Baú, essa Paixão

Na Pedra do Baú temos muitas histórias. Aqui vão algumas:
Resgate na Chuva
Outubro de 95. Eu escalava há um mês e era a terceira vez que ia para o Baú. Como ainda não
estava contaminado pelo vírus da escalada, passei a manhã de sábado em um pesqueiro de trutas
que fica a +- 5Km da Pedra, em São Bento do Sapucaí. Logo após o almoço, retornei com o ingrediente
do nosso jantar, pensando em escalar durante a tarde. Uma chuva começou a agourar meus planos. Chegando ao abrigo,
aguardei o pessoal chegar, e fiquei sabendo que dois dos companheiros haviam sofrido quedas, na Ensaio de Orquestra.
A Ensaio é uma via que requer muito braço. O Hélcio caiu três vezes(escalava há dois meses), e o
Taka, após trocarem as posições, escorregou quando tentava corrigir a costura no penúltimo grampo.
Como iniciou a chover, resolveram deixar as costuras na rocha para resgatá-las no dia seguinte.
Choveu a noite toda, e a manhã seguinte indicava que continuaria assim o dia todo. Após o café da manhã,
resolvemos que o Hiroji, o Fábio e eu iríamos buscar os equipos. Capa de chuva, OK. cadeirinhas e cordas, OK.
Já estávamos saindo quando:
_ Esperem, eu também vou.
Era o Chico, ainda mastigando um pedaço de pão, de bermuda e camiseta, insistindo para nos acompanhar. Olhamos para
os trajes dele:
_ Você não está com frio ?
_ Não, e só tenho esta roupa.
_ Então não vai.
Mas, teimoso como ele só, e sendo um dos mais experientes, acabou nos convencendo que poderia seguir conosco.
Seguimos pela trilha que leva à escadinha do lado de Campos, e quando a avistei, deu vontade de sugerir subir pela
pedra mesmo. Aquilo sugere uma falsa segurança para um escalador. Afinal, nós sempre estamos encordados, e
na escadinha qualquer queda pode levar várias pessoas para baixo.
No meio da subida, o Hiroji começa a sentir problemas com a asma. Paramos várias vezes para que retomasse o
fôlego, e chegamos sossegados ao topo da pedra. Descemos uma trilha até o final da ensaio, armamos uma ancoragem em
torno de algumas árvores, e eu me ofereci para descer. Era o mais leve, menos cansado e ainda não havia sentido
a rocha. O Chico argumentou que o resgate iria requerer mais experiência, e ele desceria. E assim o fez. Tirou a capa,
que atrapalharia o rapel, e foi.
A primeira costura foi fácil. Sendo uma via em negativo, as outras vão se tornando mais difíceis de serem
retiradas, pois tem-se que balançar a corda para chegar até elas. O Fábio tirou o relógio do
pulso e o colocou em um galho. O termômetro acusou 1,8 graus (isso mesmo, menos de dois graus !). Quarenta minutos
depois, a chuva continuava e o vento soprava com mais força. A comunicação com o Chico já estava
bem difícil, e ele acabara de conseguir alcançar a segunda costura. Mais vinte minutos, e diante do silêncio
do Chico, o Hiroji grita:
_ Chicoooo, conseguiu ?
_ Não.
_ Como você está ?
_ Maaal...
Havia um filete de água bem sobre ele, e o frio estava intenso, de modo que não conseguia sequer abrir a trava do
mosquetão. Concluímos que ele precisava ser resgatado. Desceu mais um pouco, até um platô,
e o Hiroji desceu com o anorak do Fábio. No caminho pegou a costura que deu tanto trabalho. Quando alcançou
o Chico, desfizemos a ancoragem e soltamos uma corda para eles, ficando com outra corda para nós rapelarmos pela
via conhecida como Cresta. Daí para diante foi tranquilo. Pegamos a trilha com o Chico tremendo feito geléia,
e chegamos ao abrigo às quatro horas. Havíamos levado seis horas para esse resgate.
Uma boa sopa com frango e arroz nos reanimou, enquanto tirávamos nossas conclusões: Por mais experiente que
fosse (ou melhor, por ser mais experiente), o Chico não deveria ter saído sem vestimenta adequada. Praticamos um
esporte que exige respeito pelas coisas da natureza, seja frio ou calor. Os procedimentos de segurança foram observados,
mas havíamos deixado de pensar pelo conjunto. De ver se todos estavam de fato aptos para sair nessa missão.
Hoje levamos muito equipamento para eventualidades, as ditas "Dez Essenciais e um pouco mais". Alguns ítens ficam
permanentemente em minha mochila (caso do blanket, que já usei no Dedo de Deus, assim
como no Pão de Açúcar). E sempre avaliamos as condições de todos
(é mais fácil ver problemas nos outros, na maioria das vezes).
Vamos nos divertir, mas com segurança. E ela começa no momento que nos preparamos para sair e encarar a montanha.
Escalada Noturna ?
Foi em Dezembro de 95. Já estávamos acostumados a chegar quase pela manhã no abrigo, descansar
duas ou três horas e sair para a Pedra. Dessa vez, ao chegar ao abrigo, descarregamos nossas coisas e:
_ Fábio, vamos mesmo ?
_ Já fomos. É só botar as mochilas nas costas.
_ Duda, se prepara !
_ Pra quê ?
_ Aquela escalada noturna que falamos.
Saímos os três do abrigo às cinco horas, com o objetivo de fazer a Cresta, uma via clássica,
fácil e a mais rápida para bivacar no topo da Pedra. Chegamos ao topo do Bauzinho, com a manhã
já se insinuando. Havíamos nos atrasado para sair de Sampa. Encadeirar, reconferir os equipos e iniciar
o rapel na Normal do Bauzinho, para chegar ao Baú (desculpem-me os que não conhecem o Baú,
um dia ainda coloco o descritivo dele - ou dela? - numa Home Page).
Precisamos dos Headlamps somente até chegar ao início da via. A Pedra estava seca, e a luminosidade
era suficiente para escalar sem problemas. Cada um de nós; guiou um lance, mas por algum motivo gastamos
mais tempo que de costume.
Pegamos a trilha para o cume, e lá esticamos os isolantes térmicos. Foi então que descobrimos o
quanto os fabricantes de isolantes e sacos de dormir se entendem. Estando num ponto um pouco mais inclinado que
aqueles onde costumamos acampar, nenhum saco parou sobre os isolantes. Nos ajeitamos como pudemos (o Duda
"escorregou" uns dez metros, até se encaixar numa depressão da pedra), e aí começou
outro problema. O sol esquentava os sacos (não havia nuvens), e depois de tanto trabalho para conseguir
que parassem de escorregar, tivemos que dormir fora deles, visto que até SOB os mesmos estava um calor
insuportável. Meia hora depois, aparece um pessoal de São Bento:
_ Ih, olha aí, tem gente dormindo por aqui.
Era um pessoal que veio fazer levantamento das condições dos ferros no topo para planejar uma reforma
na grade de proteção (é só psicológico, por mim). Hoje, pode-se ver a grade, toda
pintada em amarelo, estando no Bauzinho.
E não deu para dormir mais. Dez minutos depois o nosso pessoal despontou no Bauzinho, e então descemos
para encontrá-los e comer algo. Aqui passamos o melhor do dia. Fizemos um rapel desde o topo até o
final da via Normal. São cerca de trinta metros, mas ao olhar para baixo, temos quase duzentos até o chão.
Enfim, da escalada noturna ganhamos algumas picadas de insetos, umas áreas vermelhas queimadas pelos sol
(verão, pô), e aquela sensação gostosa de ter feito algo fora do convencional. Afinal, qual o
montanhista que não gosta de fazer algo diferente ?
Corneto

_ Massa, vamos escalar a Corneto ?
Pedro, 15 anos, feliz da vida, veio com a proposta depois do jantar.
_ E quem guia ?
_ O Reinaldo disse que pode guiar.
Reinaldo e Armando, duas figuras carimbadas no Baú, estão quase toda semana no local. Sempre nos
cruzávamos por lá, mas era a primeira vez que teria a oportunidade de escalar com eles. Aceitei na hora.
A Corneto é uma via que fica logo abaixo da Normal do Bauzinho, com o início próximo à
trilha que liga o Baú ao Bauzinho. Sendo uma via com a segunda enfiada totalmente exposta, feita em um diedro,
adrena muito, dando a impressão de ser mais difícil do que realmente é.
Na manhã seguinte, partimos para a Pedra em diversos grupos, o Reinaldo nos mostraria a Corneto e o Armando
a Tudo Bem. Quando cheguei à via, o Reinaldo já estava se preparando para subir. Eu estava em segundo, e o
Pedro subiria descosturando. A primeira enfiada se dá usando os grampos existentes na Pedra, e na primeira
parada pude observar como um equipamento móvel é bom. O Reinaldo equalizou o sistema entre um Friend
e o grampo (bem castigado, por sinal) existente, e foi a única vez que se valeu de um grampo já instalado na
pedra. Acima desse ponto, quase todas as seguranças são em pitons, e um friend bem colocado realmente inspira
mais confiança. Como combinado, os dois puxões na corda indicavam que o sistema já estava montado e
eu poderia subir. O vento batendo nas costas lembrava que estava a 150m da base, e deveria confiar em meus braços
e no equipamento, caso falhasse. Felizmente, as agarras são boas. Com um pouco de condicionamento nos braços,
esta via pode ser feita sem problemas. Provavelmente pela corda indicar o caminho, não tive dificuldades em concluir a via,
e o Pedro também se saiu muito bem. O garoto tem futuro. O final da via fica a dois metros abaixo do início
da Normal do Bauzinho, onde já se encontram até árvores. Rapelamos para o lado da Meia Lua, onde
outra parte do pessoal estava. Pude ver o Armando desaparecer no topo da Pedra, terminando a Tudo Bem, e a Kyoko
iniciando a última enfiada. O Armando ainda levou o Duda para a Corneto, e o Reinaldo fez a Tudo Bem levando a
Cristina e a Jane. Saímos da rocha pouco depois das duas, e os dois ainda iriam escalar outro tanto. Haja fôlego.
O bom de poder escalar com pessoas assim, além da boa companhia, é que sempre acabamos aprendendo
um pouco mais, seja observando ou mesmo pelos toques que eles vão nos dando durante a ascensão.
Embora as vias do Baú estejam sendo regrampeadas, acredito que lá se torna indispensável material
móvel, caso se queira fazer algo mais que as vias tradicionais. O número de vias existentes, e a facilidade de
acesso a elas nos convidam a escalar, escalar e escalar. Prepare seu equipo móvel e encare essa pedra. Garanto
que no retorno você dará como bem usado cada centavo pago por ele.
© Massa - Dez/96