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ELIANA BARROSO

TRECHO DO MANUSCRITO « O (DE)LIRIO DO MISTICO »

« Ela estava refletindo sobre o que poderia fazer por si mesma, quando a dona da pensão veio anunciar-lhe a visita de uma certa Arlette.

- Arlette ? Mas o que ela vem fazer aqui ?

- Não sei ! respondeu a senhora gorda, levantando os ombros. Ela não parecia mesmo interessada em conhecer os que batiam à sua porta procurando por hóspedes. Dizia para o marido que não queria, em nenhum momento, problemas com a polícia ou a família de desaparecidos.

Maria vestiu-se às pressas, e já nas escadas do hall encontrou a visitante, quase tão jovem como ela, vestida simplesmente de azul celeste e preto. Após a troca de sorrisos e beijinhos, foram sentar-se num sofá da sala de espera, onde um cinzeiro cheio de pontas de cigarro sobre a mesinha deixava no ar o mau cheiro. Arlette começou a falar, sem formalidades :

- Finalmente encontramos você, Maria. O que houve, por que anda afastada ? Está doente ? indagou curiosa.

- Não se preocupe, irmã. Não há motivos, tudo vai bem até agora...

- Você sabe, eu também já morei num lugar assim, fétido e mal visto. Graças à nossa coletividade, vivo agora plenamente na minha casa o meu caminho ao encontro de Jesus, a minha salvação eterna. Nós devemos todo esse bem, toda essa felicidade, ao nosso pastor e nosso pai nessa Terra. Bernard, você sabe. Foi ele quem nos deu essa chance, assim como foi nossa irmã e nossa amiga Lucienne quem lhe deu a mão e levou você até nós. Não é um motivo para gratidão, da sua parte ?

Continuando a falar, Arlette pegou as mãos de Maria nas suas, numa expressão de amizade quase teatral, enquanto sua voz se elevava a um tom de súplica :

- Diga-me o que está acontecendo, por Cristo !

- É que eu tenho uma porção de dúvidas a respeito da minha fé, e ...

- Mas nós todos temos dúvidas, minha cara - interrompeu a outra com sorriso angelical. « Eu também tenho momentos de extrema dificuldade para aceitar tudo, mas a misericórdia divina me salva nos piores momentos. Por isso me sinto bem todos os dias... » assegurou com sorriso fingido, acentuando com exagero as últimas palavras.

- Isto quer dizer que você não tem nenhum problema na vida ? quis saber Maria, com ar ingênuo.

- Não. Entrego tudo nas mãos de Deus. Não é simples ?

Que estranha gente, pensou Maria, para eles esse mundo já é o paraíso !?... E como se quisesse demonstrar que não acreditava naquele excesso de prosélitos, continuou :

- Sim, mas isso minha avó também já dizia. Onde está a novidade ? Ela falava que se devia aceitar tudo nessa vida, se quiséssemos ter direito a outra. Que o Senhor nos consolaria e não nos abandonaria nunca ! Rezava o dia inteiro de mãos postas, dando graças a Deus. Mas eu desde criança percebi em seu olhar a decepção, o desgosto que ela não sabia ocultar, quando as coisas iam mal para o seu lado. Nunca me falou nada, queria sempre dar a impressão de ser uma pessoa forte e entregava-se ao martírio de sua rotina passivamente... Ela trabalhou muito toda sua vida, vejo-a carregando lentamente um carrinho de mão com tijolos, fazendo o trabalho do meu avô, que se entregara à bebida. Sua única distração era a missa aos domingos. Na sua fé piedosa ela depositava toda a esperança de conhecer dias melhores. E não conheceu, coitada. Eu também, irmã, sei que não terei aqui essa chance...

Arlette cruzou as pernas e suspirou, desanimada. Ali estava alguém 'nas trevas', supôs, depois de olhar Maria por alguns instantes, com o interesse dos prosélitos . »


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