Janeiro de 2000: Revogação de todos os privilégios religiosos!
Fevereiro de 2000: A Concordata será revista
Março de 2000: Um combate cultural
Maio de 2000: Promovendo a idolatria e beatificando o fascismo em Fátima
O debate sobre a laicidade da nossa jovem democracia explodiu finalmente na praça pública. Um projecto de Lei da Liberdade Religiosa singularmente confessionalizante por parte do Governo, e uma réplica laicista de um pequeno partido de esquerda, marcam as balizas do debate. Não podendo evitar esta discussão, e aproveitando-se dos meios de Comunicação Social que lhe foram concedidos, em diversos momentos históricos, com o pretexto do seu papel «predominante» na sociedade portuguesa (e que ajudam a perpetuar esse papel), a ICAR tem tentado passar duas falácias que importa desmontar. Em primeiro lugar, os laicistas não pretendem abolir a religião, ou sequer remeter a sua expressão para o foro privado. Trata-se, isso sim, de abolir os privilégios religiosos, e prevenir o uso e abuso de meios do Estado por parte das religiões organizadas. Em segundo lugar, as isenções fiscais de que goza a ICAR não respeitam apenas às actividades caritativas, mas sim a quase todas as actividades económicas da ICAR, das quais a caridade é uma pequeníssima parte.
As posições dos partidos políticos face à questão da laicidade têm revelado um cenário confrangedor. À direita, enquanto o PPD/PSD se digladia em lutas internas, o PP tenta recuperar o apoio que num tempo já longínquo a ICAR lhe garantiu através de propostas ultramontanas como a de um dia de feriado nacional para assinalar a próxima vinda do Papa a Fátima. O PS mostrou-se embaraçado por o seu projecto, elaborado com a ajuda da ICAR, ser desafiado pelo projecto do BE, mais próximo da tradição histórica do republicanismo, da qual o PS se reclamava até há pouco tempo. Tornou-se evidente que pululam neste partido os «republicanos e laicos» adeptos de uma «laicidade flexível» que não é laicidade alguma. Pelas bandas da CDU, ouve-se um estranho silêncio.
Os privilégios fiscais da ICAR, e o próprio ensino religioso nas escolas públicas, não resistiriam a um debate realmente democrático. O cidadão comum sabe intuitivamente que um padre não pode estar isento de impostos que ele paga. Porém, o domínio pela ICAR de vastos meios de Comunicação Social, e um PS em acelerado processo de clericalização, difícilmente permitirão que estas ideias, que ganham terreno na opinião pública, sejam formalizadas em Lei da República.
Resta a possibilidade de os cidadãos se organizarem para fazer ouvir a sua voz. A este respeito, saudamos o aparecimento do primeiro movimento laicista português, inspirado no Movimento Europa e Laicidade francês.
Um grupo de advogados e juízes católicos tentou inserir uma missa católica no programa oficial de abertura do ano judicial. Supomos que, no espírito da Lei da Liberdade Religiosa, a abertura do ano judicial passará em breve a contar igualmente com cerimónias judaicas, muçulmanas, protestantes, e de algumas outras confissões religiosas. Para evitar o ridículo, nós propomos simplesmente que os dignitários do Estado respeitem a laicidade do Estado, e ignorem estas tentativas de colagem entre as convicções de alguns e os cerimoniais de uma República que ainda está separada das Igrejas. Este nosso conselho não foi seguido pelo Presidente da Câmara de Lisboa, e pelo Secretário de Estado da Administração Local, que compareceram na cerimónia religiosa de ordenação do novo bispo de Lisboa, nos Jerónimos.
O Banco de Portugal cedeu um espaço em plena baixa pombalina para a ICAR fazer a propaganda daquilo a que chama o «ano do Jubileu». É contra este uso e abuso de espaços e meios do Estado para o proselitismo religioso que todos os laicistas lutam.
A regulamentação da Lei 120/99, que implementa a disciplina de Educação Sexual nos liceus, continua atrasada. Parece portanto que as promessas de um avanço rápido nesta área, ouvidas aquando do referendo sobre a IVG, continuam esquecidas.
O PS alterou a sua posição prévia, e está agora disposto a que o processo de revisão da Concordata seja iniciado quando a Lei da Liberdade Religiosa subir ao Parlamento para discussão. Esta «cedência» só o é na aparência, pois com a aprovação da Lei da Liberdade Religiosa (garantida pelos votos da direita parlamentar e dos fiéis guterristas), os privilégios da ICAR serão mantidos, agora numa lei ordinária com a legitimidade acrescida da sua aprovação em democracia. Assistiremos portanto em Abril a uma farsa parlamentar em que apenas os privilégios da ICAR já caducos cairão. O projecto do Bloco de Esquerda será contemplado em aspectos meramente simbólicos, como as restrições à realização de cerimónias religiosas em actos oficiais ou edifícios do Estado. Tudo o que é mais substantivo -como as isenções fiscais ou o ensino religioso nas escolas públicas- permanecerá intocável privilégio da ICAR, possivelmente estendível a algumas confissões, cuja triagem a ICAR condicionará futuramente através da Comissão da Liberdade Religiosa.
Teve lugar no Porto o «baptizado» de um recém-nascido do sexo masculino. Com o pretexto de que alguns antepassados longínquos do referido rebento poderão ter sobraçado funções de chefia do Estado português, a família da criança e os grupos de pressão que a rodeiam conseguiram que a espatafúrdia cerimónia fosse transmitida em directo no canal televisivo RTP2, supostamente consagrado ao serviço público, e assim arregimentado para a propaganda monárquica. Permitimo-nos recordar que os cidadãos e cidadãs da referida família têm hoje os mesmos direitos e deveres que quaisquer outros portugueses. Não têm mandato para representar ninguém, e só são símbolo das classes sociais mais endinheiradas e dadas à ostentação.
O Presidente da Câmara de Lisboa, João Soares, afirmou ao jornal «Expresso» que «[a ICAR] tem um papel excepcional e incontornável na sociedade portuguesa», que está contra os que desejam vê-la «em pé de igualdade com as outras confissões religiosas»(!), que a trata «de forma priveligiada», e que não falta a uma procissão da superstição lisbonense conhecida como «Senhora da Saúde» (já o notáramos, ver o nosso Boletim de Maio de 1999), tudo isto apesar de ser «ateu e maçon». João Soares justifica assim ser «socialista, republicano, e laico»(sic) e dar o «ámen» à Lei da Liberdade Religiosa negociada entre o Governo e a ICAR.
A ICAR anunciou que JP2 pedirá em Março perdão pela Inquisição, pelas Cruzadas, e até pela cumplicidade com o fascismo. Simultâneamente, o Cardeal Sodano, Secretário de Estado do Vaticano, voltou a pedir a libertação do fascista Augusto Pinochet, e reconheceu publicamente que o Vaticano «fez as diligências que podia fazer, de acordo com as suas possibilidades» para esse fim. Será malícia nossa detectar aqui uma contradição?
O Presidente da República, que em Timor assistiu a uma missa católica, estará a considerar ir a Fátima para assistir à «beatificação» dos pastorinhos. Dizemos muito claramente a Jorge Sampaio: não vá, senhor Presidente! Lembre-se que nem só os crentes têm direito ao voto, e que o analfabetismo e a iliteracia científica contra os quais tanto tem discursado não se combatem participando em tais cerimónias.
No dia 30 de Março do ano 2000, foi pela primeira vez discutida na Assembleia da República do período democrático a Concordata e a legislação geral referente às religiões. Infelizmente, o único partido que se declarara favorável à revogação da Concordata -o BE- recuara já, conformando-se com a sua revisão e decidindo mesmo aceitar o ensino religioso na escola pública. Apesar destas hesitações, o discurso de Francisco Louçã foi de tal forma anti-clerical que arrancou uma salva de palmas aos estudantes do secundário presentes nas galerias, os quais provavelmente pensaram nas dificuldades que a instalação de máquinas de preservativos tem enfrentado nos liceus. Infelizmente, perante uma ala republicana do PS numéricamente diminuta e um PCP que preferiu tentar tirar a bissectriz entre o projecto de Vera Jardim e o do BE, a Lei Vera Jardim ficou encaminhada para uma aprovação segura. Perder-se-á portanto a primeira oportunidade de revogar a Concordata desde o 25 de Abril. A História registrará os que faltaram à chamada.
No entanto, indiferente às genuflexões dos políticos perante os grupos confessionais, a sociedade afasta-se cada vez mais das práticas religiosas e das referências morais de origem religiosa. Efectivamente, um estudo do Instituto de Ciências Sociais divulgado em Março encontrou apenas 27% dos portugueses declarando ter prática religiosa (católica) regular, e cerca de 15% tendo-a com menor regularidade. Os católicos praticantes são portanto já uma minoria, e aliás, além de cada vez mais diminuta, envelhecida e rural. Cabe-nos a nós, a todos aqueles que desejamos uma sociedade laica, e apesar das derrotas políticas, prosseguir o combate pela criação de condições para que os cidadãos e cidadãs da República portuguesa possam viver sem serem constrangidos a obedecer aos preceitos de uma religião que, a cada dia que passa, lhes é mais estranha. Este combate será sobretudo cultural, e passará, entre outras batalhas, pela dignificação do casamento civil, e pela criação de espaços laicos em que se possam velar os parentes falecidos.
Numa espectacular operação publicitária destinada a fazer esquecer as suas reais responsabilidades passadas e presentes, o Vaticano, pela voz trémula do envelhecido Karol Wojtyla, apresentou finalmente o tão propagandeado documento «Memória e Reconciliação». Neste, pede-se perdão a «Deus» pelos «erros e pecados dos filhos da Igreja», mas não se pede perdão às vítimas, nem se mencionam as responsabilidades específicas e os actos concretos de Papas e Bispos. Como sempre no universo cultural do catolicismo, estes pedidos de perdão à deidade destinam-se a obter a «graça de Deus», e não a corrigir comportamentos cuja reincidência se poderia precaver. Efectivamente, como poderemos crer na sinceridade deste Mea Culpa, se há pouco mais de um ano (ver Boletim de Outubro de 1998) o mesmo JP2 beatificou o cardeal Alojzije Stepinac (cúmplice de genocídio), e há pouco mais de um mês (ver Boletim de Fevereiro de 2000) o Vaticano obrou pela libertação do fascista Pinochet? Como poderemos acreditar na honestidade do Vaticano quando se prepara, em simultâneo com um pedido de perdão pelo «silêncio dos cristãos perante a injustiça e o genocídio», a beatificação de Pio XII, tristemente famoso pelo seu colaboracionismo com todos os fascismos, e justamente pelo seu mutismo perante o genocídio de judeus e ciganos? Pela nossa parte, temos conhecimento de vários ateus, agnósticos, e laicos, que, apesar de JP2 ter pedido perdão pela existência deles, não tencionam mudar de ideias. Portanto, talvez não seja cedo para o Vaticano ir preparando o próximo Mea Culpa...
A Câmara Municipal de Lisboa custeou com dois mil contos a construção de um novo túmulo para um indíviduo que, no século XIII, gozou durante alguns meses da honra duvidosa de ser Papa. João Soares, em Roma para a trasladação dos restos mortais de João XXI, justificou este subsídio com a origem lisbonense do Sumo Pontífice medieval, e declarou na ocasião que «Lisboa vê com grande entusiasmo a presença do Papa, mesmo se breve, em Fátima. Estamos preparados para receber o mais alto príncipe da Igreja com amor, carinho e respeito.» Em futuros números deste Boletim, abster-nos-emos de transcrever novas declarações de amor à ICAR do alcaide de Lisboa.
Segundo o Diário de Notícias (3/3/2000) as cerca de três mil IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social) recebem do Estado cerca de 120 milhões de contos por ano. Segundo a mesma notícia, mais de metade destas IPSS estão directa ou indirectamente ligadas à ICAR, e recebem entre 70 e 80 milhões de contos por ano.
Cerca de meio milhar de ugandeses pereceram em circunstâncias que podem indiciar um massacre ou um suicídio colectivo, mas que indubitavelmente foram da responsabilidade de uma seita denominada «Movimento para a Restauração dos Dez Mandamentos de Deus». Este movimento religioso foi fundado por padres dissidentes do catolicismo, um dos quais garantia ter ouvido uma conversa entre «Jesus Cristo» e a «Virgem Maria», em que esta se queixara de as pessoas não seguirem os «Dez Mandamentos». O «profeta» anunciara o fim do mundo para Dezembro de 1999. A religião pode efectivamente ser um perigo.
O projecto de lei Vera Jardim sobre liberdade religiosa foi aprovado na generalidade com os votos da direita e da maioria dos deputados do PS. Abstiveram-se dezoito deputados da ala republicana do PS, os dezassete da CDU, os dois do BE, e um do PSD. O projecto laicizante do BE foi reprovado, havendo votado a seu favor somente os dois deputados do BE, os dois do PEV, e dois deputados do PS. Entre os abstencionistas, contaram-se os do PCP e, algo surpreendentemente, sessenta e cinco deputados do PS, mais do que os quarenta e oito que votaram contra. Ficou portanto a impressão de que, embora votando favoravelmente a proposta de Vera Jardim por disciplina partidária, a maioria da bancada do PS gostaria de poder aprovar a do BE. Seja como for, e apesar de ter sido aprovada uma recomendação ao Governo para que inicie a revisão da Concordata, tratou-se obviamente de uma derrota para os valores laicos.
A lei de Vera Jardim, agora em discussão na Comissão Parlamentar de Direitos, Liberdades, e Garantias, deverá vir a representar não apenas a institucionalização da instrução religiosa nas escolas públicas, como também do «imposto de igreja». Pela primeira vez desde o final da Inquisição, o Estado irá registar dados sobre a religião de todos os seus cidadãos, e cada cidadão ou cidadã terá diferentes direitos (quanto à dispensa de exames, nomeadamente) consoante a congregação religiosa a que pertença.
Na mesma semana em que a Assembleia da República discutia uma Lei da Liberdade Religiosa que abrirá a hipótese de o contribuinte consignar impostos para uma instituição religiosa à sua escolha, disposição esta que tem sido criticada por não haver a possibilidade de se poder fazer o mesmo a favor de uma caridade laica, deu-se o caso de alguma Comunicação Social noticiar indícios de evasão fiscal em associações que têm lutado contra a SIDA, nomeadamente a Abraço e a Associação Sol. Por coincidência (ou talvez não), o canal TVI foi um dos principais veículos destas notícias.
O congresso nacional dos jovens monárquicos, reunido no Estoril, ouviu o cidadão Duarte Pio afirmar que os monárquicos «[transmitem] a ideia que mais não passam de grupos de toureiros e fadistas», e um outro participante lamentar que as Associações Reais «[funcionem] bem apenas durante casamentos e baptizados». Não fomos nós que dissemos.
O Ministério da Educação alterou o seu projecto de Lei de Organização e Ordenamento do Ensino Superior que, afinal, não permitirá que as confissões religiosas não-católicas criem estabelecimentos de Ensino Superior. Supostamente graças à Concordata, que contudo não previa a sua instituição, a Universidade Católica (UC) continua assim a ser a única Universidade ligada a uma igreja. Recorde-se que, além disso, a UC é beneficiada com 600 mil contos anuais do Orçamento Geral de Estado, mercê de um decreto-lei de Abril de 1990, quando era Ministro da Educação Roberto Carneiro. Mais recentemente, o Governo de António Guterres decidiu financiar o pólo de Viseu da UC com o pretexto de que aquele tinha um carácter supletivo das funções do Estado, embora não subsidie outras universidades privadas com pólos na mesma cidade.
A República portuguesa, através do Instituto da Cooperação Portuguesa, financiará a Fundação Evangelização e Culturas (pertencente à ICAR) em 100 mil contos, com o argumento de que os missonários católicos em África garantem a continuidade da presença portuguesa naquele continente. Isto equivale a um subsídio ao proselitismo católico, numa altura em que tão hipócritamente se afirma que o Estado é neutro em matéria de religião. E não esqueçamos que, neste mesmo mês, a ICAR brasileira foi obrigada a pedir perdão pela evangelização violenta do Brasil. Um dia, pedir-se-ão desculpas por estas ONG's financiadas pelo Estado e que tantas vezes constrangem o planeamento familiar em África.
O Presidente da República decidiu comparecer em Fátima para a beatificação dos pastorinhos. Jorge Sampaio argumenta que já esteve presente em cerimónias de outras religiões. É verdade, e por isso, antes que a IURD ou a Igreja Maná o convidem para uma celebração num estádio, Jorge Sampaio deveria ir reflectindo em como num segundo mandato poderá evitar abrir um precedente, e simplesmente não frequentar templo algum enquanto Presidente. É que Fátima tem uma carga política tão pesada, que torna-se difícil de compreender que o Presidente recuse um convite, por exemplo, para a Festa do «Avante!».
Coerente com a sua simpatia de sempre pelo fascismo, e ajudando à crescente paganização do catolicismo português, a ICAR procedeu em Fátima a 13 de Maio à beatificação de duas infelizes crianças que morreram de peste bubónica há cerca de oitenta anos, após alguns padres sem escrúpulos as terem convencido a substituir o estudo pelas rezas, a não comerem, e a autoflagelarem-se. Segundo a hierarquia da ICAR, estes comportamentos são agora oficialmente recomendáveis. Esta beatificação foi possibilitada por um «milagre» idóneamente atestado por dois médicos católicos, independentes um do outro (apesar de serem casados), e totalmente imparciais (apesar de serem funcionários do Santuário). A ICAR reavivou assim a idolatria da deusa sádica de Fátima (em frente da qual se humilham e rastejam os cidadãos e cidadãs católico-masoquistas de um país que se pretende moderno e civilizado), e acelerou a degeneração do cristianismo em marianismo, que o Papa Karol Wojtyla encoraja pessoalmente.
Para maior embaraço de todos os portugueses que se envergonham do espectáculo confrangedor de atraso cultural e falta de amor-próprio que os seus concidadãos proporcionam todos os anos em Fátima, as autoridades políticas de uma República que por enquanto ainda é formalmente laica compactuaram com esta cerimónia lamentável, tendo comparecido maciçamente na beatificação. Cabe aqui recordar que, para além de ser questão religiosa controversa entre os próprios católicos, o culto da «Virgem» de Fátima nasceu como uma tentativa de reorganizar os sectores conservadores hostis à República, e expandiu-se como forma de popularização da peculiar síntese de fascismo e catolicismo que foi praticada em Portugal por Oliveira Salazar. Por outras palavras, Fátima nasceu tentando ser algo como a marcha sobre Roma de Mussolini, e cresceu sendo o equivalente dos comícios em Nuremberga da Alemanha nazi. Recordemos a este propósito que foi a partir da consolidação do Estado Novo nos anos 30 que a mitologia de Fátima foi sendo enriquecida com símbolos nacionalistas como o «Anjo de Portugal», transformada de anti-republicana em anticomunista com a introdução a posteriori de «profecias» sobre a Revolução bolchevique e o deflagrar da guerra de 1939-45, e usada para legitimar a ditadura com a autorizada declaração da pastora Lúcia, feita a partir do convento aonde permaneceu enclausurada desde as pretensas aparições, de que «Salazar é a pessoa por Ele [Deus] escolhida para continuar a governar a nossa Pátria». A deusa de Fátima foi, e não deixará jamais de ser, a Nossa Senhora do fascismo. Registre-se para a História que estiveram presentes em Fátima o Presidente da República constitucionalmente laica Jorge Sampaio, o presidente da Assembleia da República democrática Almeida Santos, e o Primeiro-ministro (e ele próprio presumível beato no futuro) António Guterres. Os líderes da oposição de direita, Durão Barroso e Paulo Portas, estiveram presentes alegadamente como discretos «peregrinos», mas na realidade suficientemente visíveis para que os canais de televisão os filmassem e entrevistassem. Além destes, assinale-se ainda que o PCP se fez representar no aeroporto aonde chegou o Papa, atribuindo-lhe assim a imerecida dignidade de Chefe de Estado.
No seguimento da beatificação, o secretário de Estado do Vaticano procedeu à leitura de um texto revelando parte do conteúdo do «terceiro segredo» de Fátima, alegadamente escrito pela reclusa Lúcia nos anos 40, e que determinados chicos-espertos, coadjuvados por alguns idiotas úteis, reclamam ter-lhe sido transmitido por uma defunta galilaica que teria aparecido em cima de uma árvore, de boa saúde, falando fluentemente português, e incomodada pelos actos de pessoas como Afonso Costa e Vladimir Ilitch Ulianov. A «mensagem», lida por Sodano num português que de tão macarrónico era quase incompreensível, não desmerece de toda a manipulação ideológica que sempre rodeou a mitologia fatimida. Ficámos assim a saber que a queda dos regimes comunistas de Leste não se deveria à acção de Gorbatchev, ou sequer a alguma ânsia de democracia e consumismo dos povos da Europa oriental, mas seria isso sim resultado das orações à Nossa Senhora dos fascistas. O sentido de mais esta «profecia» anunciada a posteriori ficou claro como água quando foi explicado que a hipotética senhora galilaica falecida há cerca de dois mil anos teria intervindo em Roma no dia 13 de Maio de 1981, para desviar uma bala que quase matou Karol Wojtyla. Estranhamente, o privilégio da intercessão mariânica não teria sido conferido a Humberto Delgado, Olof Palme, Catarina Eufémia, Aldo Moro, Maximiano de Sousa, John Kennedy, ou a qualquer outra das infelizes vítimas do sangrento século XX. Querem assim convencer-nos de que o polaco escolhido por um colégio de cardeais para presidir à monarquia vaticânica não é um ser humano como qualquer outro, mas sim um semi-deus protegido pelo sobrenatural.
O cidadão Duarte Pio foi acusado de interferir nas eleições para a direcção da «Real Associação de Lisboa». Segundo um dos candidatos à direcção, o cidadão Duarte teria tentado favorecer o outro candidato (Expresso, 20/5/2000). Recorde-se que os monárquicos tentam sempre persuadir-nos da suposta «independência» e «imparcialidade» dos monarcas como uma vantagem do sistema anti-democrático que preconizam.
Aproveitando a humilhação da República propiciada pelos seus principais responsáveis em Fátima, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) divulgou no final de Maio o seu programa político através de uma Carta Pastoral intitulada «A Igreja na Sociedade Democrática ». Neste documento, para a elaboração do qual nem simples crentes ou nem sequer sacerdotes de escalão inferior foram consultados, os bispos portugueses, nomeados por uma monarquia estrangeira, têm a desfaçatez de se arrogarem o direito de falar em nome de todos os baptizados portugueses, incluindo presumivelmente não apenas os que são indiferentes à religião, como também os que se tornaram ateus e/ou anticlericais. No seu extenso caderno reinvidicativo, a CEP posiciona-se contra as uniões de facto (particularmente se envolverem homossexuais), contra a assistência do Estado às mães solteiras, contra a IVG e a eutanásia, e a favor dos subsídios estatais às escolas privadas, especialmente se forem católicas. A bispalhada anuncia ainda que pretende tornar o estudo do «papel das religiões» na «história e na cultura» obrigatório para os alunos do ensino público, sejam crentes ou não-crentes, o que não se refere, obviamente, a uma maior atenção aos crimes da Inquisição nos currículos. Aconselha também as ovelhas do seu rebanho a apoiarem apenas os partidos políticos cuja «visão» seja consentânea com a da doutrina social da ICAR. Mais ainda, os senhores bispos afirmam-se favoráveis à democracia e à laicidade, mas apenas se os seus privilégios, nomeadamente as isenções fiscais e os subsídios estatais à Universidade Católica, não forem beliscados, e somente enquanto a democracia lhes permitir impôr a toda uma sociedade as regras de conduta da fracção do todo nacional em nome da qual falam.
Os estudantes do ensino secundário efectuaram uma jornada de luta nacional no dia 10 de Maio. Reivindicaram a sua participação na reforma curricular, a abolição do numerus clausus, e a implementação da lei sobre educação sexual aprovada há um ano e ainda não regulamentada. Este é um sinal entre outros, de que embora os políticos continuem a ajoelhar perante a Igreja, a evolução da sociedade continua, e cada nova geração é mais independente de padres e sacristias.