E. F. MADEIRA MAMORÉ
Fazendo amizade com os Indios
I - Os Caripunas
Por ser uma das últimas regiões a serem exploradas no Brasil, ainda existiam muitas tribos de índios na região atingida pela construção da ferrovia, principalmente junto às cachoeiras do Rio Madeira, sendo algumas até consideradas canibais pelos viajantes, entre as quais as dos Pacaás-Nova, tribo que empresta seu nome a uma serra localizada na região, sendo porém mais conhecida a dos Caripunas, citada também como Cajaripunas nos primeiros relatos sobre a região.
Ao longo dos anos de exploração e construção da ferrovia, vários contatos mais ou menos "felizes" foram feitos com diversas tribos locais, sendo que um dos relatos, feito em 1887 pelo engº Pinkas, que esteve no Rio Madeira entre 1883 e 1884 para fazer o projeto da estrada de ferro, é assim transcrito por Manoel Rodrigues Ferreira, em seu livro "A Ferrovia do Diabo":
"É uma tribo pacífica que gosta de ser brindada pelos viajantes a cujo encontro eles vêm, voluntariamente. Obedecem a um capitão (cacique), vivem em pequenos grupos entregues à caça e à pesca, plantam em vários pontos dos seus domínios, que anualmente percorrem, bananas e mandioca, sabem fazer uma farinha grosseira e conservar carne e peixe e produzem da farinha uma bebida fermentada (chicha) com que se embriagam em suas festas. Gostam do sal e pedem camisas e calças que só aceitam quando novas e nunca mais despem até cair aos pedaços. Os Caripunas, na maioria, andam completamente nus. Furam o septo do nariz, que recebe um duplo buquê de penas encarnadas e ornam as orelhas com dentes de capivara ou de jacaré, grudando-os com cêra. Vistos de longe parecem ter bigode vermelho.
No pescoço, trazem colares de dentes de macaco ou coati, nos pulsos e pernas enrolam em forma de pulseiras um barbante engenhosamente coberto por talas de penas. Nos seus festejos ornam-se com uma coroa de penas de tucano e mais enfeites de penas pretas, amarelas e vermelhas no corpo. As mulheres usam dos mesmos enfeites, andam completamente nuas até a idade da puberdade, quando recebem a tanga, pedaço de pano de 15 centímetros em quadrado ornado de penas e suspenso livremente sôbre um cinturão de feitio igual às pulseiras. Homens e mulheres não têm vestígios de cabelos no corpo. Os cabelos pretos lhes caem incultos sôbre os ombros e o peito, apenas aparados na fronte com a faca de conchas. Sabem fiar e fabricam rêdes de fibras vegetais. Seus arcos são direitos, têm dois metros de comprimento e são fabricados do pau da paxiúba. As flechas são maiores ainda. A haste que cortam da cana brava é enfeitada por penas de asas de mutum amarradas em espiral na parte inferior e unida à ponta de uma taboca mais grossa por um fio de algodão coberto com cêra. Essa arma, lhes serve na pesca, na caça, e na guerra. Usam também da zarabatana e conhecem os estricnos (venenos). Falam a língua geral (tupi), fortemente viciada pelo idioma dos seus vizinhos do Madre de Dios e Beni, e alguns entre êles conhecem a significação de algumas palavras espanholas.
Perguntam aos viajantes que encontram seus nomes e aplicam-nos em si ou seus filhos. Sofrem muito de constipações (gripes), de varíola e de febres intermitentes (malária). Parece ser costume entre esses índios abandonarem seus doentes ao acaso, sob pretexto de se acharem debaixo da dominação de algum espírito mau, que se apodera também daqueles que dos doentes se aproximam. Numa das minhas viagens às cachoeiras encontrei na margem esquerda do rio uma índia que ao nos aproximarmos mostrou ter uma ferida enorme no joelho da perna direita e achava-se incapaz de andar. Essa índia foi abandonada por seus companheiros os Pacaguaras, que se contentaram em armar junto dela uma rêde e deixar-lhe uma cestinha com bananas. Ainda em outros lugares, a comissão que dirigi teve encontros amistosos com índios e a segunda turma sentiu-se acompanhada e espiada por eles durante todo o tempo que esteve no mato. Entretanto, nunca se mostraram, nem molestaram os homens dessa turma, apesar de irem isolados buscar água."
II - Os contrutores da Madeira-Mamoré fazem amizade com os índios
Os Caripunas localizavam-se na região do Rio Mutum-Paraná, onde êste desemboca no Madeira, à altura da Cachoeira dos Três Irmãos. Com a retomada efetiva do iníco da construção da ferrovia, segundo alguns relatos, suas investidas contra as obras da ferrovia também foram retomados. Durante a noite, os índios vinham e retiravam trilhos e dormentes, causando atrasos nas obras, o que levou a ferrovia a eletrificar os trilhos durante a noite, causando dezenas de mortes entre os índios e animais selvagens da região. Devido a essas investidas, seus trabalhadores, também conhecedores das lendas e histórias sobre esses "selvagens", agiam com cuidados redobrados no serviço. Tanto as turmas de exploração, locação e depois as de construção passavam ou permaneciam nesta região com muita cautela. Também os engenheiros, médicos e trabalhadores observavam a mata com cuidado e atenção constantes, esperando, a cada momento, um ataque dos Caripunas e, nas rodas das fogueiras nos acampamentos à noite, os ataques mortais destes aos construtores anteriores da ferrovia eram frequentemente lembrados.
Ironicamente, claro está que os índios, tradicionalmente também muito curiosos e arredios, deveriam estar constantemente espreitando os trabalhos e, deivdo a essa apreensão mútua, durante algum tempo, não houveram possibilidades de aproximação entre os dois grupos até que certo dia uma das turmas da construção encontrou um índio abandonado pela tribo. Os trabalhadores perceberam que ele estava enfermo e com uma grande ferida na perna direita, que não permitia sequer que ele se levantasse. Havia sido deixada ao seu lado uma cabaça com alimentos.
Conhecedores que somos hojes dos costumes indígenas, podemos afirmar com certeza que os demais membros da tribo Caripuna abandonaram aquele índio naquele local para ver o que os "brancos" da construção fariam, pois se o quisessem deixar no mato para morrer não precisariam deixá-lo na trilha que sabiam ser percorrida pelos funcionários da ferrovia. Repetia-se então, muitos anos depois, o que acontecera a Júlio Pinkas, quando encontrara um índio nas mesmas condições.
Grupo do hospital da Candelária com o índio "Pete", já recuperado e Indio Caripuna tratado pelo pessoal do hospital - Fotos Dana Merrill
Ao ser encontrado, o índio estava em péssimo estado de saúde e ainda achava que iria ser morto sem piedade pelos "brancos", o que evidentemente não ocorreu, pois o médico-chefe do hospital de Candelária, Dr. Lovelace resolveu cuidar do índio, até mesmo como estratégia para estabelecimento de boas relações com os índios. Como a ferida estava bastante infectada, havendo comprometido a perna, o Dr. Lovelace resolveu amputar a perna direita do índio, que a essa altura já era conhecido carinhosamente pelos médicos e enfermeiras como "Caripuna Pete". Feita a cirurgia e restabelecido o indio "Pete", o médico mandou vir dos E.E.U.U. um aparelho ortopédico que substituísse a perna amputada. alguns meses depois, quando o índio já estava recuperado, também devido à excelente alimentação (se comarada à disponível na selva..), a Companhia fez com qu eele retornasse à sua tribo.
Imaginem o espanto dos Caripunas ao ter de volta, com uma perna "fria", um membro da tribo julgado morto e enterrado há meses. Previsivelmente, depois de apenas alguns dias de trabalho de "convencimento", ele voltou ao acampamento de trabalhadores, trazendo em sua companhia quatorze índios também doentes de diversas enfermindade, selando dessa forma a amizade entre o pessoal da estrada e os Caripunas.
Indios amistosos na selva e com os Americanos. Vê-se um deles com a arma típica dos Americanos, a Winchester - Foto Dana Merrill
Mas, a construção ia adiantando-se, e quanto mais entrava na selva amazônica, ia encontrando novas tribos de índios. Entre muitos, destacamos os Guaravos, Parintintins, Caxararis, Mundurucus. Em termos de incidentes mais sérios, temos que em dezembro de 1912 no quilômetro 320, houve dois ataques de índios aos trabalhadores da estrada, resultando do primeiro um morto a flechadas, e do segundo, um ferido também a flechadas. Mas, a essa altura, a ferrovia já estava pronta. Nos anos seguintes, índios de diversas tribos nunca deixaram de criar ambiente de apreensões ao longo da estrada. Ainda hoje, os Pacaás-Novos, não obstante não ataquem a linha, constituem problema no Território de Rondônia, nas proximidades da estrada de ferro.