Quando andei pelas ruas da minha cidade abordando as pessoas para recolher assinaturas para a petição pela revogação da concordata, puseram-me todo o tipo de dúvidas, isto claro, os que pelo menos sabiam o que raio era a "Concordata". Por essa razão decidi fazer um FAQ simples que não só explicasse o que está em causa, como acabasse com os inúmeros mal-entendidos que pairam sobre este assunto.
A Concordata foi um acordo entre o Estado português e a Santa Sé, firmado a 7 de Maio de 1940 logo, no período da longa ditadura fascista liderada por Salazar. O objectivo era instituir uma convenção que "reconheça e garanta a liberdade da Igreja e salvaguarde os legítimos interesses da Nação Portuguesa, inclusivamente no que respeita às Missões Católicas e ao Padroado do Oriente".
Dito desta forma até parece um documento cujos objectivos são perfeitamente legítimos, mas sob o malabarismo retórico do prólogo citado, escondem-se as razões que levaram à sua criação: a necessidade do reconhecimento (e bênção) pelo Vaticano, a principal autoridade espiritual e religiosa da época, da obscura ditadura fascista que tinha sido imposta em Portugal. Em troca desse reconhecimento, Salazar concedeu à ICAR todo o tipo de privilégios que veremos a seguir.
Esta foi a primeira Concordata firmada pelo Estado português, todavia, neste século as Concordatas entraram bastante na moda na Europa, pois todos os ditadores fascistas desejavam (e conseguiam com facilidade) o apoio da ICAR para a sua barbárie. Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália firmaram igualmente concordatas com o Papa, todavia nenhum desses dois tratados fascistas está hoje em vigor. A Concordata portuguesa ainda se mantém. (O texto integral da Concordata pode ser obtido em (1).)
2) Quais são os pontos principais deste tratado?
A base da Concordata consiste em estabelecer a fé católica quase como a religião do Estado. Seguindo esse princípio, as instituições ligadas ao Vaticano, e os seus funcionários gozam de todo o tipo de regalias, em detrimento dos outros cidadãos, e nomeadamente das outras religiões. Vou transcrever alguns excertos do documento, para que se possa perceber melhor.
Artigo 6.
É reconhecida à Igreja Católica em Portugal a propriedade dos bens que anteriormente lhe pertenciam e estão ainda na posse do Estado, como templos, paços episcopais e residências paroquiais com seus passais, seminários com suas cercas, casas de institutos religiosos, paramentos, alfaias e outros objectos afectos ao culto e religião católica (...)
Os objectos destinados ao culto que se encontrem em algum museu do Estado ou das autarquias locais ou institucionais serão sempre cedidos para as cerimónias religiosas no templo a que pertenciam, quando este se ache na mesma localidade onde os ditos objectos são guardados.
Ou seja, se a Igreja quisesse voltar a albergar no Mosteiro dos Jerónimos uma congregação de monges, poderia fazê-lo, pois o edifício embora pertencendo ao Estado, seria usufruído pela Igreja!
Artigo 8.
São isentos de qualquer imposto ou contribuição, geral ou local, os templos e objectos nele contidos, (...) quaisquer estabelecimentos destinados à formação do clero, e bem assim os editais e avisos afixados à porta das igrejas, relativos ao ministério sagrado; de igual isenção gozam os eclesiásticos pelo exercício do seu múnus espiritual.
Nenhum clérigo paga impostos ao Estado, e o mesmo se passa no que diz respeito às instituições ligadas à Igreja. Isto na Igreja Católica, é claro, pois todas as outras confissões religiosas, incluindo os seus sacerdotes, pagam impostos como vulgares contribuintes.
Artigo 15.
O uso do hábito eclesiástico ou religioso por parte de seculares ou de pessoas eclesiásticas ou religiosas a quem tenha sido interdito por medida das competentes Autoridades eclesiásticas, oficialmente comunicada às autoridades do Estado, é punido com as mesmas penas que o uso abusivo de uniforme próprio dum emprego público.
Este é talvez o preceito que melhor ilustra o ridículo que é a Concordata. Segundo este artigo, se um cidadão normal vestido com uma batina de padre for apanhado pelas autoridades, é punido tal e qual como se tivesse usurpado a farda de um agente da polícia! A ICAR e os fascistas têm um sentido de humor curioso...
Artigo 19.
O Estado providenciará no sentido de tornar possível a todos os católicos, que estão ao seu serviço ou que são membros das suas organizações, o cumprimento regular dos deveres religiosos nos domingos e dias festivos.
A principal consequência deste artigo é a observância, pelo Estado, dos feriados religiosos católicos como feriados nacionais.
Artigo 21.
Nos asilos, orfanatos, estabelecimentos e institutos oficiais de educação de menores, e de correcção ou reforma, dependentes do Estado será ministrado, por conta dele, o ensino da religião católica e assegurada a prática dos seus preceitos.
Uma vez mais é violado o princípio da igualdade das religiões, e liberdade de consciência, já que é desde cedo imposta às crianças desfavorecidas uma determinada religião.
Artigo 24
(...)Pelo próprio facto da celebração do casamento canónico, os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que por isso não poderá ser aplicado pelos tribunais civis aos casamentos católicos.
Este artigo, que proíbe a dissolução legal dos casamentos celebrados pela Igreja, estava presente no documento original, tendo este pormenor sido felizmente rectificado após o 25 de Abril.
3) Porque defendemos a revogação?
4) Que tipo de pessoas apoia a revogação da Concordata?
Apenas um tipo de pessoas deve ser favorável ao fim da Concordata: os democratas. Os verdadeiros democratas, ou seja, todos aqueles que acreditem ainda na isenção e laicidade como pressupostos do Estado de Direito Democrático, sejam eles religiosos ou não. Que fique bem claro que esta não é uma luta contra a fé católica, mas sim pelo encerrar de um erro histórico que se arrastou de 1940 até aos nossos dias. Melhor do que pedir desculpas pelos erros passados é fazer por remediá-los, e muitos católicos assinaram já de bom grado a petição que lhes mostrei, pois são capazes de pensar em consciência, pois para este assunto não está em causa o valor da fé, mas sim a própria democracia.
Para os amigos católicos terem uma ideia da discriminação de que são alvo todas as instituições religiosas e pessoas não católicas, imaginem-se a pregar as vossas crenças no Irão, por exemplo... Compreendem o que quero dizer?
Ser a favor da revogação da Concordata não é estar contra a Igreja, é sim estar a favor de uma Igreja que se ocupe das almas daqueles que a seguem livremente, em "livre e leal concorrência" (se é que se pode chamar concorrência) com todos os outros credos, igualmente dignos de todo o respeito. Quanto a ir-se para o Inferno por ser-se a favor do Estado laico e democrático, logo, pela revogação da Concordata, julgo que Deus partindo do princípio que existe e que é um ser realmente perfeito deve detestar as politiquices, logo, não quererá que seus representantes institucionais se metam nelas, e muito menos que a sua Igreja tenha privilégios do Estado. Por isso tenho a certeza que Deus certamente se orgulhará dos seus seguidores que trabalhem para o bem da sociedade e da democracia.
6) O que posso eu posso fazer?
Como nenhum partido representado na Assembleia da República parece demonstrar a coragem política necessária para defender a revogação da Concordata e dos privilégios com a excepção relativa do Bloco de Esquerda, pois até este partido de esquerda tem vacilado substancialmente, a delegação portuguesa do Movimento Europa & Laicidade tomou a iniciativa de elaborar uma petição para ser endereçada ao Presidente da República para que este requeira junto do Tribunal Constitucional a revogação da Concordata. Esta petição está disponível em
http://www.oocities.org/CapitolHill/Senate/4801/Peticao/EuropaeLaicidade .html,
fazendo-se o apelo a todos os democratas que a assinem e, se possível, contribuam para esta grande causa, imprimindo a página e fazendo circular a petição para recolhermos as assinaturas necessárias.
João Pedro Teixeira Silva Freire (correio)
Abril de 2000
Referências: