Julho de 1999: Ajoelhados perante o altar
Agosto de 1999: Paralisia mental
Setembro de 1999: Timor-Leste e eleições legislativas
Outubro de 1999: Rescaldo das eleições legislativas
A legislatura terminou sem que o anteprojecto da Lei da Liberdade Religiosa fosse discutido na Assembleia da República. A AEP (Aliança Evangélica Portuguesa) protestou vigorosamente contra esta circunstância, argumentando aliás que tanto o Primeiro-ministro quanto o Ministro da Justiça haviam prometido solenemente a aprovação desta lei antes do final da legislatura. A nossa posição sobre este assunto já foi referida anteriormente, e será desenvolvida num texto a aparecer em breve.
Enquanto o projecto de lei aprovado pelo Conselho de Ministros no dia 14 de Março de 1999 espera pela próxima legislatura na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, teve início o prólogo para as próximas eleições legislativas. Assim, tivemos Paulo Portas celebrando as festas dos santos populares como «a volta ao Portugal autêntico», António Guterres fazendo uma acção de campanha num santuário católico de Trás-os-Montes, e Durão Barroso visitando o arcebispo resignatário de Braga, o sinistramente famoso Eurico Dias Nogueira, para -nas palavras do próprio- «mostrar o seu respeito enquanto político pela [ICAR]». Recebido no mesmo dia, Paulo Portas foi mais longe e elogiou a «coragem de D. Eurico em 1975», coragem essa que consistiu em dar cobertura a uma organização terrorista (o MDLP). Na hora de votar, lembrar-nos-emos de que este trio iniciou a campanha ajoelhando-se perante o altar.
Pouco mais de um ano após a campanha para o referendo sobre a IVG, os sectores conservadores já esqueceram totalmente as promessas, feitas nessa altura, de que mais Educação Sexual e um acesso mais fácil aos meios contraceptivos seriam preferíveis à IVG. Assim, tivemos em Julho a Comissão Nacional Justiça e Paz, a Federação Nacional de Associações de Estudantes do Ensino Secundário(!), e até (veja-se o atrevimento!) a Conferência Episcopal Portuguesa criticando publicamente a venda (condicionada) de preservativos nas escolas secundárias, a venda comparticipada da «pílula do dia seguinte», e até a própria existência de Educação Sexual nos liceus. Isto significa que os sectores clericais não desistiram ainda de querer impor a sua «moral» a uma sociedade da qual constituem apenas uma parte.
O Vaticano juntou-se a todos aqueles que não crêem na veracidade das pseudo-alucinações de Fátima, ao proclamar -por intermédio de uma revista jesuítica- que as chamas do «Inferno» afinal não existem, refutando assim totalmente as alegadas visões dos celebérrimos pastorinhos de Fátima. O nosso obrigado ao Vaticano e a Karol Wojtyla, que aliás, e tal como nós, não acredita na fisicidade do «Céu».
O suposto milagre de Leiria, alegadamente consistindo em uma idosa, após ter estado entrevada durante vinte anos, ter começado a andar por intervenção de além-túmulo de uma pastorinha de Fátima, está assente em bases cuja fragilidade é cada vez mais clara. Soube-se agora que os relatórios médicos da alegada paralisia não existem, nenhum dos hospitais que terá assistido a miraculada tem registros da sua passagem por lá, e os testemunhos pessoais são contraditórios. Reagindo a um inquérito do Expresso que demoliu a credibilidade do milagre, o médico Daniel Serrão, ele próprio católico, acabou por admitir que as frequentes curas e recaídas da idosa de Leiria enquadrar-se-iam melhor no diagnóstico de «paralisia histérica», já por nós avançado no nosso Boletim de Junho.
Tudo isto nos leva a concluir que os sectores clericais pró-beatificação devem tomar-nos por parvos; ou melhor dizendo: devem julgar que sofremos todos da paralisia mental que tentam inculcar no seu rebanho.
A tradicional missa em memória de Salazar teve lugar no Vimieiro. O padre responsável pelo ritual, de seu nome Cândido, proferiu um feroz requisitório contra o 25 de Abril, o fim do «Portugal puricontinental», a União Europeia, e «os inimigos da Nação e da Igreja». Vinte e oito salazaristas, quase todos de idade avançada, assistiram a este verdadeiro comício, que serve para nos recordar de como o fascismo português foi sempre saudado do altar e celebrado em homilias.
A teoria darwiniana da evolução das espécies foi suprimida dos currículos escolares do Kansas estadunidense, pois sofre da irredimível pecha de estar em contradição com a Bíblia. Este preocupante avanço do obscurantismo no continente americano levou o jornal Público a efectuar um inquérito, através do qual ficámos a saber que se ensina o criacionismo nas aulas de Religião e Moral Evangélica, aulas estas autorizadas em liceus do Estado. Esta circunstância reforça a nossa convicção de que não pode haver lugar para qualquer tipo de «instrução» religiosa na escola pública, seja esta assegurada pela AEP ou pela ICAR.
O mês de Setembro de 1999 ficará para sempre na memória de todos os portugueses com a lembrança da unidade nacional em defesa dos direitos fundamentais do povo timorense. Não é este o meio adequado para nos alargarmos na expressão de sentimentos que também partilhamos. Sendo estes Boletins dedicados a manter uma atenção vigilante e crítica face aos grupos clericais, não podemos no entanto deixar de assinalar que não é com rezas e sorrisos que se liberta um povo; e que a questão timorense nunca foi, no essencial, religiosa, sendo por isso indesculpáveis os apelos à guerra santa contra o Islão feitos pelo representante do Vaticano em Lisboa, o cardeal Policarpo.
Uma nova seita cristã actua no Porto e em Braga. Chama-se Igreja Batista da Esperança e serve uma mistela de sucesso garantido: canções em coro, milagres a granel, e uma mensagem simples. O diário Público referiu esta nova concorrente da ICAR num tom frio e crítico que saudamos, mas que contrasta fortemente com o tom empático que empregou para se referir ao padre-cançonetista Rossi, cujas técnicas de angariação de clientes não são muito diferentes.
Karol Wojtyla pediu novamente perdão pelos «erros» da ICAR. Pensando presumivelmente no seu próprio papel na destruição da Jugoslávia, lamentou a «dolorosa realidade da divisão entre cristãos»; pensando possivelmente nos actos de violência que presenciou aquando da sua visita a Timor-Leste -e aos quais na altura fechou os olhos- condenou os «métodos de intolerância e mesmo as formas de violência»; e pensando provavelmente no bispo Augustin Misago -que nomeou para a diocese de Kigali, no Ruanda, e que este mês foi acusado em tribunal de organizar o genocídio de Tutsis- evocou a «falta de discernimento de alguns cristãos face a situações de violação dos direitos humanos fundamentais». Aliviar a consciência parece ser fácil. Corrigir as atitudes do presente, precavendo o futuro, seria mais importante.
As eleições legislativas realizar-se-ão em breve. Embora haja quem vote por indicação do padre da paróquia, aqueles que se marimbam para as directivas do púlpito podem seguir apenas a sua própria consciência. Para esses, e entre outros factores, o posicionamento dos partidos face às liberdades religiosas, à laicidade, e às ingerências clericais na vida pública fornece uma preciosa indicação.
Durão Barroso, que no prólogo da campanha eleitoral se curvara respeitosamente perante o arcebispo de Braga -e frisando que o fazia como político- resolveu agora acusar António Guterres de se colar à ICAR e à sua linguagem. Registrámos com agrado que o líder do PSD pensa que Portugal é «uma sociedade laica e moderna». Todavia, não alimentamos ilusões quanto ao sentido de voto do PSD quando a Lei da Liberdade Religiosa for discutida no Parlamento, ou quando a questão da IVG for novamente colocada na AR, conforme a CDU já confirmou que será. O que verdadeiramente incomoda a direita moderada é o pragmatismo da ICAR, que encontrou no papa-hóstias confesso, renitente, e contumaz, que ocupa o cargo de Primeiro-ministro, o servo mais obediente e eficaz desde os tempos do saudoso Oliveira Salazar. Efectivamente, a Lei da Liberdade Religiosa será discutida no início da próxima legislatura. Poucas semanas antes das eleições, o cardeal Policarpo afirmou que via este projecto de lei «com bons olhos». Portanto, o PS contará com o apoio da ICAR no próximo dia 10 de Outubro. Quanto aos outros partidos, lamentamos que a CDU -de cujo laicismo não duvidamos- não mencione no seu longuíssimo programa eleitoral a necessidade de abolir a Concordata, como o faz, embora em termos muito tímidos, o Bloco de Esquerda; estranhamos que o tradicionalmente anti-clerical PCTP/MRPP não só inclua um monárquico nas suas listas como se arvore em defensor das religiões minoritárias; e assinalamos finalmente que até ao momento o anticlericalismo puro e duro só foi visto na campanha do BE.
Os resultados das eleições legislativas foram moderadamente positivos para os valores laicistas e republicanos. O reforço do sector da esquerda laicista em quatro deputados, assim como o ganho para o centro-esquerda de mais três, representam na globalidade a Assembleia da República mais à esquerda dos últimos quinze anos. Porém, o facto mais significativo que estas eleições comprovaram, e que deverá servir de referência futura, é o desencanto do eleitorado jovem e urbano com a modernização moralmente conservadora de António de Oliveira Guterres e do seu séquito de democratas-cristãos. São a este respeito reveladoras a eleição de dois deputados esquerdistas na capital, e a eleição de um comunista em Braga, onde a sombra da Sé parece estar a minguar...
Considerando que na última legislatura as duas tentativas de despenalização da IVG soçobraram ou passaram no Parlamento por margens de um ou dois votos apenas, as perspectivas nesta matéria são agora mais animadoras. Não surpreende, portanto, que o debate sobre a IVG tenha sido imediatamente reaberto. Cabe a este respeito dizer que a Assembleia da República tem toda a legitimidade, não somente para debater o assunto, como para aprovar a despenalização da IVG imediatamente.
A clericalização do PS continua. Durante a campanha para as eleições legislativas, o Secretário de Estado para as Comunidades José Lello fez declarações apaixonadas sobre o «culto mariano», a «beatificação dos pastorinhos», e outras alarvidades ligadas ao culto de Fátima, sem nunca se demarcar da exploração comercial e religiosa da superstição mais básica que é a verdadeira substância de Fátima, e que é a vergonha de qualquer português ou portuguesa que se preze. Quanto ao alcaide da capital portuguesa, não satisfeito por participar em procissões (ver Boletim de Maio), lembrou-se agora de visitar Karol Wojtyla, tratá-lo respeitosamente por «Santo Padre» e «Sua Santidade», elogiá-lo como sendo difusor de uma «mensagem de paz, fraternidade e justiça»(sic), e culminar assinalando que se «celebravam» nesse dia 852 anos sobre a conquista «cristã» de Lisboa, sem referir que a essa conquista seguiu-se um banho de sangue em que pereceram muçulmanos, judeus, e cristãos de Lisboa. Para alguém que se declarou um dia «ateu e anti-clerical», a abjuração está quase completa.
A implantação da República foi celebrada pelo Bloco de Esquerda, com Fernando Rosas pedindo a reintrodução do debate sobre o «laicismo e o Estado». Parece que as bandeiras que o PS deixar tombar serão reerguidas mais à esquerda.
A beatificação de Francisco e Jacinta, duas crianças da zona de Fátima que foram vitimadas pela peste bubónica, terá afinal lugar em Roma, não vindo Karol Wojtyla a Fátima. O bispo de Leiria-Ourém, descoroçoado por esta perspectiva de negócio se ter volatilizado, falou públicamente da sua desilusão. Do mesmo passo, afirmou que as vidas das duas crianças «podem ser imitadas por muitos Franciscos e muitas Jacintas». Fica-se assim a saber que faltar à escola para rezar, beber água suja intencionalmente, passar fome por indicação clerical, e, até, a auto-flagelação com uma corda, são práticas recomendadas pela ICAR. Seguidas estas recomendações à risca, a mortalidade infantil subiria enormemente em Portugal.
Entretanto, em Roma, Karol Wojtyla afirmou que certas «práticas sexuais» (que não especificou) provocam o cancro. Nós nem quando este indíviduo afirma que é pecado ligamos, quanto mais quando se sai com uma destas...
Com a intenção de assinalar o nascimento de uma pessoa que nunca existiu, a ICAR e algumas outras seitas cristãs preparam-se para gastar uma boa maquia nas faustosas comemorações do ano 2000, declarado «Jubileu» pela ICAR. Em Roma, a casa-mãe da poderosa multinacional vaticânica prepara-se para vender um logotipo comercial do «Jubileu» em rosários, crucifixos, velas, camisetas, e cinzeiros. Em Lisboa, a ICAR fará concorrência às celebrações saudavelmente pagãs que costumam ter lugar na Praça do Comércio, promovendo espectáculos multimédia de luz e som, e inundando a cidade com propaganda. O custo será provavelmente de uns 300 mil contos. A estação privada SIC oferecerá espaço publicitário gratuito à ICAR, e transmitirá algumas iniciativas religiosas, nomeadamente a mensagem de «Natal» do Cardeal Policarpo. Supomos que a ICAR poderia portanto abdicar do espaço de que disfruta no canal público RTP2.
A ICAR venderá também bilhetes de entrada para um espectáculo que o próprio JP2 já admitiu não existir (o Céu), a preços reduzidos para os adeptos mais fiéis e sob o nome de indulgências.
Karol Wojtyla, ditador de um pseudo-Estado teocrático e beatificador de fascistas notórios como o croata Stepinac, virá a Fátima em Maio para beatificar duas crianças que faleceram há cerca de oitenta anos, pouco após afirmarem ter visto empoleirada numa azinheira uma fulana vestida de branco que os teria aconselhado a passar fome, a faltar às aulas, e a rezar muito. A seita romana decidiu avançar com esta beatificação, mesmo sendo do domínio público que a senhora da zona de Leiria que afirmou ter sido «curada» por intermédio de rezas nunca esteve doente. Confirmando que a ICAR presta muita atenção ao calendário -note-se que o anúncio da beatificação teve lugar a 28 de Junho de 1999, exactamente um ano após o referendo sobre a IVG- o anúncio oficial da vinda do Papa será feito na véspera do dia 25 de Dezembro, dito «Natal» e no qual tem lugar o Dia Mundial dos Comerciantes. Apelamos ao protesto contra este culto repugnante que explora a morte de duas crianças que foram induzidas pela padralhada da ICAR a passarem fome e a beberem água suja.
O Vaticano anunciou também que em Outubro do próximo ano «o Mundo será consagrado à Nossa Senhora de Fátima». Isto significa essencialmente que o ancião polaco proferirá umas palavras em Latim na direcção de uma estatueta de louça vinda para o efeito de Portugal.
António Guterres congratulou-se com estes factos. Deste indíviduo não se esperava outra coisa. Um dia, será beatificado.
JP2 visitou em Novembro a Índia -um país onde a Inquisição de Goa deixou o nome de Portugal ligado à intolerância religiosa- e a Geórgia -um país de maioria católica ortodoxa. Em ambos os países, Karol Wojtyla defendeu a liberdade de mudar de religião. Esperemos que faça o mesmo quando vier a Portugal.
Após nove longos meses (consultar o nosso Boletim de Fevereiro), e talvez porque o negócio das cruzes salvíficas já saturou o mercado que pretendia atingir, a hierarquia da ICAR distanciou-se pela primeira vez dos objectivos comerciais e religiosos da Fraternidade Missionária Cristo Jovem. Efectivamente, o bispo de Braga afirmou que as cruzes luminosas devem ser retiradas dos terrenos das igrejas, embora não se tenha mostrado nada exigente quanto à rapidez.
Um projecto para despenalizar a IVG até às 12 semanas foi apresentado pelo PCP no Parlamento. O PS já anunciou que não o viabilizará. Entretanto, foi preso em Aveiro um médico que praticava abortos clandestinos.
A Assembleia da República rejeitou, com os votos contra de toda a Esquerda (PS, CDU, e BE), uma petição organizada pelos sectores católicos mais fundamentalistas que visava censurar o artista de variedades Herman José por ter feito uma rábula à Última Ceia dos cristãos. A petição foi criticada como uma «Cruzada» e um sinal de «intolerância» pelo bispo castrense Januário Torgal. Frustrados ficaram os anseios inquisitoriais dos católicos mais fundamentalistas.
O Bloco de Esquerda apresentou um projecto de reforma fiscal onde propõe a abolição da isenção de IVA de que goza a ICAR, e protestou no Parlamento -pela voz do deputado Francisco Louçã- contra a «benção» religiosa na inauguração oficial da travessia ferroviária do Tejo.
Da bancada do PPD/PSD veio um requerimento -por intermédio do deputado de Viseu José Cesário- para que o subsídio de propinas de que beneficiam os alunos da Universidade Católica de Viseu seja estendido aos alunos do Instituto Piaget. Protestamos contra esta discriminação positiva a favor de uma única Universidade privada, que por sinal está ligada à ICAR.
O partido político Bloco de Esquerda anunciou a sua intenção de pedir no Parlamento a revogação da Concordata salazarenta entre Portugal e o Vaticano. Efectivamente, é inadmissivel que oitenta e nove anos depois de uma Revolução que instaurou um regime republicano e laico, e vinte cinco anos depois de uma outra Revolução que pôs fim a uma ditadura fascista que se apoiava em larga medida na ICAR, se continue a privilegiar a Igreja Católica Apostólica Romana com regalias, isenções, e subsídios estatais. A nossa posição foi sempre clara: defendemos a abolição imediata da Concordata, e exigimos que nenhum dos privilégios aí concedidos à ICAR transite para as Leis gerais da República. Apoiamos por isso todas as iniciativas que possam conduzir à revogação da Concordata, e apelamos à rejeição da Lei da Liberdade Religiosa que o Governo clerical de António de Oliveira Guterres tentará aprovar no Parlamento em Janeiro, e que, a vingar, instituirá uma autêntica hierarquização das religiões, em contraste flagrante com o espírito e a letra da Constituição de 1976.
O território sob administração portuguesa de Macau foi devolvido à China. Portanto, desde 19 de Dezembro de 1999, a bandeira da República portuguesa somente é içada em territórios onde a maioria dos habitantes goza de iguais direitos de cidadania.
Não podemos, no entanto, deixar de lamentar o retrocesso para os Direitos Humanos que esta transição de administração sem dúvida significará para os habitantes do território. A este respeito, foi tristemente significativo que os actuais governantes se hajam congratulado por a «liberdade religiosa» ir ser futuramente respeitada em Macau. Isto mostra uma vez mais que o conceito de «liberdade religiosa» da nossa classe política continua a ser apenas o da liberdade para se ser mais ou menos católico, como o descobriram da pior forma os budistas da seita Falun Gong que tentaram manifestar-se pacificamente no dia da transição, e que foram detidos. Sensívelmente à mesma hora, o governador cessante do território de Macau Rocha Vieira, o Primeiro-ministro de Portugal António Guterres, e o Ministro da Educação Oliveira Martins, assistiam impávida e serenamente a uma missa católica, aliás integrada no programa oficial das cerimónias. Registrámos com agrado a ausência do Presidente da República Jorge Sampaio.
Tal como em Macau, a presença da ICAR nas ex-colónias portuguesas tende demasiadas vezes a ser desculpada como sendo uma forma de preservar a herança cultural portuguesa. Actualmente, o caso onde esta presença é mais inquietante é o de Timor Leste, onde a ICAR local, por haver sido a única instituição não-governamental tolerada pelo ocupante indonésio, ajudou significativamente a resistência timorense, e exige agora como recompensa que lhe sejam entregues o ensino e a educação. A intervenção portuguesa, ao nomear para o território um alto-comissário que é um sacerdote católico, não nos parece ser de molde a encorajar a separação entre a Igreja e o Estado na futura República de Timor Leste. Note-se a propósito que, em Moçambique, onde mais de um milhão de pessoas estão infectadas com o vírus da SIDA, a ICAR local não hesita em atacar as campanhas de distribuição de preservativos. Acresce, no caso de Timor Leste, que nenhum dos políticos locais parece ter a respeito do laicismo a clareza de ideias do guineense Kumba Ialá, que declarou recentemente que, na eventualidade de ser eleito Presidente da República da Guiné-Bissau, não aceitará «um rumo que não seja o laicismo do Estado».
Temos vindo a seguir com alguma preocupação a evolução da União Europeia. Efectivamente, além de haver escolhido como símbolo uma bandeira com simbologia cristã, esta organização internacional com veleidades federalistas tem vindo a mostrar uma renitência de raiz religiosa em aceitar a Turquia, um país que, apesar de mostrar efectivamente um parco respeito pelos Direitos Humanos, é um exemplo de laicidade entre os países de maioria muçulmana. Em Dezembro, quando foi anunciada a entrada da República da Turquia para o grupo dos pré-candidatos à União Europeia, um frémito de horror percorreu tanto os partidos respeitavelmente democrata-cristãos como os abertamente fascistas da UE. Esta islamofobia teve a sua expressão em Portugal nas declarações do presidente do PP, Paulo Portas, que argumentou não ter a Turquia o mesmo «fundamento civilizacional» do resto da Europa para justificar a sua oposição à admissão da Turquia na UE.