seus filhos tentaram cancelar o velho acordo assinado com a comunidade. Os huteritas apelaram para o novo imperador, Paulo I, que apoiou o acordo original, garantindo todos os privilégios concedidos aos menonitas que migraram aos milhares vindos da Prússia para a Rússia. Trinta e dois anos depois eles se deslocaram de Vishenky para Radichev, numa distancia de oito milhas, para ocupar terras cedidas pelo governo. Naquele tempo sua população era composta por pouco mais de duzentos adultos.

Logo os huteritas ampliaram seus empreendimentos industriais, passando a produzir linho fino e seda. Provavelmente foram os primeiros a lançar a seda com sucesso na Rússia. Naqueles anos, a vida da comunidade diferia muito pouco daquela que podemos ver hoje nas comunidades huteritas dos Estados Unidos e Canadá — com a exceção de que havia mais indústrias. A terra foi dividida com dois acres e meio por família, apenas o suficiente para manter seus membros. Havia um completo comunismo de consumo. Eles almoçavam e jantavam em um refeitório comunitário, homens e mulheres em mesas separadas. As roupas que usavam eram distribuídas em igualdade de condições. Apenas um mínimo de posses pessoais era permitido. As crianças eram criadas em berçários. O dia começava e terminava com serviços religiosos, e passavam quase todo o dia de domingo dentro da capela.

Seu comunismo de produção, praticado desde o princípio, curiosamente, fez com que eles se tornassem os pioneiros do sistema fabril. Produtos como potes, panelas eram fabricados por etapas numa série de operações separadas, cada qual executada por indivíduos diferentes, ou seja, uma linha de produção. Contudo, as pessoas se revezavam nas tarefas, e até mesmo em sua ocupação, para evitar a monotonia. Os relatórios dos funcionários russos visitantes eram entusiásticos, tanto quanto podiam ser. Ao redor dos estabelecimentos huteritas haviam aldeias de camponeses russos, ineficientes, desordenadas, e imundas, virtualmente inalteradas desde os tempos neolíticos.

Por volta de 1840, a terra não estava mais dando conta de suportar o aumento da população, e em 1842 os huteritas foram forçados pelo governo a aceitar as mesmas regras impostas aos menonitas na Criméia, a concessão da terra enquanto fazendeiros individuais; e um esforço foi feito, tanto pelo governo como pela administração das comunidades menonitas, para quebrar seu modo comunista de vida. Alguns menonitas aceitaram, mas depois de alguns anos, a maioria retornou aos velhos padrões comunais, que se tornaram mais uma vez prósperos. Embora, muitos de seus empreendimentos industriais de pequena escala tenham continuado, esses anos foram caracterizados por uma ênfase maior na agricultura.

Em 1864 foi baixada uma lei colocando todas as escolas de todo império sob a supervisão do Estado, tornando o idioma russo exclusivo e compulsório como meio de instrução. O governo também anunciou que o serviço militar passaria a ser obrigatório dentro de dez anos. Os huteritas, por unanimidade, e a maioria dos menonitas, decidira emigrar. Membros de ambos os grupos foram para os Estados Unidos, Canadá, e América do Sul em busca de terra adequada e governos que lhes permitisse preservar seu modo de vida. Na última hora, o governo russo, ansioso por reter aqueles valiosos cidadãos, concedeu a maioria das condições originais de permanência, mas apenas uma pequena parcela de huteritas, embora um número considerável de menonitas, ficou para trás. Aqueles que persistiram na prática comunista foram exterminados pelos bolcheviques durande a Guerra Civil e durante a Segunda Guerra Mundial.

O primeiro grupo de huteritas, cento e nove pessoas, chegou ao Nebraska em 1874, partindo em direção ao Vale do Rio James no sudoeste de Dakota do Sul. Nos próximos três anos essa mesma trilha foi percorrida pelos migrantes que chegaram depois deles. Naquele tempo as terras disponíveis no Território de Dakota eram escassas. As Guerras Índias ainda eram constantes. A derrota de Custer em 1876 e a corrida do ouro em Black Hill ocorreram ao mesmo tempo. Em 1872 havia apenas doze mil habitantes no local que mais tarde receberia o nome de Dakota (Norte e Sul). Cada colônia que se estabelecia passava seu primeiro inverno em cabanas nas estepes, mas com a chegada da primavera começavam imediatamente a construir casas de pedra e celeiros, e antes do segundo inverno chegar já estavam morando em casas decentes. Essas colônias ficavam em locais bem distantes. O mundo as ignorava e elas ignoravam o mundo. Finalmente eles podiam voltar à ortodoxia rígida, à disciplina, e ao compromisso da vida comunal; devido a esse isolamento, eles ficaram necessariamente quase que completamente auto-suficientes. Eles teciam e produziam sua própria roupa, faziam seus próprios sapatos, criavam suas próprias ferragens e ferramentas, e criavam sua própria maquinaria agrícola. Porém, tirando aqueles ofícios absolutamente necessários, os huteritas se tornaram colônias puramente agrícolas na América. Eles nunca voltariam aos ofícios e empreendimentos industriais praticados durante seus primeiros cem anos.

O líder da primeira colônia, Michael Waldner, era ferreiro, ou Schmiedenleute, o Povo do Ferreiro. O líder do Dariusleute (ou o Povo de Darius) foi Darius Walther. O líder do último grupo que chegou foi Jacob Wipf, um professor, ou Lehrerleute, o Povo do Professor.

Por si próprias, as colônias floresceram. Por volta de 1915 havia mais de mil e setecentos membros nas dezessete colônias, quinze em Dakota do Sul e duas em Montana. O crescimento era quase completamente natural. Eles praticamente não fizeram nenhum convertido. Mas eles tinham, e ainda tem, uma das taxas de natalidade mais altas do que qualquer grupo na América. Por volta de 1917 eles ainda estavam isolados. Depois que Montana e Dakota se transformaram em estados, as colônias foram rodeadas por grandes fazendas, e cidades próximas.

Os Estados Unidos entraram na guerra e as leis estabelecidas não fizeram qualquer concessão aos objetores de consciência, nem mesmo para aquela parcela de membros de igrejas pacifistas históricas, ou coisa que o valha, como foi o caso dos huteritas. O governo tinha originalmente prometido aos colonos, na ânsia de atraí-los, que sempre seriam isentos de servir ao exército. Newton D. Baker, Secretário da Guerra, e autor do projeto de lei, aconselhou todos os homens jovens membros das igrejas pacifistas históricas a se alistarem no exército, irem para os acampamentos militares, e pedirem ao oficial comandante uma função de não combatente. Como é fácil imaginar, seguir este conselho implicou em prisão, tortura, perseguição, e violência.

Os huteritas foram categóricos recusando-se a lutar, alegando que não tinham nada a ver com projetos de leis, serviço militar, ou guerras. Além do mais poucos deles falavam qualquer coisa que não fosse em alemão. Eles foram presos, e na prisão foram submetidos a uma perseguição inexorável. Dois rapazes huteritas morreram sob tortura de guardas de prisão. Mais uma vez os huteritas foram forçados a migrar. Os jovens não foram apenas presos como desertores, mas também sofreram a violência da turba, o incêndio premeditado e o roubo de seu gado pelos fazendeiros vizinhos tornou-se mais e mais crescente. O estado de Dakota do Sul reafirmou sua incorporação, com o anúncio objetivo de “exterminar absolutamente os huteritas de Dakota do Sul”. Foram enviadas delegações ao governo canadense em Ottawa, e aos governos provincianos de Alberta e Manitoba, também foram feitos arranjos com a Canadian Pacific Railway. O Estado concordou em respeitar seu pacifismo, sua recusa em votar, ou ser funcionário público. Na realidade, o governo canadense estava tentando atrair os huteritas desde 1898. No outono de 1918 na medida em que os grupos chegavam iam se acomodando em seus novos territórios, os Schmiedenleute em Manitoba, os Darius e Lehrer em Alberta. Dez anos depois eles receberam de volta suas antigas terras de Dakota do Sul, estabelecendo novas colônias em Washington, Montana, Dakota do Norte, e Saskatchewan.

O governo canadense nunca provocara deliberadamente o sentimento anti-alemão em seus próprios cidadãos, como fizera a máquina de propaganda de Wilson, dirigida pelo intelectual liberal George Creel. A guerra terminou logo após a chegada dos colonos no Canadá, e durante vários anos eles foram mais do que bem vindos, e mais uma vez prosperaram. Porém, sua alta taxa de natalidade continuou, e novas colônias estavam brotando continuamente em novas terras, que eles cultivavam com bem mais eficácia do que seus vizinhos pagãos. Eles pararam de produzir seus próprios tecidos, embora a maioria dos colonos ainda produzissem seus próprios sapatos, e toda sua roupa de malha. O ferramenteiro é largamente confinado às carroças e consertos de maquinaria. O velho arado de mão, foice, ancinho, são coisas do passado. Ao contrário do Amish mais rígido, os huteritas sempre se esforçaram em adotar o que havia de mais recente em maquinaria em suas fazendas. Na realidade, eles freqüentemente eram muito criticados por supercapitalizar suas fazendas. Até hoje eles ainda vivem dentro de padrões severos e rígidos, sem gastar nenhum dinheiro em entretenimento ou utilidades domésticas, com exceção de refrigeradores que eles normalmente adquirem da Colônia de Amana, quanto a rádios, televisores, instrumentos musicais, e tudo o mais, inclusive a roupa que deve ser simples, é completamente proibido. Assim, suas fazendas são uniformemente bem sucedidas, eles não gastam seu dinheiro em outra coisa que não seja na maquinaria da fazenda.

Apenas nos anos recentes os huteritas permitiram a alguns poucos sócios cuidadosamente selecionados continuar sua educação além do mínimo legal, embora haja um sentimento crescente agora de que eles deveriam produzir seus próprios médicos e professores. No passado, um membro raramente se afastava da comunidade, obtinha uma educação de faculdade, retornava, se reintegrava, e servia a comunidade como um profissional residente. Considerando que eles não acreditam em cortes, eles ainda não pensam em produzir seus próprios advogados. Eles sempre treinaram suas próprias parteiras e enfermeiras.

Embora os huteritas adotem freqüentemente a política de comprar terras pouco atraentes para seus vizinhos, eles acabam ganhando bastante dinheiro com isso, pois logo transformam a terra ao ponto de torná-la o que há de melhor na região. Suas roupas são estranhas, embora de forma alguma tão estranha como as roupas do Amish mais rígido. Eles falam entre si um dialeto alemão antigo, embora todos eles falem o inglês. Como os quakers, eles nunca pechincham em cima dos preços. Eles compram quase todos os bens externos no atacado, e até mesmo a maquinaria mais pesada é freqüentemente comprada simultaneamente para várias colônias. Eles não dirigem automóveis por prazer -- as mulheres, incidentalmente, são proibidas de dirigi-los. Eles são um "povo peculiar", e todo contato com a sociedade pagã conspira contra a prática das virtudes apostólicas. Consequentemente eles são odiados e invejados. O preconceito canadense contra os huteritas vem aumentando continuamente. Tal preconceito nunca atingiu o fantástico grau de perseguição sofrida pelos doukhobors, pelo simples fato dos huteritas sempre responderem oferecendo a outra face. Ao contrário dos doukhobors, eles não acreditam em confrontos nem em manifestações não-violentas. Eles não incendeiam seus edifícios nem tiram suas roupas desfilando nus pelas cidades, nem cercam as prisões onde seus homens estão presos, com multidões cantando hinos e com mulheres nuas. O preconceito e a pressão canadense tem funcionado sob o disfarce da legalidade. Futricas abusivas e insinuações maliciosas são muito comuns entre os fazendeiros competidores nos bares das cidades vizinhas. O mais surpreendente é o preconceito que chega ao ponto de uma forte recusa em ver qualquer coisa boa nos huteritas, um tipo de desprezo que permeia silenciosamente no meio de profissionais educados, incluindo professores nas universidades canadenses, e inclusive estudantes de sociologia da religião.

Por outro lado, os pagãos de Dakota parecem ter aprendido sua lição; embora os huteritas possam ser invejados, eles são bastante admirados. O fato brutal do assunto é que, conforme profetizado por seu fundador, um cristianismo estritamente vivido inspira ódio e temor "no mundo". O Estado Romano perseguiu os cristãos primitivos porque eles recusaram queimar incenso a César. O populacho em geral os odiou porque eles eram exclusivos, vestiam diferente, apoiavam uns aos outros economicamente, eram honestos e corretos em seus procedimentos, não assistiam aos combates de gladiadores no circo, exceto como participantes forçados.

Os huteritas sem dúvida compõem a sociedade comunista mais antiga do mundo — ou na história, excetuando as tribos pre-alfabetizadas que mais ou menos ainda vivem na condição de "comunismo primitivo". Já faz quatrocentos e cinqüenta anos desde que Jacob Hutter em 1533 uniu as comunidades anabatistas desde a Suíça, Boêmia, Morávia, até o Tirol austríaco, persuadindo-os a adotar uma vida completamente comunal. Na idade dourada das fundações na Morávia, havia mais de vinte mil membros em mais de noventa aldeias. Hoje no Canadá e nos Estados Unidos, há mais de cento e cinqüenta colônias, contudo o número de sobrenomes é incrivelmente pequeno. Todos os huteritas existentes descendem das poucas famílias que sobreviveram séculos de migração, perseguição, e deserção.

Foi muitas vezes destacado que um dos principais fatores do fracasso da maioria das comunas do século XIX, particularmente as seculares, foi a ausência de critérios na aceitação de membros. As comunidades huteritas contemporâneas são o produto final da mais rigorosa seleção imaginável. Eles sobreviveram tanto ao martírio quanto à prosperidade, tanto à migração quanto aos ambientes políticos mais incongruentes, por onde passam o ambiente físico permanece notavelmente uniforme, as terras negras ucranianas, a pradaria de grama alta, a bacia do Danúbio. No princípio eles recrutavam os membros deliberadamente de acordo com as habilidades necessárias, desde artesãos até camponeses prósperos. Na Morávia, e durante algum tempo na Rússia, eles se fixaram em grandes propriedades senhoriais onde a auto-suficiência da economia de comunidades feudais tinha sobrevivido, uma auto-suficiência que eles aperfeiçoaram. Até nossos dias eles ainda tiram proveito das lições aprendidas em séculos de modo senhorial de vida. Embora os cristãos liberais modernos possam chamá-los de fundamentalistas, a confissão de fé huterita é na realidade mais flexível, menos rígida e, o que é muito importante, mais capaz de eterealização do que o da maioria das seitas anabatistas do passado ou das seitas milenaristas ou pentecostais das igrejas contemporâneas. Na realidade, o chiliasmo e o milenarismo se extinguiram.

Os huteritas não olham para si próprios como um remanescente colocado aparte para serem salvos do mundo do mal na Segunda Vinda e no Julgamento Final. Eles simplesmente se consideram cristãos, vivendo um tipo de vida que por si só os destaca como seguidores das palavras de Jesus e da vida apostólica conforme narrada nos Evangelhos e em Atos. Tanto os Evangelhos como Atos e as palavras de Cristo, se lidos sem preconceito, são marcados por uma escatologia dramática, pela expectativa da chegada iminente do fogo e do reino, este ajuste é semelhante ao efetuado pelas maiores e mais respeitáveis seitas cristãs. O grupo que mais se assemelha [nesse aspecto] aos cristãos apostólicos provavelmente são os Testemunhas de Jeová.

Mas diferentemente dos Testemunhas de Jeová ou dos muçulmanos negros, os huteritas não são uma sociedade trancada. Se a comunidade constrói um muro suficientemente impenetrável em volta de si mesma, cedo ou tarde ele virá abaixo. Os huteritas são quase tão abertos aos pagãos quanto os quakers. Eles aceitam silenciosamente suas crenças religiosas e o modo de vida que os diferencia do resto do mundo, e são felizes vivendo assim. Eles não usam cosméticos, nem vêem televisão, mas quando os pagãos fazem estas coisas isso não desperta neles nenhuma fúria santa. Eles não apenas aceitam se relacionar com o mundo, como também não aceitam que o mundo se relacione com eles. Isto é muito importante. Se eles tivessem sido combativos e envolvidos em grandes confrontos, enquanto minúscula minoria dentro de um mundo freqüente e amargamente antagônico, e na melhor das hipóteses indiferente, eles teriam há muito tempo sido destruídos. A sociedade huterita é verdadeiramente um reino de paz.

A maioria dos movimentos comunais dependeu do carisma de um líder individual, de um Robert Owen, ou de um John Humphrey Noyes, e teve sucesso na medida em que aquele líder era também um administrador prático e um homem com muitos conhecimentos, como Noyes foi, e como Owen não foi; ou, às vezes, da habilidade da mulher ou do homem carismático para ensinar um líder prático para compartilhar a administração da colônia. Trata-se de uma velha política, a política do pai-rei e do rei-guerreiro na transição da aldeia neolítica para a cidade. A constituição das comunidades huteritas foi cuidadosamente ajustada para permanecer acima do carisma de cada indivíduo da comuna proporcionando a viabilidade e a coesão da comunidade, bem como a eficiência de sua vida econômica. Talvez tenha sido esse cuidadoso controle do carisma que ajudou a sociedade a permanecer. Desde seu começo, a história huterita é marcada pela ausência de personalidades espetaculares — isso se aplica tanto aos fundadores como a seus sucessores imediatos, Jacob Widemann, Hans Hut, Jacob Hutter, Peter Riedemann, e Andreas Ehrenpreis — a influência que cada um exerceu no passado não foi superada pela influência exercida pelos líderes contemporâneos. Seus escritos ainda são lidos na igreja e seus hinos ainda são cantados.

Na realidade, a comunidade huterita deve sua coesão a um carisma difuso do qual cada sócio é portador. A comunidade, como o Israel místico, ou a Igreja como a Noiva de Cristo, é a pessoa pentecostal. Os huteritas estão bem atentos a este fato, mas tal consciência parece marcar os limites da eterealização. Sabemos pouco da vida interior do devoto huterita, mas nesse interior aparentemente nunca ocorreu uma hipostatização mística da comunidade. Não há nenhuma visão do Shekinah como entre os Hassidim. O dia-a-dia do trabalho nos campos e na cozinha, nos berçários e depósitos, e o trabalho congregacional parecem estar carregados com a consciência de uma glória mística que é suficiente às necessidades práticas das mentes huteritas. É possível que haja uma vida contemplativa, especialmente entre as pessoas mais idosas, uma coisa que os pagãos nunca saberão bem como funciona; mas que podem ver do lado de fora, os huteritas se assemelham a uma sociedade dos Irmãos Lawrences.

Ao contrário de muitas, talvez da maioria das sociedades comunais, seculares ou religiosas, os huteritas são governados mais por costumes do que por leis escritas, e eles raramente consideram necessário fazer sérias mudanças constitucionais. A cabeça de cada colônia é um Diener am Wort, um Servo da Palavra. Quando um novo líder é escolhido, são convidados os cabeças de outras colônias para uma reunião e eles, juntamente com todos os membros masculinos da colônia, votam em um elemento de uma lista de candidatos submetidos pela comunidade. Após oração, entre aqueles que recebem mais de cinco votos, um deles é escolhido por sorteio. Após um período probatório de dois anos ou mais, ele é então ordenado por imposição de mãos de dois ou três outros líderes. Ele não come à mesa com a comunidade, e em muitos pequenos detalhes vive uma vida mais individual em sua própria casa.

A maioria dos líderes é comparativamente jovem quando escolhido — entre vinte e cinco e quarenta anos — e permanecem líderes durante toda a vida ou até se tornarem incapacitados por doença ou por velhice. Eles são os líderes espirituais da comunidade, e oficialmente os administradores gerais, embora se torne cada vez mais comum a eleição por maioria simples de um administrador prático para assuntos econômicos, conhecido como Haushälter, o Dono da Casa. Como mordomo da colônia ele vigia o trabalho, indica tarefas, cuida das finanças e da contabilidade, e assume a responsabilidade por vários trabalhos, até mesmo os mais servis. É importante não conceber o Haushälter como “chefe da colônia”. Ele está mais para coordenador. Abaixo dele está um capataz da fazenda, e se a colônia tem outras atividades importantes, é costume haver outros capatazes.

Há uma considerável alternância de tarefas. Um homem pode ser sapateiro durante um ano, apicultor no próximo, e fazendeiro no terceiro ano. Com o passar do tempo, a maioria das pessoas se acomoda em uma ocupação regular, mas freqüentemente troca, até mesmo no fim da vida. Existe uma hierarquia similar entre as mulheres — uma Haushälterin, que supervisiona a cozinha, o quarto de costura, o jardim, e o jardim da infância. Também há mulheres especializadas em obstetrícia, e a maioria das mulheres são competentes e práticas enfermeiras. Embora os documentos constitucionais doutrinais huteritas insistam com bastante ênfase na submissão das mulheres ao governo dos homens, os observadores são unânimes em seus relatórios de que as mulheres huteritas parecem estar extraordinariamente contentes, trabalhando juntas em um estado de alegria que tende à euforia. Naturalmente, devido à natureza do "trabalho feminino", se ele é efetuado cooperativamente por um grande número de mulheres, ele se torna decididamente mais fácil do que as tarefas de uma única dona de casa de fazenda.

As famílias huteritas moram em casas ou apartamentos separados de suas crianças, que são ampliados na medida em que a família cresce. No passado as crianças às vezes eram levadas a berçários cooperativos, mas esta prática foi derrubada — exceto os bebês e crianças muito jovens que são cuidadas cooperativamente quando as mães estão trabalhando. As relações familiares são até mais fortes do que aquelas da antiga família patriarcal alemã. Questionários submetidos a crianças que freqüentam escola pública longe da colônia não revelam praticamente nenhum sinal de alienação, choque de gerações, muito menos o "conflito edipal" típico da moderna juventude. A despeito das iscas do mundo moderno, com sua cultura de mercadoria, consumo conspícuo, e super estímulo ao entretenimento, quase todos os jovens huteritas parecem querer ser como seus pais e viver como seus ancestrais quinhentos anos antes deles. Os que partem quando se tornam adolescentes, normalmente fazem isso para se casar com cônjuge não huterita. Eles retornam à colônia nos feriados e finais de semana, freqüentemente ficam por perto, e muitas vezes o cônjuge se converte, é batizado, e o par se integra, para a alegria de todos.

Existe bem menos deserção no modo huterita de vida do que em seitas similares não comunistas como amish, menonitas, mormons, ou comunistas como Amana. Uma razão para isso, provavelmente, é que não há no credo huterita nada semelhante ao esforço de eterealização que é exigido de uma pessoa educada em escolas modernas. Bem poucos huteritas passam por uma faculdade, e quando isso ocorre é por orientação da direção da colônia no sentido de prover serviços profissionais para mais adiante assegurar a auto-suficiência da comunidade. Aqueles que fazem faculdade, quase sem exceção, retornam à colônia.

Além disso, o movimento dos huteritas do século XX imita o huterita original, o Brüderhof, fundado por intelectuais alemães e ingleses, que embora composto por pessoas largamente educadas em escolas de nível superior, nunca entraram em conflito em suas comunidades huteritas recém-nascidas em assuntos de fé e moral. As discordâncias giram basicamente em torno de assuntos como alfândega e costumes de duas classes radicalmente diferentes. Isso provavelmente se constituiu no ponto fraco dos shakers. Com o passar do tempo, ficou muito difícil as pessoas aceitarem as doutrinas shakers, especialmente no que dizia respeito ao celibato. Assim os shakers quase nunca puderam segurar os órfãos que eles recrutavam, e eventualmente foram incapazes de conquistar novos membros adultos.

Concretamente, após quase quinhentos anos de prática, a administração da comunidade huterita é notável pela sua elasticidade. A modesta hierarquia de sua administração sempre pode acudir em uma emergência. Sua flexibilidade a torna imune a um terremoto, e a administração geral do movimento inteiro é igualmente flexível. Tanto a colônia como os conselhos gerais, da mesma forma que os quakers, tentam evitar a ação sem a unanimidade; e como o modo huterita de vida é o produto final de quase toda prova concebível, esta unanimidade normalmente é facilmente alcançada. “Não governar homens, mas administrar coisas” conforme Marx disse.

Um detalhe interessante e possivelmente significante é que as colônias huteritas, como muitas aldeias de povos primitivos, praticam uma limitada exogamia. Os pares se escolhem de colônias próximas mais frequentemente do que de dentro de uma única colônia. Isto, naturalmente, cria uma teia de relações familiares bem coesas, radiando fora das determinações originais, e preserva uma gama hereditária mais extensa, uma "campo de gene" mais amplo. O campo de gene bem pequeno faz com que os do lado de fora sempre digam que “os huteritas são todos parecidos”. Em 1965, havia apenas quinze sobrenomes nos Haushälters em um conjunto de cento e cinqüenta e cinco colônias. Os huteritas podem se parecer uns com os outros, mas eles certamente não chegaram ao ponto daquilo que comumente se denomina “inato”. Coisas como doenças hereditárias e deficiências orgânicas são praticamente desconhecidas entre eles. Eles sofrem menos com tais problemas do que a população em geral.

 

EPÍLOGO
Comunalismo Pós-Apocalíptico

Seria possível prosseguir descrevendo indefinidamente as comunas americanas do século XIX, mas tal trabalho seria um pouco melhor do que um dicionário, há uma linha muito tênue diferenciando fazendas realmente cooperativas de agrupamentos ou colônias abortadas que duraram apenas alguns meses. Desde o século XIX até nossos dias existiram cultos religiosos comunais, o que há de mais bizarro nestas doutrinas é que são despoticamente estabelecidas por um líder detentor de revelações especiais. É um erro classificar tais grupos como comunas. Na verdade trata-se de uma extorsão, um jogo onde a confiança coletiva é em larga escala direcionada para proveito dos líderes. A história deles é uma assunto completamente diferente e merece outro livro.

Anteriormente fizemos uma rápida menção ao movimento mais significante da história primitiva do comunalismo, as missões jesuítas no Paraguai. Há incrivelmente muito pouca literatura nesse assunto em língua inglesa. O melhor livro ainda é A Vanished Arcadia de R.B. Cunninghame Graham, publicado em 1924. Quando os jesuítas entraram naquelas terras em 1607 o território ainda era "selvagem", quase completamente intato da influência portuguesa ou espanhola. Com o passar do tempo suas comunidades passaram a controlar uma boa parte da bacia oriental do Rio Paraguai. Na realidade, suas aldeias eram tribos reconstituídas e, na medida do possível, providas por uma tecnologia européia; tais aldeias eram governadas, ou pelo menos dirigidas, por um punhado de padres cujos instrumentos de governo parecem ter sido quase que exclusivamente os sacramentos da penitência e da comunhão. Os índios foram saqueados por escravos vindos de São Paulo e os jesuítas perderam seu poder eclesiástico. Eles sobreviveram até que foram expulsos da ordem em 1767, quando a maioria das aldeias indígenas foram destruídas. Seus campos foram tomados pela selva, os índios se espalharam, voltando ao seu modo selvagem de vida, ou foram escravizados, seus imensos rebanhos de gado vagaram selvagens pelos pampas.

Os jesuítas não estabeleceram suas aldeias deliberadamente enquanto comunas. Eles simplesmente adaptaram uma organização social indígena. As pequenas sociedades eram altamente estruturadas. O estatus derivava tanto do cargo no governo da comunidade como dos papéis avidamente disputados nos vários cerimoniais religiosos. A vida em tais sociedades deve ter sido semelhante a dos povos comunais do Sudoeste Americano — os zunis, por exemplo — mas em um ambiente mais abundante e permissivo com muito mais lazer, em grande parte exercido durante o cerimonial — católico, mas bem modificado por elementos aborígenes. Ao contrário da convicção popular, a bem sucedida atividade missionária no Paraguai foi acompanhada de perto pela Igreja, tanto que foram feitas tentativas de fundar comunidades similares ao longo da América Espanhola, notavelmente pelos jesuítas no Arizona. Se a ordem não tivesse sido extinta no momento em que entravam na Califórnia, a história dos índios da Califórnia teria sido bem diferente. As missões franciscanas estavam bem longe daquilo que se entende por comunas. Os índios valiam menos que os escravos, morriam mais facilmente no contato com os europeus. Depois que os americanos iniciaram a Corrida do Ouro, os índios passaram a ser caçados da mesma forma que coelhos, ursos, coiotes, e condores, até que desaparecessem completamente das regiões férteis do Estado. No Paraguai algumas aldeias fundadas pelos jesuítas sobrevivem até hoje. As relações econômicas e sociais eram ditadas pelo livre empreendimento, mas a memória das comunidades de trezentos anos atrás permanece viva. Em muitos aspectos, do ponto de vista teórico ou prático, as "reduções" jesuítas, conforme eram chamadas no Paraguai, representam uma das melhores organizações da sociedade de todos os tempos. Os índios foram certamente mais felizes do que seriam na República de Platão, ou na Utopia de São Thomas More. A vida era quase que um ritual ininterrupto, uma espécie de contemplação grupal temperada com alegria. A coisa mais extraordinária é que nada disso aconteceu em qualquer outro momento na história, certamente não desde a aldeia neolítica.

O pólo oposto das "reduções" jesuítas foi a colônia de Topolobampo, fundada em 1872 no Golfo da Califórnia. Resultado de um esquema produzido por um corretor profissional de terras, Albert K. Owen, que aparentemente acreditava que o modo mais lucrativo de valorizar a terra era o estabelecimento de uma colônia cooperativa e de uma companhia de estocagem. A planta inicial era certamente comunalista, mas em um curto espaço de tempo os colonos se dividiriam entre empreendedores privados e facções comunalistas. Separadamente, eles desenvolveram um imenso trabalho desbravando o país, cavando a mão um canal de irrigação ao longo de oito milhas, cem pés de largura e quinze pés de profundidade, e muitas milhas de diques. A colônia estava aberta a qualquer um que comprasse ações, na verdade para qualquer um que conseguisse chegar até lá. O plano de Owen de construir um grande porto e centro comercial deu em nada. O governo mexicano voltou atrás em suas promessas. Os colonos rapidamente declinaram de seiscentos para duzentos sócios, a maioria de empresas privadas. Alguns descendentes desses colonos sobrevivem na área até hoje, casados com famílias mexicanas. Topolobampo pode ter sido o único exemplo de comunismo enquanto forma de empreendimento de negócio capitalista. Considerando a escala em que Topolobampo foi planejado, e o número de pessoas envolvidas, tanto de colonos como de acionistas não residentes na corporação -- conhecida como Credit Foncier -- há uma extraordinária ausência de informações. A Southwestern Utopia de Thomas A. Robertson, que passou sua infância na colônia, foi publicado em 1947, e reeditado em 1963 por Ward Ritchie em Los Angeles. O livro é folclórico e anedótico, infelizmente a família de Robertson participaram como um grupo de empresários privados, de forma que há muito pouco sobre a comuna. O livro não possui nem bibliografia nem índice.

Um dos colonos de Topolobampo foi Burnette G. Haskell, que Robertson menciona em 1887, juntamente com sua esposa e família que, pelas anotações de Robertson, também morreu por lá. A verdade é que naqueles anos Haskell estava editando a revista anarquista Truth em San Francisco, ao mesmo tempo em que se ocupava com a fundação e condução da Kaweah Kooperative Kommonwealth situada ao pé das montanhas, que mais tarde viria se tornar o Sequoia National Park, na cidade de Three Rivers. Haskell parece ter sido uma pessoa instável, brilhante, e altamente emocional; aparentemente tanto ele como James Martin eram defensores do trabalho e da prática socialista, envolvidos desde o começo com o projeto. Haskell e um homem chamado Buchanan, que dirigiu a grande Kansas Railroad Strike, reivindicava pertencer a uma organização que julgava ser a legítima sucessora da Primeira Internacional depois que ela se dividiu entre os seguidores de Marx e Bakunin. Depois de um imenso e, realmente, incrível esforço, os colonos construíram uma estrada de Three Rivers até Giant Forest, onde batizaram a maior das sequóias com o nome de Karl Marx Tree, agora conhecida como General Sherman Tree. O governo federal, pelas pressões das vias férreas e madeireiras, invalidou o título da terra enquanto colônia, mas posteriormente voltou atrás. A área em sua totalidade mais a região circunvizinha foi declarada parque nacional. Haskell deve ter voltado para Topolobampo depois disso.

Outro famoso revolucionário ligado ao comunalismo americano foi Wilhelm Weitling, o teórico e líder operário que na década de 1840 exerceu muito mais influência do que Marx e Engels, que copiaram muita coisa dele em seus primeiros dias. Weitling desenvolveu um sistema rígido, secular mas com uma pesada ênfase milenária e apocalíptica. Seu comunismo envolvia uma real rejeição ao industrialismo e um retorno a um sistema de habilidade manual cooperativa de produção. O apocalipticismo do Manifesto Comunista de Marx e Engels reflete a influência e a competência de Weitling. Depois do fracasso dos movimentos revolucionários de 1848, Weitling migrou para a América, produziu um jornal e fundou uma associação de trabalhadores que provia assistência, ajuda financeira, e pensões para seus membros, que Marx chamou de “caixa do clube”. Em 1851 ele se interessou por Communia, uma das muitas pequenas colônias fundadas na maioria por emigrantes alemães oriundos dos Quarenta e Oito, na qual investiu uma boa parte do dinheiro de sua Arbeiterbund. As querelas e a preguiça fizeram o falência da colônia e a ruína de Weitling. Este fracasso parece tê-lo afetado bem mais do que o fracasso das revoluções de 1848. Ele se tornou excêntrico e desenvolveu um sistema universal de cosmogonia econômica, em seus últimos dias ele estava profundamente envolvido com suas excentricidades. Weitling é muito pouco considerado na história do pensamento revolucionário. Bastante independente de Hegel, e antes de Marx, ele desenvolveu a teoria da auto-alienação humana como o mal primário da produção capitalista, e alguns anos antes de Marx ou Proudhon ele era um comunista declarado. De certo modo, Marx e Engels se juntaram ao seu movimento comunista e o assumiram. Seu único monumento é um grande edifício onde se localizava Communia, que ainda funciona como centro social e espaço de dança.

Há uma tentação de ir descrevendo sem parar cada uma dessas colônias. Diferentemente de colônias como Oneida e shakers, a maioria das colônias religiosas foram extremamente bizarras, com seus fundadores e líderes não passando de óbvios religiosos charlatães de olho no dinheiro. Muitas pessoas parecem ter percebido que quanto mais ultrajante era seu evangelho, mais e mais crentes conseguiam atrair. A disposição para acreditar em coisas impossíveis porque elas são impossíveis não esteve confinada a Tertuliano, é um erro que se difundiu por toda raça humana. A maioria destes movimentos praticavam a posse de todas as coisas em comum, mas sempre excetuavam os líderes que conduziam suas vidas na vulgaridade, na luxúria e na ostentação. Tais grupos, portanto, provavelmente nunca deveriam ser chamados de comunas. A finalidade era sempre conquistar membros para que eles dessem tudo que possuíam para dali em diante trabalhar duro sem pagamento.

Quais conclusões podemos tirar dessa longa pesquisa da história do comunalismo? São quase as mesmas conclusões que foram tiradas por líderes inteligentes quando o comunalismo do século XIX atingiu seu ponto mais alto — com John Humphrey Noyes na Oneida e Frederick Evans nos shakers — e com raras exceções as colônias estavam abertas às críticas de Marx e Engels.

Concentrando-se primeiramente na crítica marxista, aquilo que eles chamam de socialismo utópico sempre representou um retorno a uma forma anterior, mais primitiva de produção e de relações sociais. Com poucas exceções, as colônias comunalistas foram revivificações das aldeias neolíticas com um maior ou menor grau de tecnologia moderna. Isto ainda é verdade hoje. O comunalismo sem sido abarcado pelo evangelho do "voltar à terra" e essas muitas experiências falharam porque os membros das colônias teimaram em fundar sua economia quase que exclusivamente na agricultura, embora não soubessem nada sobre cultivo, e muito menos de quão duro era aquele trabalho. Em alguns exemplos, chegaram ao ponto de se limitarem à mais primitiva tecnologia agrícola, embora isso seja mais verdade nas comunidades que proliferaram depois da Segunda Guerra Mundial.

As comunidades seculares quase sempre falharam em um tempo bastante curto. É surpreendente como a Nova Harmonia de Robert Owen pode ocupar tanto espaço na história do comunalismo. Ela não apenas durou pouco como também conseguiu fazer tudo da forma errada. A simples convicção de que todos os homens deveriam viver juntos como irmãos não é suficientemente bem definida a ponto de inspirar um forte compromisso. E onde a comunidade está aberta a qualquer um que deseje vir e se associar como membro, o desastre é certo. O compromisso é um ponto vital, mas tais colônias atraem de forma redundante indivíduos rejeitados pela sociedade dominante — preguiçosos, excêntricos, e aqueles que não conseguem se dar bem com ninguém nem em casa nem no trabalho, mas que, no entanto, se julgam qualificados para se dar bem em uma delicada, extensa e equilibrada família dentro de uma comuna. Uma política de portas abertas também admite sociopatas e criminosos que, na pior das hipóteses, tomam o poder ou endividam a comunidade e, na melhor das hipóteses, fogem com qualquer dinheiro e ativos móveis que podem por em suas mãos.

Quase toda comuna tenta ser auto-sustentada e alcançar tanto o comunismo de consumo como o de produção. Apenas os huteritas conseguiram ser agricultores financeiramente bem sucedidos, e em seus primeiros dias eles eram também e principalmente artesãos. Idealmente, uma comunidade deveria ter terra suficiente para se alimentar, e além disso ter alguma especialização fabril que possa se destacar localmente por causa de sua alta qualidade. Oneida e Amana no século XIX, e Brüderhof no século XX são bons exemplos.

As colônias de extensa duração não sobreviveram apenas por sua coesão, compromissos e sanções sobrenaturais, mas também por serem administradas por indivíduos de um poderoso carisma. Em alguns casos a liderança era dividida exatamente como no final da era neolítica, entre o líder religioso e o líder prático, o rei-pastor e o rei-guerreiro, o apóstolo e o gerente empresarial.

Um certo grau de tensão interpessoal parece consolidar a coesão de uma colônia. O celibato dos shakers, com seus cerimoniais tendendo para a orgia sem relações sexuais, e os matrimônios de grupo e técnicas especiais de relações sexuais e eugenias de Oneida, na realidade são duas formulações diferentes da mesma coisa, as duas faces da moeda da tensão erótica generalizada.

Deve ser enfatizado novamente que do ponto de vista teórico a vida comunal é muito vantajosa para as mulheres. A maior parte do trabalho da dona de casa ou da mãe pode ser dividido e distribuído. As crianças podem ser cuidadas em um berçário por uma ou duas mulheres. Cozinhar, costurar, lavar roupa, limpar a casa, e todas as tarefas consideradas "trabalho de mulher", podem ser distribuídas de forma que cada mulher tenha um considerável tempo de lazer. É por isso, naturalmente, que a poligamia Mormom foi mais popular entre as mulheres do que entre os homens. Milhares de mulheres caminharam de St. Louis até Salt Lake para participar.

Contudo, da mesma maneira que hoje em muitas comunidades hippies o único trabalho realizado parece ser feito por mulheres, assim foi na história de muitas das comunas seculares do século XIX. As mulheres se rebelaram, porque todo trabalho era lançado sobre elas, enquanto os homens sentavam ao redor, bebiam uísque, mascavam tabaco, discutiam comunismo, igualdade dos sexos, e liberdade das mulheres.

O comunismo em si, não parece ter sido um fator no fracasso da maioria das colônias. Muitas, talvez a maioria delas fracassaram por razões econômicas. Geralmente, eles compravam muita terra de sociedades de crédito imobiliário e não conseguiam utiliza-la de uma forma efetiva. Muitos adquiriram uma considerável quantia em dinheiro de membros não residentes. Até mesmo a Kaweah Kooperative Kommonwealth recebeu dinheiro de membros não residentes, tanto dos Estados Unidos como da Europa. A colônia secular Icária, que durou muito tempo, recebeu fundos bastante consideráveis da França até seu cisma final. Eles erraram especialmente em empreender o cultivo de uma quantidade muito extensa de terra, mas é difícil compreender porque durante toda a existência do movimento icariano foi marcada por um trabalho desesperadamente duro e uma pobreza involuntária.

Onde quer que haja forças poderosas em torno do compromisso e da coesão, uma sociedade cuidadosamente escolhida, e líderes inteligentes com larga experiência prática, o comunismo prova ser, economicamente, extremamente bem sucedido. Nesse aspecto o modelo é a colônia huterita. Seu principal problema hoje é a inveja inspirada pelo seu sucesso uniforme e por sua prosperidade.

É difícil relacionar os milhares de grupos que deram a si mesmos o nome de comunas e que se esparramaram pelo mundo inteiro — menos nos países comunistas — desde a Segunda Guerra Mundial. Muitos desses grupos nunca foram comunas, mas pensões cooperativas em cidades universitárias do tipo que sempre existiu. Estes grupos atraem mais atenção dos jornalistas porque são mais acessíveis. O simples fato de seus membros fumarem maconha e dormirem uns com os outros indiscriminadamente não os torna fundamentalmente diferentes das fraternidades gregas. Algumas comunas rurais portas abertas são na realidade uma “esquadrilha da fumaça”. Trezentos alegres caroneiros adolescentes ocupando trezentos acres onde seus membros mais permanentes não se preocupam em cultivar o solo não se constitui numa comuna. Aqui novamente, o jornalismo sensacionalista tem um prato cheio. É verdade que muitos, talvez a maioria, dos grupos contemporâneos chamem a si mesmos de comunas, onde o sexo e a droga toma o lugar do chialismo e do carisma. Mesmo assim, um grande número conseguiu se organizar enquanto uma genuína comuna — de consumo, e algumas poucas, de produção.

O moderno movimento comunalista está ligado a uma versão secular do velho milenarismo. Ele começa com o lançamento da bomba atômica. O fogo e o julgamento deixaram de ser uma questão de fé e não se tornaram fatos muito distantes. Um "remanescente salvo" começou a se retirar dos centros densamente povoados, e em muitos casos do hemisfério norte. Nos primeiros anos da Guerra Fria o apocalipse não parecia estar muito distante e pelo menos por duas vezes, uma vez com Dien Bien Phu e depois durante a crise dos mísseis cubanos, o apocalipse parecia eminente. As pessoas já não falam muito sobre a bomba. Passou para segundo plano. Contudo, várias pesquisas de opinião mostraram que uma maioria de estudantes universitários não esperam estar vivos no século XXI. Logo após Nagasaki e Hiroshima, Alex Confort disse que se os americanos não tivessem inventado a bomba atômica, o Estado capitalista moderno a teria segregado como uma espécie de produto natural. Como se não bastasse, a guerra moderna também produziu um imenso número de pessoas totalmente alienadas, que acreditam que a civilização ocidental chegou ao fim em agosto de 1914.

É esta a alienação penetrante e absoluta que ocorre em matéria de religião ou ideologia entre os comunardos contemporâneos; e o movimento comunalista moderno é um ataque direto na auto-alienação humana, descartando as manobras indiretas do socialismo ou do comunismo. “Afinal das contas”, como alguém uma vez disse em uma reunião do Partido Comunista Italiano, “implantamos o socialismo na sexta parte da terra durante cinqüenta anos e sobre uma área adicional com o dobro de pessoas por vinte e cinco anos, e a auto-alienação humana em vez de declinar, só tem crescido. O que estamos fazendo?”.

Marx pensava que o processo industrial daria consciência de classe à classe trabalhadora, que é o significado do marxismo. Isto não é particularmente notável em Detroit ou Gary. Mas o desarranjo da civilização ocidental proporcionou a um imenso número de pessoas, nem todas jovens, uma resposta quase instintiva -- tanto à classe dominante, enquanto inimiga, como aos seus semelhantes, enquanto camaradas -- que grandemente se assemelha ao anarquismo comunista de Bakunin e Berkman, dos quais poucos deles ouviram falar. É notável como isto é persuasivo. Grupos altamente autoritários como os muçulmanos negros, os Panteras Negras, os Testemunhas de Jeová, os Brüderhof, e Jesus People podem desafiar o mundo lá fora e apresentar para ele uma grande estrutura exterior, mas dentro de cada movimento uma ética comunal se desenvolveu. Isto é verdade mesmo para organizações neo-bolsheviques como os trotskistas ou maoistas, que já não podem forçar as velhas e rígidas formas de organização leninista, e constantemente adotam relações interpessoais tão anarco-comunistas quanto Kropotkin pudesse ter desejado, e cujas relações com a classe dominante se assemelha àqueles grupos anarco-terroristas na França ao término do século XIX. Grupos como estes nascem totalmente sem ideologia — exceto aqueles completamente alienados. A secessão moderna é uma torrente contínua que se estende desde a Família Manson, a Simbiose do Exército de Libertação até as comunas religiosas anarco-pacifistas cujos membros gastam pelo menos duas horas por dia em meditação.

Um dos fatores que contribuem para a coesão é o culto. Diante do monasticismo medieval, com seu contínuo círculo de Missa, Divino Ofício — cântico de salmos, hinos, coros e orações ao longo do dia e da noite — e os contínuos e variados ritos durante o ano, envolvendo o monge ou a freira, ambos identificados com a comunidade, era difícil até mesmo pensar em acabar com tudo isso. Na América do século XIX os shakers tiveram indubitavelmente o culto mais desenvolvido. Mas até mesmo as comunidades seculares bem sucedidas desenvolveram uma vida cerimonial, embora sem dúvida seus sócios não pensem nelas como tal.

Outro fator que muitas vezes fez parte das cerimônias da comunidade foi a confissão, uma poderosa força de ligação entre os shakers e que sobrevive ainda hoje em muitos grupos comunais, o mais famoso nesse aspecto é o Synanon, onde a crítica mais severa dos sócios e a confissão mais miserável foi elevada a um princípio administrativo na comunidade. Qualquer técnica que sistematicamente ataque o menor sinal de egocentrismo obviamente aumenta a coesão do grupo, exceto, naturalmente, pelo fato de que pode levar o indivíduo ao ponto do rompimento, quando ele sai do grupo.

Apenas as comunidades religiosas, não todas elas, puderam segurar suas crianças. Aparentemente isso nunca foi problema para os huteritas, que agora pode arriscar enviando jovens selecionados com segurança para as universidades. Uma das funções mais importantes dos shakers era o seu cuidado com os órfãos e crianças abandonadas em um tempo em que os orfanatos eram poucos e ruins. As crianças foram criadas na vida shaker, mas nenhuma delas permaneceu na comunidade. Por outro lado, muitas comunidades seculares sobreviveram principalmente como "escolas progressivas". Com todos seus desastres e loucuras, esta foi a principal contribuição da Nova Harmonia de Owen; e da colônia anarquista de Stelton, New Jersey, que logo tornou-se uma cooperativa suburbana de "desenvolvimento", foi a escola que manteve a comunidade viva até que foi subjugada pelo crescimento do subúrbio (hoje em dia é quase que inteiramente um distrito Negro). Algumas comunidades do século XX foram principalmente escolas, o melhor exemplo é o Commonwealth College em Mena, Arkansas. Não tenho certeza se posso chamar o Black Mountain College de comuna. O Antioch College, porém, é a última descendente de vários grupos comunais convergentes, alguns deles advindos de Nova Harmonia.

Em todos dos muitos livros escritos sobre o movimento comunalista na América no século XIX, há pequena discordância sobre os fatores que trazem sucesso. Eles são:

Uma religião, ou pelo menos uma ideologia poderosa que todos os sócios do grupo aceitem, que poderia incluir a crença de que a sociedade dominante falha em prover valores suficientes para uma vida feliz, que a sociedade dominante está doente, ou morrendo, ou, já morta, e que a comuna é um remanescente salvo que escapou da fogueira.

Um líder com um poderoso carisma e, até mesmo mais importante, a habilidade de persuadir as pessoas ao que acredita, e também dotado de uma equanimidade considerável. Noyes, por exemplo, parece ter sido um importante apaziguador de todas as contendas que se desenvolveram em Oneida. Tal personalidade pode ser extremamente autoritária e coerciva. Aproximadamente cinqüenta por cento das pessoas atraídas pela vida comunal parece ser caracterizada por um extremo masoquismo social, e que não se importa muito quando encontra comunidades governadas por pequenos tiranos. A outra metade é fortemente individualista e requer a liderança de um apaziguador altamente qualificado, capaz de persuadi-los de que as idéias vieram deles. Todo carisma do mundo não pode compensar uma gama extensiva de talentos. Noyes, novamente, foi um homem verdadeiramente universal, que aparentemente poderia fazer bem qualquer coisa; e a liderança huterita que geralmente destrinchava a maioria das tarefas de sua vida comunal. Se um líder tiver apenas carisma, ele tem que ter um gerente empresarial, e esta liderança dual não é incomum.

Deve ter um método aceito para indicar e alternar tarefas, com ambos os sexos compartilhando os trabalhos enfadonhos do trabalho doméstico. A roupa suja foi tradicionalmente o foco de descontentamento entre as mulheres. E, naturalmente, os membros devem ser responsáveis -- as tarefas devem ser feitas. Muitas comunidades contemporâneas, urbanas e rurais, são caracterizadas pela desordem, sujeira, e trabalhos inacabados.

Cultivar é um trabalho muito duro. É trabalho duro até mesmo para fazendeiros experientes. Não foi apenas a concentração de capital que criou a agroindústria americana. Por mais de uma geração foi impossível sustentar filhos pequenos em uma pequena fazenda de duzentos acres. Em toda parte do mundo os camponeses tropicais ou semitropicais abandonaram suas pequenas fazendas e se mudaram para as favelas das cidades, onde a maior parte deles padece fome e esqualidez. Cultivar hoje na América em uma pequena marginal ou em uma fazenda geral estropiada é uma tarefa quase impossível, é claro que uma área medida em acres não pode agüentar um investimento de capital em maquinaria. Uma caminhonete, um par de cabras leiteiras e algumas galinhas podem prover uma quantidade considerável de comida para uma comuna de tamanho médio, e proporcionar um tempo livre para desenvolver uma fábrica especializada em artigos de muita procura. Esta é a única solução para uma comuna de cidade grande, embora algumas delas aluguem uma chácara nos arredores da cidade. “Voltar à terra” e “contato com a Mãe Terra” fazem parte da mística das comunas rurais mais contemporâneas, cujos membros acham mais desejável trabalhar duro e ineficientemente por um pequeno retorno do que estabelecer uma base econômica fabril ou industrial.

Além disso, há um certo irrealismo naquela velha mansão ou naquele apartamento com doze quartos em Riverside Drive ocupada por advogados, professores, psiquiatras, assistentes sociais que compartilham despesas, fazem concertos de música, e chamam a si mesmos de comuna. Na medida em que uma comunidade se torna potencial ou completamente auto-sustentada, mais se aproxima de seu ideal de remanescente salvo, o núcleo de uma sociedade que sobreviverá quando a sociedade dominante perecer. Há algumas comunidades urbanas que funcionam com um comunismo de produção e também de consumo. Eles parecem ser principalmente religiosos e sob uma liderança extremamente autoritária. Claro que, no apocalipse, as comunidades urbanas perecerão juntamente com as cidades, que são o melhor argumento final pelo estabelecimento de comunidades em partes remotas do país. O único problema é que os belicistas do Estado tem a mesma idéia. As comunas do Novo México estão bem no meio dos centros originais de artefatos de guerra atômicos, e até mesmo as colônias huteritas em Dakota do Norte estão dentro de uma gama de silos para mísseis balísticos intercontinentais. Sunburst Farms é próximo a Santa Barbara, uma das comunidades agrícolas mais bem sucedidas, e está dentro da área dos testes de explosão da Base Aérea de Vandenburg, e a área de San Francisco Bay é pontilhada de instalações voltadas para a guerra atômica e comunas, em uma espécie de compartilhamento.

Um completo “a lei é fazer o que quiser” e total anarquismo individual simplesmente não funciona. Uma boa parte das comunas contemporâneas operam nessa base, mas elas parecem ter uma média de cem por cento de rotação a cada ano. A comuna persiste, essencialmente, apenas como um endereço. A maioria dos grupos desse tipo vem compartilhar drogas e sexo, eles estão unidos, do jeito deles, pela inimizade da sociedade dominante. Todos os métodos contemporâneos que trazem coesão ao grupo existem em uma ou outra comunidade. Sexo em grupo, grupos de encontro, grupos de confissão e crítica — muitas comunidades praticam tudo isso ao mesmo tempo, e cada grupo tem seus antecedentes, não apenas no século XIX, mas também na Reforma Radical.

Finalmente, uma comunidade pode perdurar enquanto uma imensa "esquadrilha da fumaça" com uma plena política de portas abertas, mas não pode perdurar como uma comunidade. Seletividade é a primeira lei do comunalismo. Até mesmo o ambiente mais anárquico, onde ninguém acredita em leis, precisa acreditar pelo menos no anarquismo. As mais bem sucedidas comunas de nossos dias não permitem nem mesmo visitas, ou não lhes permitem ficar mais do que uma noite, e os membros prospectivos estão sujeitos a um minucioso noviciado. Nos primeiros dias do movimento pós Segunda Grande Guerra, quando todo carona era recebido com boas-vindas e com os braços abertos, as comunas não apenas ficaram cheias de vadios e sociopatas, como também enfrentaram sérios problemas com cães abandonados e crianças abandonadas, que eram deixados para trás por comunardos vagabundos. A Ordem de São Benedito tem todo um capítulo dedicado à ameaça de tais pessoas no começo do monasticismo Ocidental. Cães abandonados e crianças abandonadas são problemas sociais, mas há um problema estético e até mesmo um problema ecológico. As cercanias da maioria das comunas hippies rurais estão abarrotadas de carcaças de carros abandonados, que fazem o papel de um grande parque de diversões, ocupado por crianças nuas, constituindo ultimamente um expensivo problema.

 

Fim do livro Comunalismo de Kenneth Rexroth.

Copyright 1974. Versão inglesa reproduzida com permissão de Kenneth Rexroth Trust.

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Em tradução livre por Railton Sousa Guedes - Coletivo Periferia
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